Um brado na imprensa brasileira

Ana Brancher

  • Educação, preservação ambiental, relação com os povos indígenas, direitos das mulheres e até mesmo a unidade do continente sul-americano foram alguns dos assuntos abordados pelo Ostensor Brasileiro – Jornal Literário Pictoreal. Não seria nada de extraordinário se a publicação, que debateu temas para lá de atuais, não tivesse deixado de circular há exatos 160 anos. Com poucos leitores e sem anunciantes, o Ostensor circulou no Rio de Janeiro entre 1845 e 1846, propôs soluções progressistas para os problemas enfrentados pelo Império e, com seu elaborado projeto gráfico, fez parte da vanguarda na infância do jornalismo brasileiro.
    A imprensa, que havia sido proibida durante três séculos de repressão à circulação de jornais e livros, finalmente chegou ao Brasil com a vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Legalizada, a atividade jornalística se espalhou rapidamente e, apesar de ainda estar em seus primeiros passos, estabeleceu-se solidamente como um fórum de debates e um importante veículo de informações para o país.


    Apesar do pequeno boom dos jornais, aqueles que se arriscavam a investir em publicações tinham que enfrentar enormes complicações e dificuldades. Papel, máquinas para impressão, tinta – tudo era importado.Os analfabetos eram grande maioria no país, e, portanto, havia poucos leitores e compradores de jornal. Os primeiros jornais e revistas literárias produzidos no Brasil dificilmente eram bem-sucedidos financeiramente. Grande parte dos veículos era sustentada por políticos, que viam neles uma forma de divulgar suas idéias.


    Segundo o historiador Hélio Vianna, mais de uma centena de jornais e folhetos surgiram nas províncias e na Corte entre 1810 e 1850. Só no Rio de Janeiro apareceram mais de quarenta títulos, alguns de curtíssima duração, outros que sobreviveram por décadas. Entre os periódicos mais importantes que atuaram na vida política e literária do país estava Jornal do Commercio, O Vigilante, Aurora Fluminense, Museu Universal, O Tribuno, Minerva Brasiliense, O Americano.


    Os editores do Ostensor Brasileiro eram o romancista e poeta português Vicente Pereira de Carvalho Guimarães e João José Moreira. O primeiro cuidava do conteúdo do jornal e o segundo, do suporte financeiro. A palavra ostensor, do latim ostensore, significa “aquele que mostra ou ostenta”; já pelo título podemos perceber que o jornal surge com a intenção de “mostrar o Brasil”. Esta posição, decidida a “ostentar brasilidade”, se afirmava já na introdução do jornal (ou editorial, como é mais comum hoje): “O plano circunscrito que nos impusemos, de tratar exclusivamente de objetos relativos ou pertencentes ao Brasil, constitui a primeira parte do nosso programa, e a maior das dificuldades a vencer, segundo querem aqueles que de trabalhos mentais só esperam como único prêmio um pouco de ouro vil”.


  • Esta mesma linha editorial será reafirmada em todos os números lançados. O Ostensor era publicado, na maioria das vezes, quinzenalmente, e não havia no cabeçalho qualquer referência ao dia ou ao mês da publicação. O jornal era impresso em oito páginas e em geral trazia um capítulo de romance à maneira dos folhetins, um artigo de fundo, uma biografia ou fatos brasileiros e uma poesia, além de uma folha não numerada contendo uma estampa.


    Não havia anunciantes para ajudar a financiar as publicações, que também não informavam na capa o preço do exemplar avulso. O Ostensor subsistia principalmente de assinaturas. De acordo com o próprio jornal, o esforço de manter o jornal funcionando – “despesas monstruosas que fizemos, contando com o pequeno contingente de cada um dos nossos leitores” – ocasionava grandes prejuízos financeiros. Talvez por constatar-se vítima da ausência de leitores no país, o jornal iniciou uma campanha por intermédio de seus articulistas, insistindo, em vários números, na necessidade de investimentos públicos em educação. Em uma série de cinco artigos intitulada “Sobre a Educação Primária”, Carvalho Guimarães discutia a prioridade de se investir em educação para melhor atingir os rumos do desenvolvimento e do progresso do Brasil. Já naquela época ele acentuava a importância de uma educação democrática para todos: “Seria uma impertinência o pretender-se demonstrar hoje que a educação acomodada a todas as classes da sociedade é uma necessidade absoluta.”


