A cobiça pelas riquezas do Brasil, em especial o açúcar, foi o que levou os senhores de engenho de Pernambuco a deflagrarem a chamada Guerra de Restauração a partir de 1645. Isso porque a Companhia das Índias Ocidentais, uma empresa holandesa, havia ocupado a capitania – assim como outras no norte do Brasil – entre 1630 e 1654, valendo-se dos serviços de um exército mercenário. Após o derramamento de muito sangue, os colonos finalmente conseguiram devolver a região à Coroa portuguesa. Mas esse esforço poderia ter sido inútil se não fosse a interferência de uma tropa de negros livres formada na ocasião.
A pujança desse exército pôde ser conferida pelo viajante inglês Henry Koster, que chegou ao Recife no início do século XIX, 150 anos depois da guerra. Ele imediatamente se impressionou com a boa aparência dos henriques, uma milícia negra que, segundo o cronista, era o mais organizado e garboso de todos os corpos militares de Pernambuco. Um grupo que, além disso, contava entre suas fileiras com homens agraciados com títulos nobilitantes, como o Hábito da Ordem de Cristo e o da Ordem de Santiago, privilégios a que muitos senhores de engenho aspiravam e não conseguiam alcançar. Afinal, essa tropa era chefiada por uma elite muito peculiar dentro da sociedade colonial, formada por coronéis e mestres de campo.
Os henriques eram assim chamados por causa de seu fundador, Henrique Dias (?-1662), homem preto, livre no período da guerra, e sobre quem pouquíssimo se sabe, nem mesmo sua data de nascimento. Assim como outras milícias, seu grupo era formado por homens livres que não atuavam como militares profissionais, não recebiam soldo e tinham que bancar sua farda e suas armas. Por essa razão, todos eles precisavam ter outra profissão. Mas a honra de se destacar pela boa reputação, diante de um desprestigiado e empobrecido exército português, era o bastante para qualquer tropa miliciana, em geral organizada separadamente em tropas brancas, pardas e pretas. E era ainda mais importante no caso dos henriques.
Esse terço – denominação seiscentista para as tropas de origem ibérica de qualquer tipo – foi criado de acordo com a tradição militar do século XVI, que usava colonos para formar tropas. Foi assim que Dias arregimentou voluntariamente, em 1633, uma unidade formada por negros que se puseram a serviço daqueles que lutavam contra a ocupação holandesa. Mais tarde, em 1639, ele recebeu a patente de “governador dos crioulos, negros e mulatos”, enquanto sua tropa não parava de crescer. Em 1647 ela contava com 300 soldados, entre escravos – muitos deles doados por senhores de engenho – e forros.
Tropas escravas não eram uma novidade no império português, mas os bons resultados da unidade de Dias, que empreendeu diversos ataques ao exército flamengo senhor da capitania de Pernambuco na década de 1630, levaram a Coroa a mantê-la em caráter permanente. A falta de homens para compor as tropas do Império português não foi o único fator que influenciou essa decisão. A força atribuída à imagem dos negros, considerados selvagens e ferozes, parecia deixar holandeses e espanhóis – contra quem os henriques seriam levados a lutar no século XVIII, enviados para a fronteira sul do Brasil –aterrorizados no campo de batalha.
Bem conceituado militarmente no imaginário colonial pelo que a Coroa e as autoridades militares consideravam sua ferocidade, o terço dos henriques era uma instituição singular: foi usada em todos os grandes conflitos na zona açucareira durante os séculos XVII e XVIII, e algumas vezes chegando até a colônia do Sacramento, atual Uruguai, como aconteceu entre 1774 e 1776. No Nordeste, ela combateu o quilombo de Palmares entre as décadas de 1670 e 1690 e, em seguida, os índios do sertão na chamada “guerra dos bárbaros”, entre 1680 e 1700. Entrar para uma milícia – ou para uma das irmandades leigas – acabou se tornando o principal meio de ascensão social para negros livres e forros, setores então estigmatizados na estrutura colonial.
Mas depois da guerra contra os holandeses, a necessidade de recrutar escravos diminuiu consideravelmente, e a milícia começou a se transformar. Para a sociedade açucareira e a Coroa portuguesa, os henriques eram a melhor das tropas. Essa imagem, no entanto, pode não ter passado exatamente disso: uma imagem. Por não poder arcar com seus próprios gastos na tropa, muitos escravos acabaram sendo excluídos de suas fileiras. Se já era difícil conseguir a própria liberdade por quaisquer meios que fossem, sustentar-se em uma atividade como a de miliciano não devia ser fácil. Ainda mais numa sociedade em que as atividades produtivas estavam saturadas pelo trabalho escravo. Embora fossem os únicos milicianos que recebiam meio soldo do governo da capitania em tempos de paz, os henriques, em sua maioria, trabalhavam como comerciantes ou artesãos para sobreviver. Mas seus comandantes precisavam ser de uma estirpe diferente, pois a Coroa exigia que os comandantes das milícias fossem todos proprietários rurais.
