Tornado ‘black’ e musical

Sandra C. A. Pelegrini e Amanda Palomo Alves

  • Já faz um ano que Tony Tornado, com penteado em estilo black power e uma roupa extravagante, cantou a música “BR-3”. A cena, fictícia, foi exibida no início de 2010 na novela “Camadegato”, apresentada pela TV Globo. Mas a emoção do ator e cantor era real: em outubro de 1970, ele havia interpretado, ao lado do Trio Ternura, a mesma músicano V Festival Internacional da Canção (FIC), no estádio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. O primeiro lugar dado a Tony no festival marcou não só o lançamento de um astro, mas também um momento de afirmação da identidade étnica dos negros brasileiros.

     Com músicas e atitude inspiradas no movimento negro americano e letras como “Você teria por ele esse mesmo amor/ Se Jesus fosse um homem de cor?”, Tony Tornado desafiou o regime militar, colecionou nove passagens pela polícia política da época – Departamento de Ordem Política e Social (Dops) –, teve discos apreendidos e enfrentou o exílio no início dos anos 1970 em países como Uruguai, Angola, Egito, Tchecoslováquia e Cuba.

    Antes de se tornar conhecido, Tony dublou cantores como o americano Chubby Checker, considerado o “pai dotwist”, e participou do grupo de dança Brasiliana, com o qual excursionou pela Europa durante cerca de três anos. Mas foi só aos 34 anos, em 1965 – pouco depois do golpe que inaugurou a ditadura militar no Brasil –, que ele teve contato direto com a cultura negra americana que o inspirou pelo resto da vida.

    Tony foi arriscar a sorte como imigrante clandestino nos Estados Unidos, vivendo do trabalho braçal. Lá, além de conhecer o racismo e o menosprezo dos brancos, conviveu com contestações políticas e sociais de negros engajados na luta por direitos civis. Fez contato com o grupo revolucionário Black Panthers (Panteras Negras) e ouviu de perto as propostas do black Power (Poder Negro), movimento que reivindicava para os afro-americanos o controle de instituições políticas e econômicas. Tony também teve a chance de conhecer um dos maiores líderes da luta pelos direitos civis americanos, Stokely Carmichael, no período em que viveu no Harlem, bairro negro de Nova York. Foi Carmichael quem lançou a expressão Black Power,em 1966.

    Tony ainda foi apresentado ao soul, ritmo musical que vem da fusão do gospel –  nascido nas igrejas protestantes frequentadas pelos negros nos Estados Unidos – com orhythm’n’blues e que funcionou como um aglutinador dos afro-americanos em torno de uma identidade comum. A moda soul e a soul music serviram para levantar a autoestima dessas pessoas. No Brasil, onde esse movimento chegaria com mais força na década de 1970, ele também conquistou jovens negros que queriam ter reconhecimento social. Uma reportagem do Jornal do Brasil, assinada por Lena Frias em 1976, com o título Black Rio – O orgulho (importado) de ser negro no Brasil, diz que o soul despertou a percepção da identidade étnica dos afro-descendentes.

    Quando Tornado voltou ao Rio de Janeiro, no final da década de 1960, o movimento afro ainda não era tão popular no Brasil. As roupas coloridas que ele usava, acompanhadas de acessórios extravagantes e uma volumosa cabeleira crespa, eram vistas com espanto.

    As aparições de Tony causavam frisson pela forma – chapéus, óculos, sapatos coloridos do tipo plataforma, casacos longos, calças boca de sino e camisetas pintadas com motivos africanos, tudo isso aliado a expressões corporais excêntricas – e também pelo conteúdo. Em suas músicas, o cantor não dissimulava os problemas sociais e questionava a “democracia racial” propagada pelas autoridades do governo militar. Assim como a black music, as canções interpretadas por Tornado punham em xeque a existência da “solidariedade entre as raças” e traziam à tona o problema da exclusão social.

    Nessa época, os jovens negros engajados se reuniam nos Bailes da Pesada, organizados na periferia da cidade do Rio. Eles eram animados por lançamentos musicais estrangeiros ou por canções compostas e interpretadas em inglês por brasileiros. Esses bailes e seus repertórios eram fomentados pela indústria fonográfica, que via ali um mercado com grande potencial numa época de crescimento econômico do país. A imprensa carioca chamou de Black Rio esse movimento, que estimulou a criação de grupos semelhantes em outras cidades, como o Black Bahia, o Black São Paulo, o Black Porto gaúcho e o Black Uai de Belo Horizonte.

