Sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi expressa no prefácio de É isto um homem (1947) a necessidade imperativa e incontornável, corpórea mesmo, do testemunho daquele que saiu vivo de um campo de concentração nazista. E acrescenta a essa ideia outro dado fundamental: sua implícita dialogicidade, ou seja, ter alguém para ouvir quem testemunha. “A necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares”, escreve Levi.
Estas palavras colocam o testemunho como atividade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta do Lager (campo de concentração, em alemão) ou de outra situação radical de violência que desencadeia essa carência absoluta de narrar. Levi usa as expressões “aos outros” e “os outros” entre aspas –destaque que indica tanto o sentimento de que entre o sobrevivente e “os outros” existia uma barreira que isolava aquele da vivência com seus demais companheiros de humanidade, como também a consequente dificuldade prevista desta cena narrativa.Entre os sonhos obsessivos dos sobreviventes consta em primeiro lugar aquele em que se viam narrando suas histórias, após retornar ao lar. O próprio Levi apresenta uma versão reveladora desse sonho, na qual as pessoas, ao ouvirem sua narrativa, se retiravam do recinto deixando-o a sós com as suas palavras. A diferença do sobrevivente é vista aí como impossível de ser eliminada. A narrativa teria, portanto, entre os motivos que a tornavam elementar e absolutamente necessária, o desafio de estabelecer uma ponte com “os outros”, de conseguir resgatar o sobrevivente do papel de “estrangeiro”, de romper com os muros do Lager.A experiência do campo de concentração foi tão única e original que se formulou a expressão “planeta Auschwitz” para expressar isso. A narrativa seria a picareta que poderia ajudar a derrubar o muro que separa o universo do Lager do nosso. A circulação das imagens do campo de concentração, que se inscreveram como uma queimadura na memória do sobrevivente, à medida que são aos poucos traduzidas, transpostas para “os outros”, permite que ele inicie seu trabalho de religamento ao mundo, de reconstrução de sua identidade e de seu estar no mundo. Narrar aquele trauma tem este sentido primário de desejo de renascer.Nas “catástrofes históricas”, como os genocídios ou as perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da população, a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade. A já em si extremamente complexa tarefa de narrar essas lembranças adquire assim mais uma série de determinantes.No caso da Shoah (a tentativa nazista de exterminar os judeus da Europa), a literatura e os escritos com forte teor testemunhal surgiram ainda durante a Segunda Guerra Mundial, e essa produção se estende até hoje. Primo Levi deve ser considerado um dos autores que levaram mais longe e do modo mais acabado a reinscrição testemunhal da catástrofe. Este tipo de literatura, no entanto, foi e é ainda praticada por inúmeros outros sobreviventes da guerra, e por testemunhas “secundárias”, que não vivenciaram diretamente os eventos. Entre os que escaparam da Shoah, escrevem autores como Jorge Semprun, Ida Fink, Charlotte Delbo, Jean Améry, Robert Antelme, Tadeusz Borowski, Nelly Sachs, Paul Celan, Ruth Klüger e, recentemente, Otto Dov Kulka.Toda a literatura tem seu teor testemunhal, mas esse aspecto ganhou uma nova dimensão no século XX devido ao impressionante acúmulo de mortes violentas por guerras, genocídios e ditaduras. Em versos que definem a sua poética, Celan, nascido na Romênia em 1920, escreveu: “Nos rios ao norte do futuro / eu lanço a rede que tu / hesitante carregas / com sombras escritas por / pedras”. Se nesse poema ? curto como um epitáfio ? as sombras remetem às letras sobre o papel branco, as pedras representam o túmulo, as lápides que a sua poesia busca erigir para os milhões de judeus que morreram sem direito de serem enterrados e sem terem seus nomes inscritos em lápides. A “rede lançada” pode ser entendida como os próprios versos do autor na sua tentativa tanto de apanhar os mortos como de atingir um leitor futuro. Ou seja, nós.O psicanalista Dori Laub, em um ensaio sobre o tema do testemunho da Shoah, dedica especial atenção para a questão da “impossibilidade de narração”. E formula a ideia de que o Holocausto foi “um evento sem testemunha”. Ele destaca a inviabilidade daquele que esteve no Lager – o que se passou com o próprio Laub quando criança – de se afastar de um evento tão contaminante para poder gerar um relato lúcido e íntegro. O grau de violência impede que isto possa ocorrer. Sem testemunho, evidentemente, não se constitui a figura da testemunha. Para ele, a principal tarefa que coube aos sobreviventes foi a de construir posteriormente esse registro.Primo Levi também destacou em diversas oportunidades essa impossibilidade do testemunho. Aqueles que produziram relatos, ele diz, foram justamente os que conseguiram se manter a uma certa distância do evento, isto é, não foram totalmente levados por ele como o que ocorreu com a maioria dos que passaram pelos campos e morreram, mas também com os que haviam sido totalmente destruídos em sua capacidade de resistir.Os que ocuparam algum local na hierarquia do campo, por conta de suas relações políticas ou por seu conhecimento técnico – o caso do próprio químico Levi – estes puderam testemunhar. Mesmo assim, não de forma integral, já que a distância deles também implica uma visão atenuada dos fatos. Para Levi, não se pode falar que não existiu o testemunho no Lager, mas sim que ele foi parcial, limitado. Na introdução de Os afogados e os sobreviventes ele apenas aponta para essas limitações, como lemos na famosa frase: “a história do Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão”. Mas mesmo para o autor, membro desse grupo de paradoxais “privilegiados” dentro do inferno, a realidade do campo permaneceu enterrada como em uma cripta, que suas palavras atingiram com força, mas nunca conseguiram quebrar, o que talvez esteja na origem do suicídio de Primo Levi, ocorrido em 1987.No seu É isto um homem, de 1947, ele escreve: “Parecia impossível que existisse realmente um mundo e um tempo, a não ser nosso mundo de lama e nosso tempo estéril e estagnado, para o qual já não conseguíamos imaginar um fim”. No mesmo livro há outra passagem-chave: “Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado em frente a uma mesa, escrevendo – hoje eu mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido”. Neste trecho há dois momentos exemplares do testemunho. Na situação testemunhal o tempo passado é tempo presente. Mais especificamente, o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa. Levi diz que nesse hoje da sua escritura ele não está certo se os fatos de fato aconteceram.Hélène Piralian, psicanalista de origem armênia, refletiu sobre esta questão ao tratar do genocídio armênio (1915-1917) e de sua representação. A reflexão também vale para os sobreviventes da Shoah. Para ela, a simbolização do evento implica a “(re)construção de um espaço simbólico de vida”, que deve gerar uma retemporalização do fato antes embalsamado. Ele adenda, assim, ao fluxo dos demais acontecimentos da vida.Piralian fala também, e de modo muito feliz, de uma tridimensionalidade advinda da simbolização. Em vez da imagem calcada e decalcada, chata, que vem do choque traumático, a cena simbolizada adquire tridimensionalidade. A linearidade da narrativa, suas repetições, a construção de metáforas, tudo trabalha no sentido de dar esta nova camada aos fatos antes enterrados. Conquistar esta nova dimensão equivale a conseguir sair da posição do sobrevivente para voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. Este é o desafio da literatura de testemunho da Shoah.Márcio Seligmann-Silva é professor titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas e autor do livro O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (Editora 34, 2005) e organizador de História, Memória e Literatura: o testemunho na era das catástrofes (Editora da Unicamp, 2003).Saiba MaisASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Trad. Paulo Soethe. Campinas: Editora Unicamp, 2012.FELMAN, Shoshana. O inconsciente jurídico: julgamentos e traumas no século XX. Trad. Ariani Sudatti, ver. téc. Bruno Mendes dos Santos. São Paulo: Edipro, 2014.LEVI, Primo. Os Afogados e os Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
Testemunhar Auschwitz
Márcio Seligmann-Silva