Limitação intelectual, práticas autoritárias e irrefreáveis aventuras amorosas ainda são as principais características coladas à imagem do primeiro imperador brasileiro. Mas basta conhecer um pouco mais sobre a atuação de D. Pedro I à frente do governo (1822-1831) para constatar como este é um retrato impreciso.
O Primeiro Reinado foi o momento no qual foram lançadas as bases políticas e administrativas do novo Estado independente. Apesar de todas as dificuldades encontradas nas diferentes províncias do Império, a unidade territorial foi satisfatoriamente conseguida, descontada a perda da província Cisplatina (atual Uruguai) em 1828. É bem verdade que essa integridade foi conseguida pela imposição das armas de mercenários estrangeiros e por tropas enviadas por D. Pedro I. Mas foi também resultado de estratégias políticas muito bem definidas, o que nos leva a repensar o papel do próprio imperador nos primeiros anos do Brasil independente.Uma das principais iniciativas de D. Pedro foi a escolha de sua base de sustentação política, que tinha nos “excelentíssimos” conselheiros de Estado o seu mais importante ponto de apoio. O Conselho de Estado foi criado por decreto em 13 de novembro de 1823, um dia depois de dissolvida a Assembleia Constituinte. Os ocupantes do órgão – todos “homens probos, e amantes da dignidade imperial”, segundo o decreto – ficaram incumbidos de elaborar a Constituição de 1824, a primeira a vigorar no Brasil. Os cargos eram vitalícios e o número de conselheiros, escolhidos pelo imperador, não poderia exceder dez.Cabia-lhes tanto auxiliar o imperador no uso das atribuições do Poder Moderador como nos momentos da escolha dos senadores vitalícios por meio das listas tríplices, conforme determinava a Constituição. Nessa seleção, o imperador e os conselheiros tinham preferência por homens próximos a suas redes de relacionamento, ou por aqueles que facilitassem novas alianças com grupos emergentes, ou ainda pelos que simplesmente mantivessem afastados potenciais inimigos, cujos interesses pudessem diferir dos seus. Não à toa, todos os indivíduos que tomaram assento no Conselho foram também senadores. Os mineiros Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta (1772-1841), marquês de Barbacena, João Severiano Maciel da Costa (1769-1833), marquês de Queluz, e o baiano Antônio Luiz Pereira da Cunha (1760-1837), marquês de Inhambupe de Cima, foram todos eleitos por mais de uma província, sendo escolhidos para representar divisões administrativas diferentes daquelas em que nasceram. Homens de confiança do imperador, eles favoreciam o diálogo do governo central com as províncias, não por acaso algumas das mais remotas do Império.Os nomes que integravam o Conselho de Estado são reveladores das intenções de D. Pedro. Todos pertenciam a importantes famílias, com redes de amizade e familiares muito tradicionais, anteriores ao período da Independência, e espalhadas por diferentes regiões. A família de Manoel Jacinto Nogueira da Gama (1765-1847), o marquês de Baependi, por exemplo, era muito influente em Minas Gerais e logo estenderia suas relações para o Rio de Janeiro. O próprio Baependi era casado com a filha de um grande negociante estabelecido nessa província, Braz Carneiro Leão, cuja história também se cruzava com a de outro conselheiro de Estado, Luis José de Carvalho e Mello (1774-1826), visconde da Cachoeira, igualmente casado com uma de suas filhas.O já citado marquês de Barbacena faria um caminho parecido, só que em direção à Bahia. Ali viria a se casar com a filha de Antonio Cardoso dos Santos, um rico proprietário da região, tornando-se também ele um grande senhor de engenho no Recôncavo baiano. Dessa mesma Bahia era originário o marquês de Inhambupe, que desposou a filha do desembargador, conselheiro e intendente geral da extração dos diamantes do Tijuco (hoje Diamantina, MG), João da Rocha Dantas e Mendonça, membro da destacada família pernambucana Rocha Dantas.A influência de Inhambupe certamente contribuiu para que um de seus filhos, Joaquim Antonio Pereira da Cunha, conquistasse grande poder na administração e na política na região cafeeira do Vale do Paraíba fluminense, inclusive ao longo do Segundo Reinado. Por sua propriedade, conhecida como “Fazenda do Governo”, passaram muitas personalidades brasileiras e estrangeiras, entre elas o imperador D. Pedro II, recebido para almoçar quando realizava uma excursão pela região em 1848.Famílias de conselheiros também