- “O seringueiro é o homem que trabalha para escravizar-se”. Menos de duas décadas após a princesa Isabel assinar a Lei Áurea, as condições de vida dos trabalhadores nos seringais da Amazônia assombraram Euclides da Cunha. Aquela era, em suas palavras, uma “terra sem história”.Estávamos no começo do século XX, e o escritor gozava de fama e prestígio após a publicação do clássico Os sertões (1902). A convite do superchanceler do Itamaraty à época, o eminente Barão do Rio Branco, Euclides da Cunha partiu para a Amazônia no final de 1904 como chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. O grupo tinha a missão de realizar as demarcações da fronteira entre o Brasil e o Peru.Mais do que a produção de importantes relatórios, a viagem inspirou o autor a conceber uma nova obra, que jamais iria concluir: Um paraíso perdido. Em 1909, porém, publicou vários escritos importantes sobre a Amazônia no livro À margem da História. Para o escritor que dissecara a alma do sertanejo nordestino em Os sertões, que significados poderiam estar por trás da afirmação de que a Amazônia (e por extensão os seringueiros) não tinha história?
Ao longo de todo o trajeto de Belém a Manaus, e depois de Manaus até as cabeceiras do Rio Purus, já em território peruano, Euclides da Cunha assombrou-se e decepcionou-se com a grandiosidade e o abandono da região. Percebeu ali uma área esquecida pelo resto do país. A admiração do primeiro contato com o gigantismo dos rios e da floresta cedeu lugar às sensações de fadiga e monotonia diante dessa paisagem que se desdobra por uma planície quase infinita.
As confissões foram realizadas não só em À margem da História, mas também em uma entrevista concedida em Manaus, ao Jornal do Comércio, em outubro de 1905, após regressar das cabeceiras do rio Purus, ocasião em que um Euclides perturbado pelas dificuldades da viagem e das doenças afirmou: “a natureza amazônica impressiona, mas não renova o espírito”.Em À margem da História, Euclides não tem dúvida em descrever as embocaduras do Purus e do Juruá, no rio Amazonas, como as “portas que levariam ao paraíso diabólico dos seringais”. Paraíso diabólico que engoliu levas e mais levas de homens que, fugindo das grandes secas do nordeste, foram ao encontro de um trágico e inexorável destino nos seringais ao longo do Purus e do Juruá: o de se tornarem assim como aquela terra, homens à margem da história nacional. Para o escritor, todos os que ali penetrassem abdicariam irreversivelmente das suas melhores qualidades como seres humanos, fulminariam a si próprios.A selva como “paraíso diabólico” capaz de enlouquecer um homem guarda relação com as obras de Joseph Conrad, Coração das trevas e Um posto avançado do progresso – coincidência ou não, publicados pouco antes (1902 e 1897). Terá Euclides lido e se impressionado?Ao longo das paragens exuberantes onde se extraía o látex das héveas, o migrante nordestino que se tornasse seringueiro teria de enfrentar, de acordo com Euclides, a “mais criminosa organização do trabalho que ainda engendrou o mais desaçamado egoísmo”, passando a ser “o homem que trabalharia para escravizar-se”.
