Tiroteio organizado

Wilson de Oliveira Neto e Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes

  • Os descendentes de alemães do sul do Brasil são conhecidos em todo o país como um pessoal festeiro graças à fama de eventos como a Oktoberfest de Blumenau (SC), que acontece em outubro. Mas não é só nesse mês que eles se mobilizam para celebrar a herança dos colonizadores alemães. Os adeptos do tiro ao alvo, por exemplo, fazem suas Schuetzenfest, ou “festas de atiradores”, em outras épocas do ano. As raízes dessa celebração estão nas Schuetzen-Vereine, sociedades de atiradores que reuniram os imigrantes há mais de 100 anos e se mantêm vivas até hoje, ajudando a difundir esse esporte no Brasil.

    Uma das primeiras Schuetzen-Verein do Brasil foi fundada na colônia de imigrantes Dona Francisca, atual Joinville (SC), em 1855, apenas quatro anos após a fundação da colônia. As sociedades de atiradores nasceram com o objetivo de promover treinos, competições e festas em um país onde se disputava o tiro ao alvo desde 1810 em dependências militares, como a Academia Real Militar do Rio de Janeiro. Outras funções que acabaram sendo assumidas pelas Schuetzen-Vereine foram a de defender os colonos – que sofriam com a falta de amparo do governo contra possíveis ataques de animais selvagens e de índios – e a de propiciar um local onde eles pudessem discutir os problemas da comunidade, bater papo, lembrar da terra natal ou simplesmente se divertir. A justificativa para a fundação da Schuetzen-Verein zu Joinville, em 1855, segundo a Revista Vida Nova, publicada em Joinville em 1951, era “reunir todos os homens para exercitar-se no manejo das armas para a defesa mútua contra presumíveis ataques por parte dos índios ou de animais selvagens, para garantir a propriedade pessoal em boa camaradagem social”.

    Mas os imigrantes não ficavam só esperando os ataques indígenas. Muitos deles integraram tropas de bugreiros, que eram financiadas pelo poder estadual ou municipal, e formadas por elementos locais, luso-brasileiros e por imigrantes, para caçar índios, conhecidos como “bugres”. Essas comitivas, com grupos de oito a quinze homens, entravam nas matas com a missão de livrar o território da ameaça dos índios, que revidavam o ataque.

    As sociedades de tiro já existiam havia muito tempo na Alemanha e descendiam das antigas corporações de atiradores que defendiam as cidades medievais europeias. Já havia grupos de atiradores na Europa que, cerca de 800 anos antes, usavam armas como o arco e a besta, que lançavam flechas e dardos. Com a introdução da pólvora no Ocidente, também passaram a usar armas de fogo. Na primavera, essas agremiações promoviam festas e torneios de tiro ao alvo.

    Embora a função defensiva dessas corporações tenha entrado em declínio na Europa a partir da Idade Moderna, a importância cultural das sociedades de atiradores continuou forte. Os clubes fundados no Brasil herdaram delas seu caráter militar, que previa o uso de faixas, brasões, medalhas e uniformes, além de uma hierarquia estabelecida. Disciplinados, os atiradores costumavam acrescentar um tom marcial aos seus desfiles e aparições públicas. Nessas ocasiões, eram coordenados por um capitão ou comandante, em geral um membro antigo do clube e respeitado pelos sócios. Sua autoridade era simbolizada por uma espada.

    Esses costumes estavam presentes nas Schuetzenfest, também chamadas de “festas de tiro de rei”, que no século XIX eram realizadas, geralmente, no primeiro semestre. O ponto alto da festa era a prova de tiro de rei, cujo vencedor ganhava o título de “Rei do Tiro”. Seu feito era registrado em um alvo-troféu, conhecido como placa, que era afixada na parede do clube onde a competição havia ocorrido. O custo de sua confecção era dividido entre o campeão, os príncipes e o xerife ou cavalheiro, mas sua decoração era feita com temas escolhidos exclusivamente pelo rei do tiro. Em certos lugares, o costume permanece até hoje, sendo os motivos da placa alusivos às histórias familiares e pessoais dos vencedores. “Quando fui rei do tiro, homenageei a minha avó com a casa na qual ela nasceu”, explica Lisandro Fendrich, da Sociedade de Atiradores 23 de Setembro, de São Bento do Sul (SC). “Se um dia eu for rei novamente, irei homenagear o meu avô com o local onde ele aprendeu o ofício de padeiro, pois a minha graduação foi paga à base de pão”.