    Mas foi no V FIC que o soul despontou e ficou clara sua influência sobre compositores, cantores e produtores musicais. O júri escolheu para o primeiro lugar a interpretação de Tony Tornado para “BR-3”, música composta por Antônio Adolfo e Tibério Gaspar que fazia referência à estrada – anteriormente denominada BR-135 – que ligava o Rio de Janeiro a Belo Horizonte. Por conta dos inúmeros acidentes que nela ocorriam em 1970, Gaspar decidiu fazer uma letra comparando o momento em que se vivia com a perigosa via interestadual. Mas nada ficou mais marcado do que a perfomance do cantor na ocasião, que gerou uma enorme polêmica. A apresentação de Tony Tornado no palco do FIC, inspirada nas performances sensuais de James Brown, passou a representar, de certa forma, a iminência de um perigo para a sociedade brasileira: de que um negro pudesse desestabilizar o conservadorismo da família branca. Algumas posturas assumidas pelo cantor em suas aparições nos programas de televisão após seu retorno ao Brasil seriam tomadas por agentes do governo militar como atitudes que poderiam causar “prejuízos” à “harmonia” social.

    Com a notoriedade que adquiriu, o cantor passou a ser visto pelas autoridades militares como um líder negro capaz de incitar a formação de organizações políticas no Brasil como os Panteras Negras. Não surpreende o fato de ele ter sido detido muitas vezes nos anos seguintes e ter censuradas canções de seu repertório como “Se Jesus Fosse Um Homem de Cor (Deus Negro)” – de Cláudio Fontana. Mesmo assim, foi nessa fase que ele viveu o auge de sua carreira musical. Em 1971, gravou seu primeiro disco, “Toni Tornado”. A faixa de abertura, “Juízofinal” (composta por Renato Corrêa e Pedrinho), tem forte apelo social e chama a atenção para a discriminação, como no verso “Bebedouromatasede, nãoescolhecor”. Os bebedouros eram uma marca da segregação racial nos Estados Unidos, onde havia alguns destinados aos brancos e outros aos negros.

    Argumento semelhante surge em “Umaideia”, composição dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, presente no segundo disco lançado por Tony, em 1972. O verso “Eu sei que a sombra das mãos joga no chão a mesma cor” é mais uma menção ao fato de que todos os homens são iguais, não importa a cor da pele. A letra, o arranjo instrumental e o vocal lembram a música gospel.

    O maior ato de protesto de Tony foi realizado ainda em 1971, quando ele se apresentou com a cantora Elis Regina (1945-1982) no VI FIC. Os dois interpretaram a música “Black is beautiful”, dos irmãos Valle, que diz: “Hoje cedo, na Rua do Ouvidor/ Quantos brancos horríveis eu vi/ Eu quero um homem de cor/ Um deus negro do Congo ou daqui”. Enquanto cantava, Tony cerrou os punhos no ar – o gesto característico dos Panteras Negras. Acabou saindo preso e algemado do ginásio.               

    Cinco anos depois, Tony gravou um compacto da música “SeJesusfosseumhomemdecor”, composta por Cláudio Fontana. A ideia não era tão nova. Nos anos 1950, o escritor Ariano Suassuna já havia cogitado essa possibilidade ao retratar um Deus negro em “Autodacompadecida”. Mas a interpretação dessa música por Tony Tornado em programas de televisão incomodou as autoridades militares e os grupos mais conservadores da sociedade. O compacto “Deusnegro”acabou tendo sua distribuição proibida e cópias destruídas. Tornado e Fontana foram intimados a prestar depoimento à Polícia Federal.

    Após sofrer ameaças, o cantor foi exilado no início dos anos 1970, como ele mesmo conta em entrevista concedida no Rio de Janeiro em 2009: “Eles (os militares) aproveitaram a oportunidade porque ‘pô, esse negão tá agitando, vamos mandar ele embora. Ele tá falando pra negrada não alisar mais o cabelo. Ele tá falando que a maneira de se vestir é outra’... entende? ‘Ele é pernicioso’”.

    Tony retornou ao Brasil em 1972 e passou a atuar em filmes e novelas. Sua carreira de cantor foi interrompida, mas é inegável sua contribuição para a história da música negra no Brasil. Suas canções devem ser analisadas em seu conjunto – letra, sonoridade e interpretação – e à luz do contexto histórico em que foram criadas. Afinal, os artistas sofrem influência das transformações estéticas, sociais e políticas de seu tempo.

     

    Sandra C. A. Pelegrini é professora da Universidade Estadual de Maringá e autora deO patrimônio cultural afro-brasileiro: entre ritmos, sabores e religiosidades. (Maringá: Centro de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural/UEM, 2011).

    Amanda Palomo Alves é autora da dissertação “O poder negro na pátria verde e amarela: musicalidade, política e identidade em Tony Tornado” (UEM, 2009).

     

    Tony estourou em 1970, quando venceu o Festival Internacional da Canção, mas na edição seguinte saiu algemado do palco

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa: Família, etnicidade e projetos num clube social da Zona Norte do Rio de Janeiro – o Renascença Clube. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj/Iucam, 2006.

    GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

    MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais. São Paulo: Editora 34, 2002.