Desde o Descobrimento, um enorme contingente de pessoas, chamadas até hoje de “índios” e pertencentes a diferentes grupos étnicos, lutou para sobreviver física e culturalmente. Mas elas não são coisa do passado. Atualmente ainda existem por todo o país mais de 230 sociedades distintas, que falam pelo menos 180 línguas diferentes da língua portuguesa. Algumas dessas sociedades são numericamente diminutas, com cerca de 60 indígenas, como os ofayés, que vivem em Mato Grosso do Sul, enquanto outras são formadas por milhares de indivíduos – mais de 36.000 –, como os ticunas, que vivem no Amazonas e se estendem até o Peru e a Colômbia.
Em geral, nas escolas brasileiras de educação básica, os índios recebem alguma atenção somente no mês de abril, quando é comemorado o Dia do Índio, no dia 19. Nos livros didáticos, os verbos que se referem a eles invariavelmente se encontram no pretérito – caçavam, pescavam, dormiam em redes –, e normalmente lhes é reservado um espaço no “cenário do Descobrimento” para depois desaparecerem e não retornarem mais à História. Outro equívoco é pensar que não existem “índios puros” – como se aqueles dos tempos de Cabral fossem mais “legítimos” do que os nossos contemporâneos.
Numa tentativa de reverter essa situação de desconhecimento, foi promulgada em 2008 a Lei nº. 11.645, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e culturas indígenas na educação básica, abrangendo conteúdos de todas as disciplinas escolares, especialmente os de História, Geografia, Artes e Literatura. Professores e alunos têm se perguntado o que podem fazer para conhecer melhor as questões indígenas, mas há deficiências na formação de muitos profissionais.
A falta de material didático já não é um problema. Hoje em dia, o acesso a livros, CDs, filmes de ficção e documentários em DVD é relativamente fácil. Sem contar a literatura infantil e infantojuvenil de boa qualidade e a possibilidade de se trabalhar com materiais diversificados, como cartões e selos postais que trazem imagens de índios. Quanto à formação de profissionais, desde a promulgação da lei, muitas universidades e faculdades oferecem cursos de extensão ou de pós-graduação, alguns deles on-line.
Na Internet, sitesespecializados disponibilizam informações confiáveis e de qualidade, como o da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o da organização não governamental Instituto Socioambiental (ISA), que edita a enciclopédia PovosIndígenasnoBrasil. A publicação contém verbetes sobre populações indígenas de ontem e de hoje. Para uma visão mais geral sobre as Américas, há a chamada “página do Melatti”, em que o experiente antropólogo Júlio Cezar Melatti, da Universidade de Brasília, oferece uma vasta gama de textos a respeito da temática indígena no continente. Especificamente no campo da História, há o endereço eletrônico denominado “Os índios na História do Brasil”, mantido pelo professor John Manuel Monteiro, da Universidade Estadual de Campinas.
Todos esses recursos ajudam a minimizar o fato de que muitos professores e alunos alimentam preconceitos em nossa sociedade e nutrem estereótipos sobre as populações indígenas. O resultado é um jeito deformado de enxergar os índios, condenando-os a serem “primitivos” ou considerando que o fato de os nossos contemporâneos usarem celulares, aparelhos de televisão ou computadores os tornam “aculturados”, “menos índios”. Como se mais de 500 anos de contatos entre os índios e a sociedade não indígena não tivessem consequências e fosse possível esperar que os atikuns, terenas, xavantes, baniwas, kaingangs e tantos outros apresentem comportamentos e cultura material semelhantes (para não dizer idênticos) aos de seus ancestrais.
Faz parte desse esforço de conhecimento a recuperação da participação indígena em diferentes episódios da História brasileira, como a Confederação dos Tamoios (1556-1567), a Guerra Guaranítica (1750-1756), a Cabanagem (1835-1840) ou a Guerra do Paraguai (1864-1870). Populações indígenas estiveram presentes nesses acontecimentos, assumindo papéis de protagonismo sobre os quais as escolas invariavelmente silenciam. Na Guerra do Paraguai, por exemplo, os índios kinikinaus e terenas alimentaram as tropas e parte da população local, uma vez que eram (e ainda são) excelentes agricultores. Já os kadiwéus forneceram, além de guerreiros, grande quantidade de cavalos, lutando ao lado do Exército brasileiro e garantindo, de forma decisiva, sua vitória. Assim os índios podem ser enxergados para além da chegada dos portugueses, não simplesmente como vítimas dos colonizadores, mas como agentes históricos que criativamente encontraram soluções de sobrevivência às tentativas de extermínio, ora fugindo, ora se rebelando, lutando ou negociando suas próprias existências e a continuidade dos grupos.
