Se você se considera uma pessoa brava, elegante e acha que sabe tudo sobre Eva, você pode estar enganado. Pelo menos na concepção do Pathé, um periódico de Manaus que, no início do século XX, criou uma espécie de dicionário com dezenas de expressões que circulavam nas ruas da época. Com pitadas de humor, o jornal descrevia “bravo” como “aquelle que corre quando apanha umas cacetadas”, e definia uma pessoa elegante como alguém que “anda bem vestido, mas ainda não pagou o alfaiate”. Já Eva era ninguém menos que a “causadora de todas as desgraças desse planeta”.
A “invenção” de expressões em alusão aos acontecimentos do dia a dia não é exclusividade de um período específico da história. Na verdade, essa é uma prática sociocultural que acompanha o movimento de transformação tanto das línguas quanto das sociabilidades. O Pathé Jornal ilustra bem esse processo, fornecendo em suas colunas alguns termos que nos dão preciosas pistas sobre as maneiras de vivência social percebidas naquele período. Ao todo, 25 exemplares microfilmados da publicação, entre 1913 e 1922, encontram-se disponíveis na Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional. Os originais pertencem ao Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas.A ressignificação ou invenção de palavras feita pelo jornal manauara é prática bastante corriqueira nos dias de hoje. Você provavelmente já ouviu ou se deparou com pelo menos uma das seguintes expressões: “teclar” (troca de mensagens de texto feita geralmente através da internet), “meme” (conceitos e ideias que rapidamente se espalham pela rede), “viralizar” (compartilhamento ligeiro de links que se tornam fenômenos depois de muito acessados), “trollar” (satirizar, debochar, tirar sarro) e “lacrar” (executar algo de maneira exitosa). Nas redes sociais é quase certo que além dessas já tenha visto ou escutado outras tantas palavras afins que inundam os fluxos digitais e mesmo as relações offline, “invadindo” o cotidiano do “lado de cá” da tela do computador.Estas expressões são exemplos que nos ajudam a descrever e a entender o desenrolar das práticas de interação social contemporâneas. A disseminação desses vocábulos é tamanha que alguns já foram incluídos nas mais recentes edições de renomados dicionários mundo afora. Fazer uma “selfie” (isto é, se autofografar e, de preferência, postar nas redes sociais) e “twittar” (publicar algum conteúdo no microblog Twitter, com o máximo de 140 caracteres) são alguns casos que ganharam referência nos “pais dos burros”. As páginas do Pathé, porém, lembram-nos que, mesmo décadas antes do aparecimento do computador e do crescente uso do “internetês” e suas gírias, as palavras também tinham seu dinamismo próprio.Sua primeira edição foi para as ruas da capital do Amazonas no dia 30 de junho de 1913. Na época, a região testemunhava a decadência da era de ouro do “ciclo da borracha”, atividade iniciada no final do século XIX e que levou vigor à economia local, atribuindo à cidade de Manaus o simbólico apelido de “Paris dos Trópicos”. Porém, com o fim do monopólio seringueiro, sobretudo por causa da plantação de seringais na Ásia e na África pelos ingleses, que contrabandearam sementes da Amazônia, forçando uma queda no preço final da borracha, vieram a estagnação e a crise econômica. Na conjuntura global, também o mundo atravessava um efervescente e dual período, caracterizado, de um lado, pelo otimismo com as inovações intelectuais, artísticas e tecnológicas da Belle époque – como os movimentos de vanguarda modernista, o automóvel, o telefone etc. – e, de outro, pelos elevadíssimos níveis de desigualdade socioeconômica, além do pessimismo com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914).Alguém, hoje, saberia de cabeça a definição de alguns dos termos utilizados naquela época, conforme o sentido atribuído pelos moradores de Manaus ou pelos redatores do Pathé? Palavras como “barato” (“indivíduo sem cotação”), “batalha” (“briga