Destino magistralmente demonstrado em “Impressões gerais” e “Um clima caluniado”, artigos constantes da primeira parte de À margem da História, nos quais nosso poeta dos sertões nordestinos e amazônicos narra a chegada do migrante nordestino aos seringais acreanos: “não se conhece na História exemplo mais golpeante de emigração tão anárquica, tão precipitada e tão violadora dos mais vulgares preceitos de aclimamento, quanto o da que desde 1879 até hoje atirou, em sucessivas levas, as populações sertanejas do território entre a Paraíba e o Ceará para aquele recanto da Amazônia. Local onde o patrão transforma o migrante – que só poderia contar com sua própria sorte – em seringueiro, e o envia para duras frentes de trabalhos na floresta.No momento de sua chegada, o nordestino, apesar de ser ainda um “brabo”, isto é, não ter aprendido a manusear o corte da seringueira, já estava endividado: havia sido obrigado a comprar seus mantimentos no barracão dos patrões seringalistas a preços exorbitantes e a seguir solitário, levando suas bagagens e mantimentos, para o posto de trabalho no meio da floresta. Ao final de um ano, continuava a ser um devedor. Poucos conseguiam deixar essa terrível condição. Passando de “brabo” a “manso”, o seringueiro via cada vez mais longe o sonhado enriquecimento.Euclides faz uma descrição impressionista da situação desses homens esquecidos pela pátria e esculpidos pelo clima rigoroso, pela natureza brutal e pelas relações sociais opressivas daqueles trópicos amazônicos: “A exploração da seringa, neste ponto pior que a do caucho, impõe o isolamento. Há um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoiévski sombrearia as suas páginas mais lúgubres com esta tortura: a do homem constrangido a calcar durante a vida inteira a mesma estrada, de que ele é o único transeunte, trilha obscurecida, estreitíssima e circulante, que o leva, intermitentemente e desesperadamente, ao mesmo ponto de partida”.
Mas a identidade do seringueiro como um “homem à margem da história” começa a ser delineada muito antes de sua chegada ao inferno verde dos seringais. A viagem do migrante nordestino para as paragens da Amazônia Ocidental é descrita pelo escritor como “a viagem de uma multidão de martirizados”, com suas bocas famintas, seus corpos febrentos de malária e varíola. Uma vez banidos para a região nestas condições, eles só tinham à frente “a missão mais do que dolorosa de desaparecer na imensidão da floresta”.A solidão em meio à selva dos seringais silenciou, por sua vez, todas as tradições nordestinas que porventura poderiam amenizar sua sina de homens “sem história” em uma terra “sem história”. Em “Entre os seringais”, artigo publicado na revista Kosmos, no Rio de Janeiro, em 1906, a imaginação literária de Euclides da Cunha não teve limites ao descrever a abertura e a exploração de um seringal na região do rio Purus. A partir da diabólica geometria da divisão das diferentes porções de terras destinadas à exploração dos seringais, Euclides exortou metaforicamente a figura dos tentáculos de um polvo, descrevendo as estradas contorcidas que envolveram, isolaram e degradaram os corpos castigados e os espíritos atormentados dos migrantes – verdadeiro monstro mitológico amazônico que ditaria os destinos daqueles que estivessem sob seus tentáculos.O escritor fez uso de sua memória geográfica para proceder à busca da identidade do seringueiro, assim como havia feito com o sertanejo: através do recolhimento de fragmentos dispersos de sua existência no espaço distante e atrasado do sertão amazônico, que coexistiu de forma isolada com outras regiões mais modernas do país.A ideia do sertão amazônico como lugar de negação da civilização moldou o sentido como Euclides da Cunha tratou da construção da origem e identidade dos seringueiros no início do século XX. Vê-se que ele ainda estava muito influenciado pelos postulados positivistas da historiografia do século XIX, sobretudo a partir de autores como Thomas Carlyle. Esses pensadores estavam mais interessados nas sociedades dignas de serem chamadas de históricas, com seus heróis altivos e suas instituições voltadas ao progresso, sobretudo a civilização ocidental – um tipo de sociedade que Euclides definitivamente não viu na Amazônia.Adriana Conceição dos Santos da Silva é professora da rede pública do estado de Rondônia.Alexandre Pacheco é professor da Universidade Federal de Rondônia.Saiba MaisAGRÓ, Éttore Finazzi & AGRÓ, Ettore Finazzi. Geografias da Memória: A Literatura Brasileira entre História e Genealogia. Anos 90: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nº 12, p. 07-16, dez. 1999.CUNHA, Euclides da. À margem da História. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006.CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Col. A Obra-prima de cada Autor. São Paulo: Martin Claret, 2005.TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o paraíso perdido. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1992.
Terra sem história
Adriana Conceição dos Santos da Silva e Alexandre Pacheco