“Me disseram que seu filho gritou como uma menina quando eles o pregaram na cruz. E sua esposa gemeu como uma prostituta quando os soldados a possuíram”. No filme Gladiador (2000), esta frase cruel é dita pelo imperador romano Commodus ao protagonista da trama. Embora saída de um filme de Hollywood, sujeito a anacronismos, a cena faz lembrar uma das práticas mais odiosas dos exércitos em conflitos bélicos: a violência contra mulheres e crianças, que se repete da Antiguidade aos dias de hoje. Também a pintura, ao longo do tempo, retrata o sofrimento dos inocentes em situações de guerra.
Marte, deus da guerra na mitologia romana, é representado por um homem de lança, capacete e escudo. Vênus, deusa do amor e da beleza, por uma mulher jovem. As guerras, lugares máximos da agressividade humana, foram por séculos eventos majoritariamente masculinos. Não é sem razão que as raríssimas exceções de mulheres lutando nos campos de batalha são lembradas até hoje, como Joana D’Arc (1412-1431) na França. Na pintura brasileira, alguns quadros produzidos no século XIX retratando combates, como Batalha dos Guararapes, de Victor Meirelles, e Batalha do Campo Grande, de Pedro Américo, ignoram a figura feminina.Quando as mulheres surgem, nas cenas de guerra das artes plásticas brasileira e europeia da época, sua presença tem diferentes significados. Os conflitos anteriores ao século XX ocorriam longe das cidades. Entretanto, são famosas algumas histórias de invasões e aniquilamento do povo inimigo, exatamente onde se encontram as mulheres. Nessas pinturas, a figura feminina está associada basicamente a três representações: a corrosão da moral humana pela prática do estupro de guerra, a destruição da pureza, da beleza e do futuro pelo assassinato de mulheres e crianças, ou a exaltação da liberdade, uma alegoria que conduz os exércitos na direção da justiça e do sucesso.Quase sempre há partes do corpo à mostra, normalmente pernas e seios. Isto sugere a ameaça do estupro, utilizado como guerra psicológica para humilhar o inimigo e destruir sua moral, ou promover limpeza étnica. Um dos exemplos mais célebres é o “Rapto das sabinas”, tema diversas vezes pintado desde o Renascimento até a arte moderna. Essa lenda narra a gênese da população de Roma e seus primeiros movimentos de expansão. Ela conta que Rômulo, primeiro governante da cidade, percebendo o baixo número de mulheres na população, inicia negociações com os chefes dos sabinos, um povo vizinho, na tentativa de conseguir esposas para seus jovens. Diante da recusa dos sabinos, os romanos resolvem raptar as mulheres.Expoente máximo do neoclassicismo francês entre os séculos XVIII e XIX, Jacques Louis David escolheu retratar um momento posterior, quando os sabinos entram em guerra contra os romanos para recuperar suas mulheres, já casadas com os sequestradores. Na obra A intervenção das mulheres sabinas, David coloca-as entre os pais e os maridos, pedindo que não se matem. No centro do quadro, aparece a forte figura de Hersília, casada com Rômulo, representando a maternidade, o perdão e a reconciliação. Com os braços abertos, ela urge que todos olhem para as crianças e para o futuro – passa de vítima a protagonista da paz.
