Tradição de exclusão

Bruno Garcia

  • (RHBN/Foto: Agnes Alencar)“Menos democracia ajudaria na organização da Copa”. A frase infeliz, de autoria de Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, circulou em jornais e redes sociais, alimentando críticos da organização do evento no Brasil e da própria entidade máxima do futebol no mundo. Admitir a preferência por “chefes de Estado fortes”, como o presidente russo Vladimir Putin, acabou por oferecer munição aos críticos que veem na escolha de países como África do Sul, Brasil, Rússia e Catar uma estratégia para levar seus negócios a lugares menos transparentes. Para piorar, o desastrado francês acabou colocando o governo brasileiro em uma situação, no mínimo, desconfortável. Afinal, ninguém precisa ser especialista em Brasil para perceber que os atrasos e os (im)previstos para a Copa não são resultado de muita democracia.

    É provável que Valcke estivesse, nesse contexto, se referindo à lenta burocracia brasileira, dividida entre as esferas federais, estaduais e municipais que nem sempre se comunicam adequadamente. Ainda assim, se o secretário conhecesse um pouco mais o país, veria que o problema não é sequer original. Além da conhecida cacofonia institucional, o desempenho na organização de grandes eventos tem uma longa lista de experiências análogas que isenta de culpa nosso suposto excesso de democracia.

    Fossem eles de cunho esportivo, religioso ou político, os megaeventos no país ao longo do período republicano foram desejados como marcos para, por um lado, justificar o sacrifício coletivo em nome de sua realização e, por outro, projetar internacionalmente uma imagem de sucesso e desenvolvimento. Sob a batuta do Estado, que decide ser de interesse nacional sediar esse tipo de evento, obras são planejadas, promessas são feitas e reformas sugeridas. De quando em quando alguém lembra que se trata de uma grande oportunidade para que se realize, enfim, algo que deveria ter sido feito há muito tempo. Infelizmente, o trágico inventário das experiências anteriores mostra que, ao contrário de suas nobres intenções, os megaeventos por aqui acabaram por reforçar estereótipos, como desorganização e subdesenvolvimento, além de destacar publicamente a incapacidade em lidar com questões históricas, como problemas de segurança, desigualdade social e falta de infraestrutura.

    A triste constatação é de que o papel do Brasil como anfitrião geralmente causa algum constrangimento. Em 1992, quando o Rio de Janeiro abrigou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, mais conhecida como ECO 92, problemas de infraestrutura, como mobilidade urbana, estavam na pauta de preocupações. Mais de 20 anos depois, quando a cidade recebeu a Jornada Mundial da Juventude, o problema era o mesmo, mas agora agravado. Como se não bastasse o colapso do metrô, que sucumbiu a um fluxo de passageiros já esperado, até o papa ficou preso no trânsito, mostrando que nem com muita fé os problemas estruturais por aqui se resolvem.

    Para piorar, a missa de encerramento, que aconteceria em um terreno no bairro de Guaratiba, distante da região central do Rio de Janeiro, foi transferida em cima da hora para a praia de Copacabana. Não se sabe ao certo se os organizadores contavam com uma ajuda divina, mas, infelizmente, o espaço não aguentou a forte chuva que caiu naquela semana. De qualquer forma, o terreno habilmente selecionado em meio de um manguezal estava a cerca de 50 quilômetros de Copacabana, longe das demais atividades da Jornada. Para não dizer que o evento não deixou nenhum legado, aos moradores locais foi reservado como prêmio de consolação o projeto que planeja transformar o terreno, desmatado mas não utilizado, em bairro popular. A ideia, contudo, permanece incerta. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo do dia 28 de julho de 2013, o “Campo da Fé” não só foi armado em um aterro clandestino, como entre seus proprietários está Jacob Barata Filho, cujo pai é conhecido popularmente como “rei dos ônibus” por ser proprietário da maioria das linhas da cidade.

    Nenhuma novidade. Os grandes eventos sempre deixaram claro o antagonismo entre seus promotores (Estado, políticos, empreiteiros...) e a população local. Apesar dos argumentos técnicos e de promessas de reestruturação e grandes legados, é inegável a disparidade entre as obras e as medidas que simulam o cenário idílico a ser frequentado pelos visitantes ocasionais e o que de fato sobra para a população. Essa parece ser uma constante, independente do tipo de acontecimento e mesmo quando o sentido de megaevento é distinto.

    A Exposição Nacional de 1908 custou 1% de todo o orçamento da União. Acima, cartão portal do evento mostrando o Palácio das Indústrias (Imagem: Reprodução)

    Em 1908, para comemorar o Centenário da Abertura dos Portos às Nações Amigas e a chegada da família real portuguesa ao Brasil, foi organizada uma grande exposição nacional. Custou a bagatela de 1% do orçamento da União. Eventos dessa natureza começaram a aparecer na metade do século XIX com o intuito de divulgar e comparar o grau de civilização de cada país. A Torre Eiffel, por exemplo, foi construída como arco de entrada da Exposição Universal de 1889. Segundo a arquiteta e urbanista Margareth da Silva Pereira, a exposição brasileira de 1908 fazia parte de uma série de iniciativas de afirmação do país no cenário internacional e foi “ogrand finale de um primeiro tempo de interações econômicas e culturais do Brasil com um mundo cada vez mais urbano e cosmopolita”.

