Foi em 1924 que se revelou ao país a existência, em Belo Horizonte, de um grupo de escritores empenhados na discussão, renovação e atualização da literatura brasileira. Uma caravana formada por Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Tarsila do Amaral (1886-1973) e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), entre outros, percorreu as cidades históricas mineiras e acabou entrando para os anais do Modernismo.
O movimento deflagrado em 1922 estava se reconfigurando. A influência inicial da vanguarda futurista cedera espaço às preocupações com o primitivismo e o nacionalismo, responsáveis pelo aparecimento de obras como Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, e Clã do Jabuti (1927), de Mário de Andrade. A excursão a Minas tornou-se uma espécie de símbolo daquela importante guinada em direção à cultura popular, ao folclore, ao passado barroco, aos interiores do país.
A viagem também foi um marco da nacionalização do movimento, pondo em contato vanguardistas de São Paulo e aquela versão de Modernismo provinciana e mais tímida, embora não menos entusiasmada, formada por escritores como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Emílio Moura (1902-1971), João Alphonsus (1901-1944), Pedro Nava (1903-1984), Martins de Almeida (1901-1932) e Abgar Renault (1901-1995). A virada brasileirista do Modernismo de 1922 coincide, portanto, com a entrada em cena de um novo pelotão, que apoiou os paulistas de uma forma incondicional e, ao mesmo tempo, crítica.
Esses literatos conviviam em Belo horizonte, a primeira cidade planejada do Brasil. Fundada em 1897, ecoando os ideais republicanos de ordem e progresso, a capital exibia palácios, praças, jardins, avenidas largas e retas que imitavam, em solo montanhoso, a racionalidade do novo urbanismo parisiense, mas chamava atenção pelo vazio das ruas e pelo fato de ser habitada por gente do interior.Como observou Cyro dos Anjos (1906-1994) no romance O amanuense Belmiro (1937), se Belo Horizonte parecia moderna, dentro das casas morava “o mesmo e venerável espírito de Sabarabuçu, Tejuco, Ouro Preto e de tantas outras vetustas cidades”. E foi nesse contexto que os moços de Minas aderiram ao Modernismo na década de 1920.
Nesse grupo numeroso – Pedro Nava lista 21 nomes em suas memórias –, quase todos eram de famílias tradicionais do interior, e se gostavam de modernidades, também tinham amor às coisas do passado e à memória do patriarcalismo rural. Interessavam-se pelas novidades que vinham da Europa, mas gostavam igualmente de Camilo Castelo Branco (1825-1890), dos autores do classicismo português e de um escritor francês cultuado como vício no começo do século XX, Anatole France (1844-1924), que Mário considerava uma “praga”, representante do decadentismo. Apesar da fidelidade ao passado, essa “curiosa modernidade mineira, feita com o sumo dos clássicos”, no dizer do crítico Antonio Candido, formou com os paulistas “o eixo mais radical da vanguarda brasileira”.
Os “rapazes de Belo Horizonte” se conheceram em 1921 na redação do Diário de Minas – o “quartel-general do Modernismo mineiro”, de acordo com Drummond. Em pleno órgão oficial do Partido Republicano Mineiro, editaram uma página modernista, distribuída a todas as prefeituras do interior. Num segundo momento, a partir do estímulo dado pela amizade com os paulistas, criaram A Revista, periódico que teve três edições, entre julho de 1925 e janeiro de 1926. O convívio era intenso em pensões, repartições, bares, livrarias e confeitarias. Nas conversas literárias, eram impiedosos uns com os escritos dos outros – obras que, por timidez, orgulho, e pelas dificuldades próprias de um meio acanhado, demoravam a publicar.
Drummond foi o líder inconteste do grupo. Seu primeiro livro, Alguma poesia, só apareceu em 1930, o que levou parte da crítica a considerá-lo um poeta da segunda fase do Modernismo. Mas os poemas que compunham o volume já tinham sido publicados em jornais e revistas de Minas, Rio e São Paulo. “No meio do caminho”, por exemplo, considerado a peça mais polêmica do movimento, era conhecido entre os modernistas desde 1924. Drummond já figurava havia tempo como um dos principais poetas e pensadores de nossa vanguarda. Ele defendia em seus artigos, e também na correspondência, especialmente com o amigo Mário de Andrade, ideias caras ao movimento e outras próprias, que destoavam tanto da inclinação inicial para o futurismo – patente nos poemas da Pauliceia desvairada – quanto da conversão posterior ao nacionalismo estético, que se manifesta em livros como Clã do Jabuti e Pau-Brasil.