As experiências nas missões (do século XVI ao XVIII) de diversas ordens religiosas, principalmente a dos jesuítas [Ver RHBN nº 81], também podem ser recuperadas, mostrando como a cultura cristã europeia e as culturas indígenas das Américas foram se mesclando e moldando hábitos, costumes e crenças ao longo do tempo. No Brasil, são conhecidas as missões localizadas no atual Rio Grande do Sul: São Francisco de Borja, São Luiz Gonzaga, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista e Santo Ângelo Custódio. Essas experiências ocorreram também em territórios onde hoje estão localizados os Estados Unidos, o México, o Paraguai, a Bolívia e a Argentina. Em alguns desses países, a população ainda é majoritariamente indígena, como no México, no Paraguai e na Bolívia. Em outros, como Estados Unidos e Argentina, o total de índios hoje é muito pequeno, a exemplo do que ocorre no Brasil, onde menos de um milhão de indivíduos se declaram indígenas.
Independentemente do número de grupos ainda existentes, o mais importante é observar o legado cultural deixado por essas populações. Esse legado pode ser verificado, por exemplo, nos hábitos de dormir em redes ou de se tomar banho diariamente, além do consumo de alguns alimentos na culinária, como a mandioca e o milho. A riqueza das culturas material e imaterial preservadas, às vezes com muito custo, legou um vasto acervo de conhecimentos e práticas, algumas delas muito presentes em nosso cotidiano. Basta prestarmos atenção em nosso vocabulário, com diversas palavras de origem tupi, como Ibirapuera, Paraná, Itacoatiara, tapioca, jabuti ou, ainda, na farmacopeia: o uso do óleo de copaíba como eficaz analgésico e cicatrizante, e do jaborandi, para o tratamento de feridas na boca. Vivemos em um mundo cercado de referências indígenas, mas não nos damos conta, muitas vezes por descuido, falta de informação ou preconceito.
O ensino de história e culturas indígenas nas escolas pode contribuir muito para uma mudança de visão e de postura em relação aos índios e às questões que os envolvem. Mais de meio milênio de contato resultou em relações desiguais entre as populações indígenas e os não índios, provocando os problemas que se verificam na atualidade. É muito comum ouvirmos notícias sobre os índios nos telejornais em que sobressaem problemas fundiários, alcoolismo, desnutrição, suicídios e outros aspectos negativos que marcam a vida dos diferentes grupos do país.
A melhor maneira de se vencer esse estado de coisas é aprendendo mais e mais sobre as populações indígenas e suas trajetórias históricas em terras hoje brasileiras e americanas.
Giovani José da Silvaé professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e organizador de Kadiwéu: Senhoras da Arte, Senhores da Guerra(Editora CRV, 2011).
Em sala de aula
A partir da apresentação dos mitos – que podem ser ilustrados ou transformados em histórias em quadrinhos –, é possível mostrar aos alunos maneiras distintas de se compreender o mundo. O primeiro passo seria a escolha de um mito, como, por exemplo, o da criação dos kadiwéus, segundo o qual este povo que habita atualmente a Reserva Indígena Kadiwéu, no município de Porto Murtinho (MS), teria recebido do criador coragem e valentia, motivo do espírito de bravura que os diferenciaria de outros grupos indígenas.
Em seguida, o professor apresenta o mito à turma, mostrando diferentes aspectos – por exemplo, como essa identidade guerreira foi importante na participação na Guerra do Paraguai. Os alunos devem refletir sobre as lutas do tempo presente e as possibilidades de apropriação do mito nos dias atuais.
Os objetos levam a uma discussão sobre o uso de artefatos em nossa própria sociedade, cada vez mais voltada para o consumismo e o desperdício de recursos naturais. Além disso, podem ser relacionados aos próprios mitos contados, estimulando os alunos a repensar o valor da transmissão oral, tão forte entre os índios e negligenciada nas escolas não indígenas.
Já a apresentação de músicas de origem indígena traz para as salas de aula diversas vivências sonoras, muito diferentes daquelas que os alunos estão acostumados a ouvir.
Saiba Mais
BibliografiaALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil.Rio de Janeiro: FGV, 2010.
FUNARI, Pedro Paulo; PIÑON, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto, 2011.
Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2002.
Internet
Os índios na História do Brasil (Unicamp)
Filmes
“Brava gente brasileira”, de Lúcia Murat (2000).
CDs
GUARANI, Índios. “ÑandeAranduPyguá: memória viva Guarani”. Gravadora MCD World Music, 2002.
Todo dia é dia de índio
Giovani José da Silva