    As palavras de Carvalho Guimarães não encontraram eco nas políticas oficiais, uma vez que, ao longo de quarenta e nove anos do Segundo Reinado (1840-1889), o governo imperial pouco fez para que o ensino público se desenvolvesse em todas as classes sociais. Em 1869, de um total aproximado de nove milhões de habitantes (brancos e livres), havia apenas cento e quinze mil matrículas no curso primário e cerca de oito a nove mil matrículas nos cursos secundário e universitário. Seguindo a linha proposta pelo Ostensor Brasileiro, Carvalho Guimarães destacava a necessidade de se elaborar um sistema de ensino específico, de acordo com as características particulares brasileiras: “Não se acredite que um método vantajoso na Europa deve sê-lo por força no Brasil, e que um sistema de educação pode ser traduzido”. Embora entendesse que os métodos de ensino europeus poderiam ser aproveitados, o jornalista defendia sistemas educacionais próprios, pois “as teorias européias, sem grande alteração, não podem ser praticadas na América, no Brasil.” E considerava importante que a educação fosse para todos os segmentos da população: “só queremos que todas as classes recebam uma educação primária, para que o general e o soldado, o supremo magistrado e o simples oficial de polícia, o rico e o pobre, sintam, pensem e obrem, a certos respeitos, uniforme.”
    Consciente do complexo problema que abordava em seus artigos sobre a educação primária e da pouca repercussão que tinha seu modesto jornal, Carvalho Guimarães concluía: “Só temos em vista deixar por aí este pequeno brado para que a geração futura pondere o que vós [as vozes poderosas] poderíeis ter feito e não fizestes”.


    A preocupação em formar um público leitor também estava expressa na publicação de romances. O jornal publicou quatro romances  de autoria de Carvalho Guimarães ligados à temática do nacional. É importante lembrar que, a partir do Golpe da Maioridade, em 1840, quando D. Pedro II é antecipadamente empossado imperador, com apenas 15 anos, começam a ser discutidas no Brasil questões relativas à construção de uma cultura nacional. Aliás, esta foi, por excelência, a tônica dos escritores românticos do século XIX. Na década de 1840 surgiram os primeiros romances brasileiros, momento em que Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882) publicou A moreninha, O moço loiro, Os dois amores, obras que ficaram muito famosos na época. Porém, diferentemente dos romances açucarados do Macedinho, os de Carvalho Guimarães, que, diga-se, não fizeram sucesso, abordavam temas polêmicos. Entre eles estão uma revolta ocorrida no Rio de Janeiro em 1660-61, quando a população se levantou contra o aumento de impostos, e a controversa atuação dos jesuítas no Brasil. A Guerra dos Emboabas, ocorrida em 1708-09, quando tropas paulistas enfrentaram forasteiros vindos de todo o país – conhecidos como emboabas – pela posse das minas de ouro localizadas em Minas Gerais, foi outro tema abordado por Carvalho Guimarães.  Hoje em dia, muitos historiadores enxergam no conflito também uma forte discussão sobre a verdadeira identidade dos “brasileiros”.


  • No entanto, o que mais chamava atenção no Ostensor eram as ilustrações. Como já estava expresso no título, o Jornal Literário Pictoreal trazia ao longo das edições cerca de cinqüenta gravuras, o que era uma prática comum nos jornais da época. O que caracteriza e diferencia o Ostensor é o fato de retratar exclusivamente objetos e paisagens brasileiros ou relativos ao país, de norte a sul: imagens da cidade de Pelotas, rochedos do Amazonas, paisagens do Piauí, vistas de Mariana e do Rio de Janeiro; retratos de políticos, de indígenas e de padres; reproduções de praças, monumentos, teatros e igrejas. O Ostensor “mostra” um Brasil pictoreal aos seus leitores.
    Mas essa singularidade representava um problema para os editores, que tinham que providenciar estampas feitas no país, o que não era fácil: “Não havendo em nosso jornal lugar para artigos que não tenham imediata relação com o Brasil, não podemos utilizar gravuras feitas em França ou Inglaterra (...) grandioso dispêndio, e trabalho insano nos custará o empenho”. Cada figura era publicada junto com um texto sobre o respectivo tema. A autoria das estampas não era creditada, mas em algumas delas é possível identificar a Litografia dos artistas Heaton e Rensburg ou a de Ludwig e Briggs, que publicaram muitos trabalhos pela Typographia Laemmert, bastante conhecida no Rio de Janeiro do século XIX. 


    Seguindo a proposta do Ostensor, as ilustrações e seus respectivos textos tinham o objetivo de resgatar, contar e defender a preservação da memória da História nacional. É o caso de um exemplar que trazia uma gravura com as ruínas de um templo iniciado e não concluído pelos jesuítas no Morro do Castelo, cujo texto falava sobre a necessidade de se conservar o que restara da antiga construção. Essa discussão sobre preservar o antigo para a manutenção da memória histórica também esteve presente quando foi construído o novo Chafariz da Carioca, fato que parece ter gerado polêmica entre a população. Contendo duas ilustrações que mostravam o novo chafariz e o antigo, que seria substituído, o texto polemizava dizendo que, ainda que o antigo monumento fosse um verdadeiro “aborto arquitetônico” – nas palavras do autor – e tivesse apenas dezesseis bicas contra trinta e cinco do novo (o que era um aspecto importante, pois a população utilizava diariamente estas bicas), era preciso preservá-lo e evitar sua destruição. O artigo defendia que, depois de ser preterido pelo modelo novo, o velho chafariz teria adquirido um outro sentido, “deixando à posteridade mais uma página do grande livro da história pátria, onde se pudesse estudar as duas épocas diametralmente opostas do país.”