entre dois valentões”), “elementos” (“indivíduo que tem muito dinheiro para gastar, não se incomodando com o dia de amanhã”) ou “estupefacto” (“quando um matuto vem para uma capital e vê coisas muito bonitas”) nos mostram que nem sempre são aquilo que parecem.Intitulada de “Diccionário do Pathé”, a seção do jornal que auxilia na tarefa de decifrar o significado de expressões como estas era uma espécie de glossário com 39 vocábulos acompanhados de suas denotações. Muitas recheadas de ironia. Por exemplo, “enfrentar” é um verbo a ser usado em referência a “todo aquele, que em occasião de perigo, corre, que desapparece”, enquanto “esbofetear”, uma vez apropriado e ressignificado pelos jornalistas do Pathé, torna-se adequadamente empregado “quando um camarada trata o outro com o carinho de pae”.O tom paródico e carnavalesco do glossário contempla ainda significados que, atualmente, soam bem pouco conhecidos e usuais. É o caso de “barbante”, termo em alusão àquilo “com que as noivas são amarradas no dia do casorio”. Já “bêbado”, segundo o periódico, é “o que mais se encontra nessa capital”. Na mesma linha, chama-se de “becco” o lugar “onde os namorados gostam de jogar as escondidas”.Fora o caráter escrachado das acepções, é comum a presença de palavras que versem a respeito dos hábitos “romanescos” dos manauaras, de modo que podemos ler definições como “quando dois pombinhos estão numa conversa muito comprida e fiada” (“enlevo”); “um dos divertimentos mais gostosos entre os namorados” (“beijo”); “vicio de todos os rapazes da actualidade, para distrahir as maguas” (“ennamorado”); e “quando um conquistador vê passar uma mocinha bonita” (“babado”).Dentre as expressões desse curioso léxico, “barrado” é uma das que mais aparecem no jornal, não sendo nada incomum deparar-se com passagens como “muitos namorados das ruas Alminio, L.B. e Izabel, estão para serem barrados, no menor praso de tempo”. A propósito, “barrado”, segundo esse curioso “diccionário social”, é “um namorado que foi dispensado por causa de outro mais atrevido”.O uso da ironia também se faz perceber na “denúncia” de (maus?) costumes observados nas rotinas da cidade. Por exemplo, “errar”, aqui, designa o “que os guarda-livros costumam fazer com as contas das casas fallidas, para bem dos bolsos dos patrões”. “Esmeralda” é uma pedra “que muitos joalheiros tem por costume vender, trocada por vidro”. E “engraxar” aponta o “indivíduo que já não tem vergonha e vae levar o rosto ao italiano para pintar”.Todas estas expressões, quando surgem ou são apropriadas ou ressignificadas, despontam com o ensejo de traduzir em palavras aquilo que já vem sendo vivenciado nas interações sociais. Paralelos semelhantes com o nosso tempo seriam, ainda, o uso de hashtags como “#sqn” (“só que não”) ou “#ficaadica”, aplicadas possivelmente com níveis de ironia similares a muitos dos vocábulos extraídos do “Diccionario do Pathé”.Apesar de não constar dentre as 39 expressões elencadas no glossário do jornal manauara, uma das palavras mais lidas no periódico é “coió”. Um simples exemplo de imediato esclarece sua definição: “na rua dos Remédios têm uns coiós baratos que tratam de seduzir as moças para passear de automóvel. Olhem meninas esses caras são sujos e esses passeios não vão das pernas”. “Coió”, portanto, seria o equivalente contemporâneo para indivíduo “pegador”. Aliás, se nos embasarmos nas publicações do Pathé, rapidamente conjecturamos que Manaus sofria uma verdadeira epidemia de “coiós”: “o trecho da avenida J. Nabuco está anarchisado, entre a L.B. e a J. Paranaguá, devido a grande enfestação de coiós alli, não respeitando as caras de quem”.Talvez por esse motivo, o jornal que “Tudo vê, tudo sabe, tudo informa” (o subtítulo do jornal voltava-se com tanta ênfase contra esse “mal”: “na avenida Joaquim Nabuco, o PATHÉ vae pintar o sete, fazendo desertar os coiós de seus pontos predilectos. Lá que vae, vae...”.
Trollando na Belle Époque
Bruno Thebaldi