Troça picante

Fabiano Vilaça

  • “Quem não sabe que a trepação é o ideal das moças e dos moços, das velhas e dos velhos, dos feios e dos bonitos?” Calma! Não se trata de nenhum apelo à pornografia. Este é apenas um trecho do editorial do jornal A Trepação: órgão hebdomadário-humorístico e essencialmente trepador, que circulou no Ceará, no final do século XIX.

    Não se sabe muito sobre ele, mas não é difícil entender por que tamanha criatividade levou os três redatores – “Conte, Contista e Contente” – instalados na fictícia localidade de “Mundo da Lua”, no interior do estado, a deixar um endereço telegráfico (“trepa”) e um adresse (endereço em francês): “Dr. Ponas, no Mundo da Lua”, impossíveis de localizar. Porém, uma anotação a lápis feita no alto da primeira página indica que o jornal é de Fortaleza.

    Trepar era a intenção da folha cearense. Quer dizer, dar vazão ao ato de falar mal dos outros, usar de maledicência para se referir aos costumes e acontecimentos da sociedade local e ao que se passava na distante capital federal naqueles primeiros anos da República. No acervo de Periódicos Raros da Biblioteca Nacional encontra-se apenas o primeiro número do jornal, de 12 de novembro de 1893. Não se sabe se existiram outros, mas um já é suficiente para, digamos, revelar as verdadeiras intenções deste “projeto editorial”: “trepar quer dizer... ficar de cima... E não é com o fim de colocarmo-nos num plano superior que notamos ou desenvolvemos a trepação nos defeitos deste ou daquele? Nunca vi uma desdentada falar de outra, um careca rir-se d’outro...”

    A redação do Mundo da Lua também recebia telegramas pra lá de estapafúrdios. Um deles dizia que o Pão de Açúcar “declarou-se positivamente contra o governo legal” do marechal Floriano Peixoto. A mensagem, que data de 11 de novembro e foi enviada do Rio de Janeiro, era uma reação à notícia de que “uma comissão de engenheiros ingleses apresentou-se ao governo prometendo mediante uma remuneração escoar a Baía de Guanabara”. O trio de redatores não podia deixar a piada passar: “brevemente começarão os trabalhos e em pouco tempo o Custodinho nadará em seco”. Uma referência jocosa ao almirante Custódio José de Melo, que sublevou setores da Marinha nas duas Revoltas da Armada (1891 e 1893) e ameaçou bombardear o Rio com navios fundeados na Guanabara.

    Além da tríade debochada, A Trepação contava ainda com pelo menos um suposto colaborador (talvez um dos redatores duplamente disfarçado), o Corrupião, que assinava a coluna chamada Conselhos. Nesta primeira edição, dirigiu-se às “formosas damas”, advertindo-lhes cinicamente que “a linguagem vulgar se enriquece quotidianamente de uma série de novos termos”. Por exemplo: “quando ouvirdes pronunciar a palavra calibre adicionada a um número grande, não penseis que eles [os homens] se ocupam de outro assunto – é de vós mesmas; é que os gajos estão em maré de trepação e comparam-vos com os canhões d’artilharia, e quanto maior for o número do calibre, maior é a culatra (do canhão) e, portanto, menos elegância tereis”.

    Em quadrinhas publicadas na coluna “A sã trepação”, o jornal procurou esclarecer com sutil ironia um dos significados mais inofensivos do termo: “a velha matrona que vai ao sarau e espera ansiosa paxá refeição, só fica contente, (pois já que não dança), achando      um assunto na sã trepação”. E como se não bastassem os conselhos e esclarecimentos, a folha cearense ainda se dava ares de órgão de utilidade pública (aqui sem duplo sentido), por meio de anúncios de casas, serviços e produtos. Como o reclame que dizia: “precisa-se de uma ama para cuidar de um bebê de 16 anos” ou a seguinte oferta de imóvel: “aluga-se na Rua do Adolfo Dias, nº 17, uma pequena casa para república de estudantes: tem cacimba, gás, excelente acomodação e nas vizinhanças abunda de moças bonitas”.

    “Dizem... que dos males o maior é não trepar”. Mas o hábito requer cuidado. E não só dos leigos. Também os eruditos devem tomar as palavras conforme a época. De qualquer modo, considerando-se o termo apenas na acepção de falar mal dos outros (quase um apelo da natureza humana), sejamos ao menos discretos, pois “às ocultadelas... é que a trepação é mais gostosa”.