A destruição da pureza e da beleza está presente no quadro As mulheres suliotas, pintado pelo holandês Ary Scheffer em 1827. O tema é a morte de mulheres e crianças em decorrência de um conflito armado entre os suliotas, povo autônomo das montanhas gregas, e o Império Otomano, que dominava a região. Ao contrário do caráter lendário da história das sabinas, o triste episódio das mulheres suliotas de fato ocorreu. Em uma das batalhas, cercadas pelos otomanos no topo de uma montanha, inúmeras mulheres preferiram se jogar do penhasco, abraçadas a seus filhos, a serem capturadas pelo exército inimigo. Sabedoras das atrocidades que iriam ocorrer com elas e com as crianças, preferiram uma morte rápida.A tela de Scheffer é uma das mais trágicas da história da arte. Os seios e as costas à mostra estão ali para sugerir a vulnerabilidade do corpo feminino diante da ameaça masculina, representada por um combate enevoado montanha abaixo. A cabeleira negra de uma das mães que se deita sobre o filho, quase a sair dos limites do quadro e a derramar-se sobre o espectador, parece ser um signo da morte. Victor Meirelles, que foi pensionista do Estado brasileiro em Paris entre 1853 e 1861, produziu uma cópia desse quadro para aprimorar seus dotes artísticos, e enviou-a à Academia Imperial de Belas Artes. O artista pintou cabelos negros com igual força em sua Moema, morta na praia, o que dá a impressão de que o signo romântico da morte na tela de Scheffer influenciou-o. No entanto, em seus quadros de batalhas, Meirelles não incluiu mulheres, preferindo não tocar nessa temática delicada e vergonhosa de guerra, e sim enaltecer as glórias e a bravura daqueles que lutavam pelo Brasil.Foi Pedro Américo quem, em sua gigantesca tela de 50 metros quadrados, Batalha do Avaí, colocou uma única mulher em um turbilhão de homens a matar e a morrer na Guerra do Paraguai. Ela aparece à direita, no canto da tela, mas em primeiro plano. Está numa carroça que se quebra em frangalhos em meio à luta, segurando seu filho no alto como se o protegesse do horror que se desenrola naquele solo tingido de sangue, ao lado de um senhor de idade e de outra filha. A carroça tombada parece ser a única proteção de uma família surpreendida pela batalha. Esse detalhe não passou em branco e causou grande comoção quando a tela veio a público, em 1879.A guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai foi devastadora não apenas para seus homens em combate. Afetou velhos, mulheres e crianças com doenças, fome e também mortes em conflito. Aquela figura pintada por Américo – mais uma vez com um dos seios expostos – representava o injusto sofrimento dos inocentes.A presença feminina em quadros de batalha não apenas serve para representar o horror da destruição da moral, da pureza e da beleza, como pode surgir em forma de alegoria da justiça e da liberdade. Quando essa decisão é tomada pelo artista, raramente a mulher-símbolo aparece acanhada em um canto da tela: ao contrário, ela ganha lugar de destaque. É uma ideia metamorfoseada em corpo de mulher. Figuras como a francesa Marianne ou a americana Columbia, alegorias da República, quase sempre pairam sobre a cena, sem que seus pés toquem o solo. Trazem vestes clássicas da Antiguidade e por vezes deixam parte do corpo à mostra, sobretudo quando representam a nação a nutrir seus cidadãos.O caso mais célebre é o quadro do pintor romântico francês Eugène Delacroix, autor de A liberdade guiando o povo, de 1830. Nele, há uma mulher com os seios à mostra, no centro da tela, segurando uma baioneta e empunhando a bandeira tricolor revolucionária. Delacroix quis aproximar essa alegoria de uma mulher de verdade, pois ela não flutua sobre o campo de batalha: junta-se a ele, segurando uma arma usada nas revoluções liberais daquela década. Ela não se enquadra no padrão de beleza neoclássico das artes plásticas da época, idealizado, de corpos perfeitos e depilados. Tem pelos nas axilas e formas robustas, como uma moça do povo. Essa mistura de figura alegórica com mulher real é romântica e inovadora para a época.A humanidade ainda se espanta com a ocorrência de estupros nas diversas batalhas que ocorrem no mundo, sobretudo em guerras civis. Os atuais casos do grupo fundamentalista islâmico Boko Haram, que sequestra meninas na Nigéria para servirem de escravas sexuais, são uma versão sórdida e indigesta do “Rapto das sabinas”. Por mais que se fale de Belas Artes, e que esses quadros sejam todos realmente belos, não se pode esquecer a tragédia humana que se esconde por baixo das delicadas pinceladas de tinta.Eneida Queiroz é historiadora do Instituto Brasileiro de Museus.Saiba maisSCHWARCZ, Lilia Moritz. A Batalha do Avaí – A Beleza da Barbárie: a Guerra do Paraguai pintada por Pedro Américo. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2013.COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Editora Senac, 2005.BOPPRÉ, Fernando C. “Victor Meirelles: quando ver é perder”. In: 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, nº 4, out. 2009. Disponível em: http://www.dezenovevinte. net/obras/vm_fboppre.htm.
Tingidas de tragédia
Eneida Queiroz