    Até meados do século XX, as festas duravam cerca de três dias, com competições, bailes, banquetes e os desfiles de atiradores, como lembra a descendente de alemães Mary Charlotte Borges Grossl de Mello, também de São Bento do Sul: “Tudo começava de manhã com uma festa do tiro. Todos atirando e nós observando para ver quem atirava melhor e quem não tinha boa pontaria. Depois vinha um almoço bastante festivo. E, em seguida, o rei era escolhido. A banda vinha buscá-lo em casa, levava-o para o clube, e aí começava a celebração, que terminava com um baile”. O pai de Mary Charlotte, Werner Grossl, foi por muitos anos o artista responsável pela confecção dos alvos usados pela Sociedade de Atiradores 23 de Setembro, que até hoje promove suas festas.

    Mas os clubes de tiro não foram as únicas associações criadas pelos alemães no Brasil. Eles também fundaram sociedades de socorro mútuo, de agricultores, de cantores, de leitores e de ginásticos. Todas elas usavam a língua alemã em suas reuniões, os símbolos que remetiam ao país europeu e até equipamentos importados de lá.

    Essas entidades, principalmente as de atiradores, começaram a causar certo receio nas autoridades brasileiras durante o Estado Novo (1937-1945), época em que o nacionalismo exacerbado estava em alta. Para os militares e políticos em geral, os imigrantes deveriam se “abrasileirar”. Esse anseio levou à criação, em 1938, de uma Campanha de Nacionalização no sul do Brasil, conduzida pelo Exército. A iniciativa previa uma série de medidas repressivas, como a proibição do uso de idiomas estrangeiros e a intervenção em instituições étnicas como as Schuetzen-Vereine.

    Após a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a situação piorou para os imigrantes. Muitos alemães, italianos e japoneses foram presos ou tiveram seus bens apreendidos. As medidas de nacionalização recrudesceram e foi proibida qualquer manifestação cultural relacionada à Itália, ao Japão e à Alemanha, países que compunham as forças do Eixo durante o conflito. Muitas sociedades de atiradores e outras instituições germano-brasileiras foram forçadas a mudar seus nomes e estatutos. Algumas foram fechadas e tiveram suas instalações ocupadas por tropas militares.

    O memorialista Alexandre Pfeiffer recorda que a sede da antiga Schuetzen-Verein São Bento, em São Bento do Sul (SC), foi ocupada por soldados e depredada. Casos semelhantes aconteceram em outros locais do sul do Brasil. As sociedades só foram reabertas após o fim do conflito. Desde então, os clubes de tiro vêm conservando seus nomes em português e incluem outras atividades, como o bolão, esporte de origem alemã do qual o boliche é uma variação. Da mesma forma, instituições que só ofereciam outros esportes passam a investir no tiro. É o caso da Sociedade Ginástica e Desportiva São Bento, de São Bento do Sul, cujo carro-chefe era a ginástica, mas criou em 1961 o Clube de Tiro Águia Negra, inspirado no olhar certeiro da águia durante a caçada e também no símbolo do império alemão.

    Em alguns clubes, as armas de fogo foram subtituídas por carabinas de ar comprimido. Em Santa Catarina, muitas empresas adotam o esporte como forma de recreação para seus funcionários, como a Tupy Fundições, de Joinville, que tem equipes que participam de diversos torneios de carabina ar seta, uma modalidade de tiro ao alvo disputada com armas de ar comprimido. Assim, o tiro passou a ser praticado também por pessoas sem ascendência alemã.

    Atualmente, o tiro e as festas de atiradores misturam a manutenção e a adaptação de antigos costumes. Devido à burocracia e ao custo, muitos praticam o esporte com armas de ar comprimido. A maioria das festas de tiro de rei é realizada no final do ano, quando é escolhido o melhor atirador de cada clube. Elas duram apenas um dia e seus desfiles são feitos de carro, e não mais a pé ou de charrete. Os almoços e jantares, antes servidos na casa do rei do tiro, agora acontecem em restaurantes e são bancados por quem deles participa. Porém, os vencedores continuam ganhando medalhas e honrarias, como os postos de rei, príncipe e cavalheiro. Essas e outras adaptações aos novos tempos mantêm vivos o esporte e seus costumes. Além disso, os atiradores, ainda hoje, percebem que o esporte vai além dos estandes e, tal como no passado, exerce uma grande influência no seu modo de vida.

     

    Wilson de Oliveira Neto é professor do Colégio Global (São Bento do Sul, SC) e autor da dissertação “A prática do tiro no município de São Bento do Sul, Santa Catarina: um estudo sobre esporte e patrimônio cultural” (Univille, 2010). Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes é professora da Universidade da Região de Joinville. São coautores de O Exército e a cidade (Editora Univille, 2008).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    KITA, Silvia R. Toassi. Festas de rei. Jaraguá do Sul: Associação dos Clubes e Sociedades de Tiro      do Vale do Itapocu, 2000.

    PETRY, Sueli M. Vanzuita. Os clubes de caça e tiro na região de Blumenau: 1859-1981. Blumenau: Fundação Casa Dr. Blumenau, 1982.

    SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: UnB, 1990.