    A capital da nova república brasileira passava por profundas reformas urbanas e seus comandantes políticos se enchiam de orgulho e confiança em exibir a grandeza recém-conquistada. Por onde passavam as réguas dos arquitetos, populares eram deslocados para dar lugar a novos prédios e avenidas, antecipando um dos aspectos mais controversos e comuns nos grandes eventos do século XX: as remoções. O local escolhido, entre a Praia da Saudade – atualmente tomada por um ancoradouro de barcos no Iate Clube – e a Praia Vermelha, forma o que hoje é o bairro da Urca. Concentrando esforços de engenheiros, operários e poder público, o lugar virou um canteiro de obras e em poucos meses os 13 pavilhões (todos posteriormente demolidos) estavam prontos e devidamente iluminados. Os jornais da época anunciavam o deslumbre dos visitantes diante do espetáculo de luzes montado. Só a fachada do Palácio das Indústrias e o Château d’Eau receberam juntos 18 mil lâmpadas incandescentes. Pouco importa o fato de que, à exceção de alguns trechos em regiões centrais da cidade, a tecnologia fosse inexistente na maior parte do Rio. Afinal, esta é uma das marcas dos megaeventos: oferecer aos visitantes aquilo que a população não tem.

    Sobretudo segurança. Em 1992, os jornais cariocas anunciaram que, para alívio dos chefes de Estado e estrangeiros que viriam para o Rio de Janeiro, durante todo o período da ECO 92, o Exército iria manter dois canhões apontados para a favela da Rocinha. Os blindados ficavam em São Conrado, próximo à comunidade, como símbolo de um Estado militarmente presente. Nenhuma conferência aconteceu a menos de dez quilômetros dali, o gesto pretendia projetar uma imagem de segurança.

    Fotografia de Sérgio Cabral e Eduardo Paes, responsáveis pelos grande eventos e suas consequências no estado e na cidade do Rio de Janeiro, respectivamente (Foto: Divulgação/Shana Reis/Governo do Estado do Rio de Janeiro)A democracia brasileira, a mesma que tanto atrapalha a organização da Fifa, dá exemplos de não ter mudado muito. A tradição nacional de resolver as questões sociais como problema de polícia ataca agora dando novos sentidos a palavras como “pacificação” e “segurança”. O problema, para infelicidade da organização da Copa que esperava convencer a comunidade internacional de que está sendo preparada a “Copa das Copas”, é que a imprensa estrangeira já se deu conta da distância entre intenção e gesto. Em matéria publicada no jornal inglês The Guardian, no dia 27 de março deste ano, Benjamin Parkin pergunta “como o Brasil vai fazer para manter a festa da Copa do Mundo rolando?”. Ele mesmo responde: “mandando o Exército”. Nenhum jornal brasileiro foi tão direto, talvez pela inegável familiaridade com a iniciativa das autoridades. O jornalista brasileiro, filho de pai inglês, chamou a atenção para o fato de a estratégia de ocupação das favelas revelar quão longe o Estado é capaz de ir para evitar qualquer vexame durante a competição. Reagindo à ocupação militar do Complexo da Maré, em março deste ano, Parker afirma que a demonstração de força revela que pouco a pouco o Brasil parece estar criando um estado de exceção para evitar tumultos semelhantes aos que ocorreram na Copa das Confederações no ano passado.

    Essa estratégia tem sua própria história. Uma operação policial no Complexo do Alemão, em junho de 2007, com 1.350 agentes, matou, oficialmente, 19 pessoas. Às vésperas de sediar os Jogos Pan-americanos daquele ano, a ação tinha o objetivo de “acalmar” o conjunto de favelas, oferecendo uma sensação provisória de segurança. No discurso do recém-eleito governador Sérgio Cabral e de seu secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, estava em pauta o papel ativo do estado reforçando a importância do policiamento ostensivo em áreas controladas pelo tráfico de drogas.

    Naquela altura, meses antes da eleição do Brasil para a Copa do Mundo de 2014 e do Rio de Janeiro para os Jogos Olímpicos de 2016, a comunidade internacional já alertava para os riscos sociais de uma política de segurança pautada exclusivamente no uso da polícia. Um mês antes da ação no Alemão, a Anistia Internacional publicou um relatório no qual denunciava abusos da Polícia Militar em ocupações na mesma comunidade em outubro de 2006 e fevereiro de 2007 e a “militarização do policiamento”.  Segundo a entidade, as operações nas favelas colocam em risco a vida de todos os moradores, além de provocar o fechamento do comércio e impor toques de recolher. Entidades como a ONU e a Human Rights Watch também passaram a supervisionar as atividades do estado nas favelas a partir de meados de 2007, chamando a atenção para os altos custos sociais deste tipo de operação.