se enlaçavam entre si. Como no casamento de uma das filhas do marquês de Barbacena com um dos filhos do conselheiro José Egídio Álvares de Almeida (1767-1832), o marquês de Santo Amaro, um dos poucos “brasileiros natos” que receberam título de nobreza durante a estada de D. João no Brasil (1808-1821), homem de grande prestígio na província da Bahia.Outras famílias serviam para fortalecer ainda mais os laços entre os membros do Conselho de Estado – como os Lima do Rio de Janeiro, que tiveram como representante mais destacado o duque de Caxias, Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880). O enlace matrimonial de um dos filhos do conselheiro D. Francisco de Assis Mascarenhas (1779-1843), marquês de São João da Palma, com uma filha do também conselheiro Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), marquês de Maricá, deu origem a uma grande teia de relações que alcançava a família de Caxias. Situação parecida protagonizou uma das netas de José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), visconde de São Leopoldo, que foi casada com um tio do duque de Caxias, o marechal João Manuel de Lima e Silva. A mais significativa ligação, no entanto, concretizou-se com o casamento entre a filha primogênita do duque de Caxias com um dos filhos do conselheiro marquês de Baependi. Eles receberiam durante o Segundo Reinado os títulos de barão e baronesa de Santa Mônica.Mas nem só de redes de parentes e amigos era feita a reputação dos conselheiros. Com um passado de ocupação de cargos na administração de D. João, alguns construíram ainda brilhantes carreiras no Exército e nos negócios. Havia quem tivesse forte carisma, além de uma convincente oratória na tribuna do Senado, como era sem sombra de dúvida o caso do já mencionado marquês de Barbacena. Outros tiveram atuação de destaque nas atividades acadêmicas e culturais, como o visconde de São Leopoldo, sócio-fundador e primeiro presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e o marquês de Maricá, considerado um grande pensador e dedicado a uma atividade intelectual intensa. Coube a um conselheiro de Estado, o visconde da Cachoeira, a notável tarefa de elaborar os estatutos das Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, as duas primeiras estabelecidas no Brasil.Do interior do Conselho de Estado, aqueles homens tinham uma posição privilegiada para observar a política, articular interesses e influenciar nas tomadas de decisões. O simples fato de as reuniões contarem com a presença do imperador, e mesmo a ideia de que o soberano se submetia aos conselhos dos “homens probos, e amantes da dignidade imperial, e da liberdade dos povos” deixam clara a importância simbólica, política e social desse grupo. Foram eles os que mais vezes desempenharam as funções de ministros de Estado, obviamente por serem as opções mais seguras e convenientes nos momentos de dificuldades.A aproximação de D. Pedro I com os componentes do seu Conselho de Estado em alguns casos beirava a amizade pessoal. Alguns poucos conselheiros, como o marquês de Barbacena, tinham o privilégio de receber cartas pessoais do imperador e vê-las terminar com as palavras “Seu amo e amigo”. Mas raros eram os que tinham o privilégio de gozar da confiança irrestrita de D. Pedro, como o marquês de São João da Palma, mordomo-mor, “primo, e amigo” do imperador, que lhe confiou o segredo sobre o nascimento de sua filha com a marquesa de Santos, sua amante.O fim do Primeiro Reinado, com a abdicação de D. Pedro I em 7 de abril de 1831, não significou a derrota definitiva do grupo articulado a partir do seu Conselho de Estado. Embora outros indivíduos tenham passado a frequentar as mais altas esferas do poder, muitos daqueles que faziam parte das extensas redes de alianças tecidas pelos conselheiros de Estado de D. Pedro I ainda teriam espaço privilegiado na continuidade da história imperial brasileira.Eder da Silva Ribeiro é professor do Instituto de Pesquisas Universitárias do Rio de Janeiro (Iuperj-Ucam) e autor da dissertação “O Conselho de Estado no tempo de D. Pedro I: um estudo da política e da sociedade no Primeiro Reinado” (UFF, 2010).Saiba MaisCARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.MARTINS, Maria F. Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.InternetRODRIGUES, José Honório. O Conselho de Estado: O Quinto Poder?http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/O_Quinto_Poder.pdf
Todos os homens do imperador
Eder Ribeiro