O fundador do terço, Henrique Dias, chegou a receber o Hábito da Ordem de Cristo, um título que equivalia ao de fidalgo, muito cobiçado pelos senhores de engenho, que raramente conseguiam obtê-lo. Mesmo assim, a trajetória de Dias espelha as muitas contradições associadas aos henriques: ele pode ter morrido Cavaleiro da Ordem de Cristo, mas não parou de pleitear as recompensas financeiras constantemente atrasadas que a Coroa lhe prometera.
Apesar disso, era tanto o prestígio dos milicianos que um dos genros de Dias, Amaro Cardingo, tentou conquistar a mesma Ordem de Cristo. Ele era um homem livre de segunda geração, ou seja, filho de forros. Jamais servira como escravo e se casara com a filha do negro mais importante da Colônia. Mas nunca conseguiu o hábito, pois a Coroa – cujas regras determinavam que todos os nobres deveriam estar livres de “máculas” de ascendência judaica, moura, negra ou índia até a quarta geração para que pudessem obter a comenda – comprovou que seus avós haviam sido escravos.
Investigar o passado das pessoas que pleiteavam títulos de fidalguia era prática comum no Império português, e qualquer parentesco com judeus, mouros, índios e negros poderia ser suficiente para impedir a concessão do almejado título, como no caso de Cardingo. No entanto, a Coroa sabia ser flexível e conceder hábitos das ordens para pessoas com comprovadas “máculas”, mas suficientemente influentes nas colônias. O que explica por que Dias foi aceito pela Ordem de Cristo. E não foi o único.
Outro caso interessante foi o de Antônio Gonçalves Caldeira, mestre de campo que substituiu Henrique Dias no terço dos negros e que foi agraciado com o Hábito da Ordem de Santiago, apesar de seus antepassados terem sido escravos, o que foi totalmente desconsiderado na concessão desse título. Assim como Dias, é provável que Caldeira fosse um homem influente o suficiente para convencer a Coroa da necessidade de conceder-lhe o título nobilitante. Além disso, esse mestre de campo foi também protagonista de um episódio que demonstra bem o prestígio dos comandantes henriques no mundo do açúcar. Em 1669, ele foi acusado e condenado pelo assassinato de um capitão da tropa. Não se sabe até hoje quem foi o verdadeiro culpado, mas, inocente ou não, Caldeira repudiou a condenação e fugiu para o interior. Mas acabou sendo perseguido, preso e levado sob custódia pelas ladeiras de Olinda.
Quando a tropa que o conduzia, também composta de negros, passou em frente ao Mosteiro de São Bento, os monges que lá estavam saíram do convento e acorreram em massa à rua, armados com porretes para confrontar os militares e libertar o mestre de campo. A confusão foi grande: os frades espancaram os oficiais e soldados que traziam o preso, chegando a quebrar o braço de um capitão. Isso atraiu muita gente, e no meio da arruaça Caldeira conseguiu se armar de espada e atacar seus carcereiros, que, acuados, revidaram e o mataram. A culpa de toda a balbúrdia foi atribuída pelo governador de Pernambuco, Bernardo de Miranda Henriques, aos frades bentos.
A razão que levou os padres a se meterem em tamanha confusão para soltar um preso permanece até hoje desconhecida. Mas o episódio dá a entender que Caldeira e os religiosos de Olinda vinham mantendo laços havia muito tempo, ao longo do século XVII. Por outro lado, nem sempre foi fácil para os oficiais henriques lidar com a situação ambígua e complexa associada à sua condição de soldados. Muitos deles viviam se queixando de que só recebiam um terço do pagamento de seus colegas. Ao mesmo tempo, eles tinham que enfrentar as pressões da sociedade, que nem sempre viu com bons olhos a afirmação social dos milicianos no ambiente escravocrata.
Mas houve quem passasse por dificuldades piores, especialmente ex-cativos, como o soldado Gonçalo Rebelo, contemporâneo de Cardingo, que fora doado por seu senhor durante a guerra contra os holandeses, na qual lutou sonhando com a promessa de alforria. Com o fim dos confrontos em 1654, ele foi incorporado à tropa, aleijado, servindo por oito anos, até que um herdeiro de seu falecido ex-senhor começou a requisitar sua devolução. Rebelo precisou comprovar seus serviços militares para obter da Coroa a confirmação de sua liberdade.
De qualquer maneira, muitos outros comandantes henriques, pretos, livres e bem estabelecidos, foram institucionalizados pela Coroa portuguesa. Sua mera existência demonstra que a sociedade colonial era bem mais multifacetada do que se pode supor, e que a organização militar, durante séculos, serviu de trampolim para grupos sociais marginalizados.
Kalina Vanderlei Silvaé professora da Universidade de Pernambuco e autora de O Miserável Soldo & A Boa Ordem da Sociedade Colonial – Militarização e Marginalidade na Capitania de Pernambuco nos Séculos XVII e XVIII (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001).
Saiba Mais - Bibliografia
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Henrique Dias – governador dos crioulos, negros e mulatos do Brasil. Recife: Massangana, 1988.
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada – Guerra e Açúcar no Nordeste 1630/1654. Rio de Janeiro: Ed. Topbooks, 1998.
SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras –A Conquista do Sertão de Pernambuco pelas Vilas Açucareiras nos Séculos XVII e XVIII. Recife: Cepe, 2010.
Tropa diferente
Kalina Vanderlei Silva