Alguns versos de “Alguma poesia”, de Drummond,lembram os da Pauliceia desvairada, apresentando o universo urbano com linguagem fragmentada e pontuação caótica, em sintonia com a estética futurista, mas há outros poemas que evocam imagens do ambiente provinciano e rural. Mário chamou esse impulso de “sequestro da vida besta”. A cidade e a província compõem as duas matrizes espaciais dessa primeira lírica drummondiana, atenta ao repertório de temas e formas do Modernismo (inclusive o poema-piada), ao mesmo tempo em que acrescentava modulações pessoais, marcadas pela ironia e pelo individualismo. Já no primeiro poema, o autor se define como um sujeito fragmentado e desajeitado: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: vai, Carlos, ser gauche na vida”. Inquieto, retorcido e deslocado, esse temperamento gauche foi responsável por um dos pontos mais altos e dramáticos da moderna poesia brasileira.
Com relação à ficção, se Antonio de Alcântara Machado (1901-1935) foi o prosador do Modernismo paulista, fixando em linguagem sintética e cinematográfica a paisagem social da metrópole cosmopolita, o prosador do Modernismo mineiro foi João Alphonsus, autor de um conto antológico, “Galinhacega”, publicado em 1926 na revista Terraroxa e outras terras. A exemplo de Mário de Andrade, ele também queria falar de temas do Brasil em linguagem brasileira, principalmente os personagens da roça ou da periferia da grande cidade, alheios ao processo de modernização. Filho do poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), João Alphonsus publicou contos, apontados pela crítica e por ele mesmo como a melhor parte de sua obra, e deixou dois romances, Totônio Pacheco (1934) e Rola-Moça (1938), nos quais se revelou um cronista atento às transformações da jovem capital de Minas.
Outro que se destacou nessa roda liderada por Drummond, também no campo da poesia, foi Emílio Moura. Leitor de poetas simbolistas, criador de versos cuja atmosfera era tão abstrata e evanescente quanto a própria música – e não por acaso apelidada de “canção de câmara” —, Emílio publicou seu primeiro livro, Ingenuidade, em 1931. Mas também foi, desde a primeira hora, um dos membros mais ativos do grupo. Sua obra se filiou à tendência espiritualista, herdeira do Simbolismo, que se firmaria com eloquência cada vez maior nos anos 1930. No entanto, não deixou de associá-la à linguagem simples, depurada, e ao senso do concreto, qualidades adquiridas com o Modernismo por esse mineiro recatado que, ao contrário dos companheiros, nunca deixou as montanhas.
No interior de Minas, houve também outro importante grupo modernista. Em 1927, Rosário Fusco (1910-1977), Ascânio Lopes (1906-1929) e Francisco I. Peixoto (1909-1986) – os “ases de Cataguases” – lançaram com alarde e repercussão nacional a revista Verde. Seu espírito combativo – com manifestos e colaborações internacionais – foi elogiado por Mário de Andrade, crítico feroz da timidez, da boa educação e do individualismo que, segundo ele, caracterizavam os rapazes de Belo Horizonte. O autor de Macunaíma sabia, porém, que o grupo de Drummond, além de conter os talentos mais altos, era o que refletia com maior profundidade, e não apenas de modo pitoresco, o enraizamento do movimento modernista na experiência local brasileira. Ao mesmo tempo, como mostra principalmente a poesia drummondiana, o grupo ia desdobrando os impasses de nossa complexa transição do universo rural para a vida urbana e democrática — processo que, conforme vaticinou Sérgio Buarque de Holanda, demoraria a se completar no Brasil.
Ivan Marquesé professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e autor de Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (Editora 34, 2011).
Saiba mais - Bibliografia
ÁVILA, Affonso (org.). O modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.
GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1981.
NAVA, Pedro. Beira-mar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 4ª ed., 1985.
WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Trem da modernidade
Ivan Marques