Teoria na prática

Josali do Amaral

  • Ilustração: R. TorterolliTransformar estudantes em historiadores é um caminho longo: além de dedicação e estudo, é preciso interesse e questionamento dos alunos. Para o professor fica a tarefa de incentivar o futuro historiador a ultrapassar as barreiras da simples leitura de textos durante a formação acadêmica. Ministrada nos primeiros períodos da graduação, a Teoria da História, discussão sobre a escrita da História, pode ser um obstáculo. Por isso, que melhor maneira de estimular o aluno a abordar essa disciplina do que introduzir a própria pesquisa no âmbito da reflexão sobre a Teoria da História? O plano é bom, mas sua execução não é simples.

    Aceitei esse desafio quanto ministrei Teoria da História no curso noturno de licenciatura do Centro Universitário Nilton Lins, em Manaus, durante os anos de 2007 e 2008. Para ter sucesso, dificuldades reais precisavam ser superadas. O perfil do aluno do curso noturno foi uma delas. Em geral, ele trabalha de dia e não tem tempo ou disposição física para se concentrar em leituras exaustivas. Por um lado, não se pode deixar de exigir reflexões indispensáveis para a formação; por outro, se a disciplina for lecionada de maneira apenas teórica, corre-se o risco de desistências ou reprovação. Na licenciatura, é necessário também despertar a habilidade de produzir conhecimento histórico, para que o recém-formado não se torne apenas um expositor de livros didáticos.

    A primeira ideia foi relacionar a disciplina a monumentos com os quais o aluno lida diariamente. Acuriosidade logo apareceu, porque a maioria dos alunos pouco sabia a respeito dos marcos históricos de Manaus. Prédios, igrejas e praças que são vistos frequentemente, mas que permanecem despercebidos pela população – que não nota o significado das construções para a identidade local – foram relacionados à disciplina. Optou-se por este tipo de metodologia: os alunos deveriam identificar os marcos arquitetônicos da cidade e ler o clássico Apologia da História ou O Ofício de Historiador, de Marc Bloch, como apoio. A aula seguinte seria uma discussão sobre o olhar do historiador e a experiência de ver a cidade intencionalmente.

    Não deu outra. Na semana seguinte, os alunos relataram que nunca haviam notado a importância de muitas construções do Centro da capital amazonense. Diversos aspectos das obras chamaram a atenção dos estudantes: o tamanho do Teatro Amazonas, inaugurado no auge da opulência dos barões da borracha e que fazia parte do projeto de transformar Manaus em uma cidade moderna; ou a grandeza do Palácio Rio Negro, que passou de residência a centro cultural; e o Instituto Benjamin Constant, onde funciona hoje o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas. A observação levou alguns alunos a se questionarem sobre os monumentos. Logo estávamos discutindo questões que giravam em torno de um fenômeno histórico que ia além da simples imponência da arquitetura. Aqueles prédios e praças da cidade, vistos no cotidiano sem atenção, transformaram-se em objeto de análise da noite para o dia.

    Os traços arquitetônicos passaram a ser entendidos como símbolos de épocas. Percebia-se que, por trás da história singular dos monumentos, muito mais poderia ser contado. As perguntas sobre o que é História e o que o historiador faz começaram a ser respondidas a partir da união entre a leitura e a experiência. Tornou-se evidente que o passado permanece no presente como um indício que leva à busca de um saber específico. A etapa seguinte seria descobrir que tipo de saber é esse e como é possível construí-lo.

    Foram criados grupos de trabalho na turma e eleitos os monumentos da cidade que seriam investigados. Iniciou-se, então, um exercício de problematização, de modo que essas construções fossem interpretadas como documentos, registros de uma época. Assim, entrava em pauta a “história-problema”. Nesse ponto, foi necessário interrogar as fontes. Os estudantes perceberam que o conceito de fonte é bem diferente da concepção de papéis antigos. Vestígios do passado podem ser variados e podemos questioná-los e especular sobre as condições em que foram produzidos, o motivo e o que representam.

