Documentos históricos digitalizados circulam e multiplicam-se cada vez mais na internet. Até nas redes sociais, como o Facebook, é possível encontrar desde imagens da Constituição norte-americana até depoimentos de torturadores da época da ditadura brasileira.
Os grandes arquivos europeus e americanos lideram a disponibilização de imagens de documentos online. No site do Arquivo Nacional inglês encontra-se, de cara, um link no qual está escrito Education. Ele leva a opções de pesquisa por período – da alta Idade Média à contemporaneidade – ou por gênero, dando acesso a conteúdos em áudio e vídeo, além de jogos e oficinas que podem ser agendadas no Arquivo, e com as quais também se pode interagir online. Para os professores há muitos planos de aula disponíveis para download, pré-formatados por série, tema e indicação de relações com os parâmetros curriculares ingleses.Os Teachers’ Resources (Recursos para Professores) também têm lugar de destaque no site do Arquivo Nacional dos Estados Unidos. Ali estão disponíveis documentos interessantíssimos, como o da patente da lâmpada elétrica de Thomas Edison e um mapa de Londres no século XVII, após o famoso incêndio que destruiu parte da cidade. Somos seduzidos pelas imagens de documentos antes inacessíveis e um universo de possibilidades de ensino parece se abrir por meio das novas tecnologias de informação e comunicação.Acervos digitais:Não é incomum, nos arquivos, a visita de alunos instruídos a pesquisar, por exemplo, “a década de 60”. Essa ideia, que talvez fosse viável em uma pesquisa bibliográfica escolar, torna-se um recorte gigantesco em um arquivo, que pode ter milhares de documentos sobre o período. É fundamental que o professor selecione um recorte menor e, se possível, que especifique um conjunto de documentos passível de ser investigado pelos alunos, levando em conta seus conhecimentos prévios e o tempo que terão para a pesquisa. Um exemplo simples de recorte poderia ser de documentos relativos à censura da produção musical brasileira na primeira década do regime militar.Ao navegarmos pelas séries documentais nos sites dos arquivos, nem sempre lembramos que aquelas já são seleções de documentos, e não todo o acervo. Ou seja, sempre há uma escolha e um recorte, a partir de conjuntos documentais ou de documentos avulsos, feitos pelo arquivo para expor online. E entre os documentos disponíveis, os mecanismos de busca internos fazem novos recortes a partir de palavras-chave: são os chamados “metadados”, ligados a cada documento digitalizado. A seleção do conteúdo para publicação e seu tratamento arquivístico, com a inserção das palavras-chave, são decisivos para potencializar a experiência de ensino criada pela interação com o navegante-leitor.Certa vez, uma professora me relatou sua frustração com uma pesquisa online no site de um grande arquivo paulista. Assim que a instituição digitalizou e publicou seu acervo documental do século XIX, ela criou uma atividade didática com seus alunos de ensino médio, incluindo uma pesquisa online nesse acervo relativa à escravidão em São Paulo. No site do arquivo, no campo de busca, seus alunos digitaram “escravidão” e aguardaram. A consulta retornou apenas três documentos. Intrigada e decepcionada, ela se perguntou: “Será que praticamente não há registros da escravidão nesse acervo?”.Dúvida semelhante deve estar na cabeça de muitos professores que se aventuram nos sites de arquivos. Sua resposta pode estar no recorte do acervo digitalizado e publicado, mas provavelmente tem mais relação com a existência – ou não – do trabalho de criação e inserção de palavras-chave em cada documento eletrônico, que faz emergir, pelo motor de busca do site, o conteúdo relativo a um ou outro tema, em meio às centenas, muitas vezes milhares de imagens de documentos online. “Disponibilizar” os documentos sem associá-los a palavras-chave bem planejadas coloca o leitor pouco afeito à pesquisa em arquivos em uma floresta sem caminhos e sem bússola.Em sites de arquivos brasileiros, fotografias, revistas, jornais, músicas, filmes e peças feitas para a TV têm atraído especialmente a atenção do público, que reproduz, comenta e até faz “remixagem” desses achados nas redes sociais. As memórias midiáticas alcançam grandes grupos de leitores-navegadores e são o solo de lembranças comuns, embora com diferentes significados. Há séries inteiras de periódicos e coleções fotográficas em acervos públicos e privados. Entre eles, por exemplo, o da Agência Nacional de Notícias, publicado pelo Arquivo Nacional do Brasil no portal Zappiens. Lá está parte da propaganda política cinematográfica e televisiva feita pelo governo federal, da década