    Preocupados em expressar o histórico através de imagens, os editores também retrataram e divulgaram a vida das cidades brasileiras. Em meados do século XIX, era escasso o cenário de nossas cidades.  Apenas Rio de Janeiro, Recife, Salvador, São Luís do Maranhão, Belém, São Paulo e Mariana tinham mais de dez mil habitantes em 1840. Mesmo assim, o Ostensor publicou várias estampas sobre as cidades. Embora a maioria destas imagens fosse sobre o Rio de Janeiro, possivelmente por razões técnicas, devido ao fato de a sede do jornal ser na cidade, também foram reproduzidas vistas de Cabo Frio, Campos, Itaboraí, Vassouras, Pelotas, Porto Alegre, Barbacena e Mariana –, tentando com isso abranger pontos distintos do país. Os textos descreviam a localização e o início das cidades, seus fundadores, detalhes da origem dos nomes, das ruas, montes, rios. Deste modo, o leitor ficava sabendo, por exemplo, que a Rua das Marrecas, no Rio de Janeiro, um dia se chamara Rua das Belas Noites, ou que a Praia de Botafogo havia recebido aquela denominação por causa do morro do Pão de Açúcar, que “botava fogo” nos dias de relâmpagos e trovoadas.  


  • A temática indígena também foi bastante trabalhada pelo Ostensor. O periódico buscava retratar um indígena “real” e não uma caricatura ou um ser sublimado, forma como o Romantismo travestiu o indígena brasileiro moldado pelo Iluminismo europeu. Uma longa matéria sobre os índios apiacás revelou os costumes, a organização social e a língua desta nação indígena – a visão transmitida pelos articulistas do jornal revestiu-se de um tratamento real. Foi publicado um glossário contendo cento e dez palavras dos apiacás, inclusive algumas resultantes do contato com os europeus, como ié (machado) e mucáu cuy (pólvora). Essa visão diferenciada a respeito dos indígenas está expressa também em outro texto, publicado com o título “Resposta do índio Ouaiassu ao francês Carlos de Veaux”. Neste fato, que teria ocorrido provavelmente no século XVII, o índio Ouaiassu responde aos franceses, que queriam seduzir os tupinambás para indispô-los contra os portugueses, com a seguinte reflexão “digna das páginas da história”, como acentua o jornal: “Vós, ó Europeus, sois todos o mesmo!”.


    De perfil progressista, o jornal abordou antecipadamente assuntos que eram tabus na época, como a importância da emancipação política das mulheres. Havia até mesmo alertas sobre a importância de se preservar o meio ambiente. Por exemplo, acompanhando uma estampa de uma floresta sendo queimada, foi publicado um longo poema do escritor e diplomata Manuel de Araújo Porto Alegre sobre a destruição das florestas. O Ostensor tratou ainda de uma série de temas curtos, variados e interessantes, como biografias, a necessidade de cuidados com manuscritos existentes na Biblioteca Pública, crítica bibliográfica, informações sobre as chamadas crianças expostas (recém-nascidos que eram abandonados nas portas de casas religiosas)  e o povoamento da América antes dos europeus.


    Além de se dedicar ferrenhamente à abordagem de temas nacionais, o periódico quis ampliar a linha editorial incluindo o contexto sul-americano. O jornal publicou artigos dos escritores argentinos José Mármol (1817-1884) e Juan Bautista Alberdi (1810-1884), ambos intelectuais exilados pelo governo despótico de Juan Manoel Rosas, em um período de grande turbulência política na Argentina. De Alberdi foi publicado “Memória sobre a conveniência e objetos de um Congresso Geral Americano”, artigo que propunha que a América do Sul se organizasse continentalmente em questões relativas à fixação dos territórios, ao uso dos rios, à criação de universidades, à realização de pesquisas científicas, à construção de estradas para interligar os países. O escritor chegou a mencionar a criação de um Direito e de um papel-moeda comuns. De José Mármol, o Ostensor publicou “Juventude progressista do Rio de Janeiro” e “Fragmentos de Minha Carteira de Viagem”, textos que abordavam a necessidade de uma América livre e “civilizada” com uma independência cultural: “Temos de continuar a revolução porque Portugal e Espanha ainda imperam em suas antigas colônias; e temos de firmar uma independência, quiçá a mais cara, a independência intelectual.”


    José Mármol defendeu e divulgou os ideais republicanos na Argentina – e o Ostensor publicou seus artigos em uma época de plena defesa e fortalecimento da monarquia brasileira. Aliás, o jornal não faz referências nem ao imperador Pedro II nem ao seu governo. Esta pode ter sido uma das razões do pouco sucesso dessa publicação, que deixou nas páginas da imprensa um pequeno mas contundente brado progressista e, sobretudo, corajoso.


    Ana Brancher é professora de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutora em História pela UFRGS com a tese “Histórias de além-mar já aborrecem – literatura e história em Carvalho Guimarães (1820 – 1846)”.