    Era tempo da segunda tarefa. Foi solicitada uma pesquisa que gerasse dados relacionados aos marcos históricos escolhidos. Logo apareceram livros de história patrimonial e didáticos, registros de jornais de época com notas sobre inaugurações, reformas, destruições, centenários, aniversários. A partir de experiências próximas à realidade do aluno, foram discutidas fotografias antigas de parentes, cartões-postais e cartas de familiares que haviam migrado e guardavam na memória certos marcos da cidade como traços de sua identidade.

    Com esta experiência, a turma chegou a perceber que o estudo científico pode estar lado a lado com o saber do cotidiano. Aliás, foi desenvolvido a partir dele. O material recolhido foi classificado, como consequência natural da variedade de fontes utilizadas. A partir desta classificação, teses clássicas foram exploradas. Registros iconográficos, jornalísticos e bibliográficos permitiram introduzir a discussão sobre as várias possibilidades de se fazer História. Afinal, as fontes podem se multiplicar em correntes historiográficas, como história das imagens, história através da imprensa, historia oral e micro-história. Os grupos direcionaram seus interesses e chegaram a consultar bibliografia teórica que os orientasse na busca de novas documentos e possibilidades de interpretação.

    Mas o ponto máximo surgiu a partir da terceira tarefa. Os grupos deveriam ir ao arquivo público e às instituições responsáveis pela memória da cidade para comparar dados de fontes secundárias com os de fontes primárias. A ideia era confirmá-los ou contrastá-los com a documentação existente. Localizar arquivos, documentos, ler o que os dirigentes da cidade pensavam e os argumentos que utilizavam para justificar suas decisões permitiram experimentar a tarefa fundamental do historiador. Além disso, havia as dificuldades reais do exercício do trabalho: instituições desorganizadas ou completamente despreparadas para zelar pelos documentos, ambientes inadequados para armazenamento, catalogações deficientes, péssimas condições de conservação, falta de cuidado com o manuseio, não utilização de luvas, burocracia na solicitação de documentação, suscetibilidade a alergias.

    No fim do segundo mês, a estrutura clássica da sala de aula estava completamente modificada. Pudemos analisar os documentos compilados à medida que os grupos traziam suas ideias e fichamentos. A questão deixou de ser como aprender teoria e passou a ser a preocupação de como empregar o conhecimento teórico na interpretação e organização das fontes. Pensar em formas coerentes de organizar dados e produzir uma escrita lógica foi, de fato, o tópico de maior interesse. Da teoria, passamos às abordagens, o que nos ocupou até o final do semestre. E o aprendizado da História tornou-se a experiência de ser historiador.

     

    Josali do Amaral é professora do Instituto Federal da Paraíba.

    Manual do historiador

    A seguir, cinco passos para ensinar História por meio de documentos:

    1. O professor deve conhecer os marcos arquitetônicos da cidade e estabelecer datas que possam balizar a pesquisa dos alunos.

    2. É preciso uma bibliografia que dê suporte teórico à pesquisa. No caso do trabalho com monumentos, Fustell de Coulanges (A cidade antiga) e Pierre Nora (Entre a memória e a história, a problemática dos lugares). Em cidades com patrimônio artístico cultural, vale bibliografia referente à história da arte e da arquitetura, como Gian Carlo Argan (História da arte como história da cidade) e Marcel Roncayolo (A cidade).

    3. O professor deve ser claro ao solicitar aos alunos que se familiarizem com os monumentos da cidade. Ele definirá o que é um monumento histórico e indicará tarefas indispensáveis à pesquisa, como nome e localização da construção. Deve fazer parte da tarefa também procurar a datação e referenciais que denotem sua importância. É patrimônio tombado? Foi reformado? Está degradado?

    4. É necessário um cronograma de tarefas, para que se cumpram várias etapas da pesquisa histórica ao longo do semestre: eleger o monumento, levantar bibliografia sobre o período em que foi construído, localizar arquivos com fontes primárias, classificar as fontes, fazer a transcrição e a tabulação de dados.

    5. Deve-se deixar claro que em um semestre não é possível estabelecer uma problemática e suas hipóteses explicativas. Elas podem existir como exercício e, caso o professor possa trabalhar mais um ou dois semestres, ter continuidade em outro momento.