de 1930 à de 1970. Esse conjunto documental é pleno de possibilidades para experiências de pesquisa pelos alunos. Política, meio ambiente, agricultura, educação... Todas as ações exaltadas pela agência oficial de notícias podem ser lidas a contrapelo, em seu contexto histórico.Muitas experiências de aprendizagem são possíveis com os documentos de arquivo online. Podemos facilmente nos “sentir em casa”, no passado revisitado com esses documentos transcritos e assépticos ao alcance de nossos olhos. Nada seria mais enganador, embora tão atraente: a experiência de encontro com os registros do passado é certamente muito mais significativa se nos desloca de nosso presente, quando nos traz estranhamento e nos leva em busca de outra temporalidade, quando nos lembra que o passado é um território estrangeiro.Esse esforço educativo pode ser entendido como um movimento contrário à “monumentalização” dos documentos. Muitas vezes, quando colocados online e acessíveis nos sites, os “tesouros” dos arquivos nacionais, os “documentos da Nação”, tendem a reforçar a lógica do espetáculo, como se fossem feitos mais para serem admirados do que pesquisados. Por isso é imprescindível o exercício de leitura crítica dos sites de arquivos (como, aliás, é necessário com qualquer material didático). Os percursos possibilitados pela navegação são muitas vezes concebidos como as tradicionais exposições de documentos de arquivos: eles criam discursos, produzindo narrativas audiovisuais.Por estas e outras razões, é importante orientar os alunos a lerem com bastante cuidado o que está online. As tecnologias de informação e comunicação tornaram a reprodução de imagens brincadeira de criança. A paródia da narrativa documental pode ser feita facilmente e publicada em rede com ferramentas simples, como blogs e sites de compartilhamento de textos, imagens, sons e audiovisuais. Até uma educadíssima política francesa, Ségolène Royal, já foi pega por uma dessas troças: homenageou um compatriota antiescravagista do século XVIII, sem saber que ele era um personagem de ficção, inventado e postado na Wikipédia.Em meio à multiplicação de informações digitais sem rastreabilidade, os arquivos públicos se diferenciam por garantir a autenticidade de seus documentos, que devem poder responder àquelas perguntas fundamentais do pesquisador: quem produziu o documento, onde, quando e como, em que circunstâncias. Para isso, organizam os documentos a partir de seu contexto de produção, mantendo seu agrupamento original, registrando a história de cada conjunto documental. Na reprodução de documentos online para atividades educativas, podemos e devemos registrar essas informações de contexto. Ao “baixar” um arquivo eletrônico com a imagem de um documento de arquivo, é importante anotar dados que nos permitam rastrear sua origem e contexto de produção, como fazemos com os documentos textuais e iconográficos. De que arquivo vieram, de que fundo ou coleção e, importante, a data de acesso ao site. Estas informações de contexto devem aparecer na legenda das imagens ao criarmos nossas atividades de pesquisa escolar.Por outro lado, para ampliar o acesso a seus acervos, a ação educativa nos arquivos poderia incorporar informações sobre a organização dos documentos arquivísticos, sua forma de classificação e ordenamento, as restrições impostas para sua conservação.Também seria importante difundir, para um público mais amplo, o conhecimento sobre os instrumentos de busca criados pelos arquivistas, os chamados guias de arquivo, inventários e afins. Esses conhecimentos são uma espécie de guia de leitura, como mapas da mina, que nos permitem encontrar, com autonomia, os documentos e as informações que procuramos nos acervos dos arquivos. Se pudermos estreitar esses diálogos entre escolas e arquivos, estaremos estimulando a construção de novas possibilidades de criação de conhecimentos histórico-educacionais.Adriana Carvalho Koyama é pesquisadora-colaboradora do Centro de Memória- Unicamp e autora da tese “Arquivos online: práticas de memória, de ensino de História e de educação das sensibilidades” (Unicamp, 2013).Saiba MaisARQUIVO NACIONAL. Revista Acervo. Dossiê Difusão Cultural em Arquivos, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, 2012. Disponível aqui. Acesso em: 05/06/2014.KOYAMA, Adriana Carvalho. “Arquivos online: práticas de memória, de ensino de História e de educação das sensibilidades”. Tese de doutorado, Campinas, Unicamp, 2013. Disponível aqui. Acesso em: 05/06/2014.MATTOZZI, Ivo. “Didática da História e Educação para o patrimônio”. Revista Nova Escola, jun./jul. 2013. Disponível aqui.
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