    Manifestante vestido de Batman em protesto contra a Copa do Mundo (ABR/Foto: Tânia Rêgo)A própria Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal produziu um relatório no qual denunciava indícios de execução na operação. Em matéria publicada na Folha de S. Paulo no dia 1º de novembro de 2007, peritos atestam que dos 70 tiros que atingiram os 19 mortos, 54 foram dados em partes mortais do corpo, e cinco à curta distância. Os dados, entretanto, não impressionaram o secretário de Segurança, que preferiu minimizar o trabalho da Secretaria afirmando que “o relatório foi encomendado sob pressão daqueles que deturpam a justa causa dos direitos humanos”. 

    A estratégia de impor a ordem pela polícia foi aprendida, aprimorada e aplicada desde então. Foram criadas formas mais ostensivas de garantir a permanência contínua da PM nas comunidades, as Unidades de Polícia Pacificadora. Até março de 2014, já existiam 39 unidades. Essa visão particular sobre a “justa causa dos direitos humanos” não impediu que o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza, no ano passado, gerasse uma onda de crítica à iniciativa. A principal veio da ex-diretora do Instituto de Segurança Pública, a antropóloga Ana Paula Miranda, que acusou o governo estadual do Rio de Janeiro de produzir a queda no índice de homicídios não contabilizando autos de resistência, desaparecimentos, encontros de ossadas e cadáveres, que continuam crescendo desde 2000.

    Amarildo de fato virou símbolo durante os protestos iniciados em junho de 2013. Foram esses protestos espalhados pelo país inteiro que puseram em xeque o caráter democrático dos grandes eventos no país. Incitados num primeiro momento pelo aumento das passagens de transporte público, o movimento ganhou força com a crítica aos imensos gastos com a Copa do Mundo. Os jogos da Copa das Confederações assistiram, em torno dos estádios, a batalhas campais entre manifestantes e a Polícia Militar pelo Brasil todo, expondo ao vivo o antagonismo entre uma população revoltada e um Estado dialogando exclusivamente através de suas forças de segurança.

    Enquanto os protestos viravam notícia no mundo inteiro, governo federal, governadores e prefeitos se uniam para criar leis mais rigorosas e oferecer demonstrações de força. O objetivo? Tranquilizar o atônito turista que agora pensava duas vezes se deveria aparecer no país. A solução muito democrática foi juntar forças para impedir mais protestos. O governo federal criou uma tropa de choque com 10 mil homens a serem distribuídos nas 12 sedes da Copa. O do Rio de Janeiro chegou a decretar a formação de uma Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo, empossada do direito de quebrar sigilos telefônicos e de internet de quem julgar suspeito (como a medida feria diversos princípios constitucionais, o governo fluminense foi obrigado a recuar). Os paulistas também não ficaram atrás e investiram R$ 35 milhões na compra de 14 veículos blindados com capacidade de atirar jatos d’água, gás lacrimogêneo e tinta em pessoas até 60 metros de distância.

    A democracia brasileira, apontada por Valcke como obstáculo para a plena realização das recomendações da Fifa, parece afinal ser composta por um complexo e irregular sistema de esferas políticas brigando entre si para saber quem está mais comprometido com o evento. O resultado nem sempre é o esperado. Como se não bastasse os gastos vultosos (na ordem de R$ 28 bilhões, mais do que as últimas duas Copas somadas), cerca de 170 mil famílias já foram removidas de suas residências, segundo a agência jornalística Pública. Como aconteceu na primeira vez em que o país sediou o evento (1950), promete-se que as instalações ficarão prontas em cima da hora. Algumas, sobretudo no que diz respeito à infraestrutura, meses depois do último jogo. Os atrasos são tantos que o Comitê Olímpico Internacional disse que a preparação do Rio de Janeiro é a pior da história, com apenas 10% das obras realizadas a dois anos da abertura. Nessa altura, Atenas tinha 40% concluídos. Londres, 60%.

    A Copa vai acontecer, e ninguém precisa se sentir culpado em aproveitar os jogos. Ainda assim, a concentração de grandes eventos num curto espaço de tempo e a forte reação de manifestantes contra seus excessivos gastos fizeram com que o Brasil perdesse a inocência. No final disso tudo, ainda que a Seleção levante mais uma taça, vai ser difícil disfarçar o sorriso amarelo da consciência de que todos perdemos alguma coisa.

    Bruno Garcia é pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional e autor da dissertação “Cuba and Human Rights: Between US and EU support and pressure” (Masarykova Univerzita, República Tcheca, 2009).

    Saiba mais:

    JENNINGS, Andrew. Um jogo cada vez mais sujo: O padrão Fifa de fazer negócios e manter tudo em silêncio. São Paulo: Panda Books, 2014. 

    PEREIRA, M. A. C. S. A Exposição de 1908 ou o Brasil visto por dentro. Arqtexto (UFRGS), v. 16, p. 6-27, 2010.

    ALVERENGA FILHO, J. R. A "Chacina do Pan" e a produção de vidas descartáveis na cidade do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado, Departamento de Psicologia, UFF, 2010.