Um castelo e seus tesouros

Filipe Monteiro e Igor Mello

  • Como os jornais não cansam de noticiar, há muitos brasileiros vivendo na Espanha. O que surpreende é que milhares deles estejam confinados num castelo de um pequeno pueblo no norte do país. Vivem como clandestinos e ninguém pode fazer nada por eles. Exceto os historiadores.

    As relações do Brasil com a Espanha vêm de muito tempo, ainda que por vezes fiquem à sombra dos nossos vínculos com Portugal. Antes mesmo de Pedro Álvares Cabral, os espanhóis navegavam pelo Rio Amazonas e pela costa do Nordeste. Depois, organizaram missões jesuíticas no Sul e no Centro-Oeste, defenderam, ao lado dos portugueses, as cidades da América e, de quebra, ocuparam a bela ilha de Santa Catarina.

    No castelo onde viveram os reis católicos Isabel e Fernando, e no qual está hoje instalado um suntuoso arquivo, repousam, cativos e silenciosos, documentos históricos com as vidas de soldados, missionários, aventureiros e funcionários que participaram da colonização do Brasil. O soldado Bernardo de Guirre é um deles. Participou de um ataque a um quilombo na Bahia nos anos 1630. Foi “o primeiro que investiu a trincheira, e a saltou, rompendo estacadas e saltando fossos com grande valor e risco de sua pessoa, animando os demais soldados”.

    Testemunhos como esse estão cuidadosamente guardados no Arquivo Geral de Simancas, pequena cidade à beira da principal autovia da junta de Castela e Leão. O castelo, que outrora serviu para manter afastados os mouros, foi adaptado ainda no século XVI para receber o acervo. Em salas forradas de móveis de pinho colhido nas florestas reais de Segóvia, a decoração é a mesma desde Filipe II. “A beleza que dedicava às salas é o sinal do valor que o rei dava ao arquivo”, diz o atual diretor, José Luís Rodríguez de Diego. Instalações confortáveis, resultado da reforma concluída em janeiro deste ano, prepararam o Arquivo de Simancas para o século XXI.

    Aberto entre 1467 e 1475 por Carlos V e depois desenvolvido por seu filho Filipe II, este é o primeiro arquivo do Ocidente! Sua criação foi uma medida estratégica para a dinastia, a fim de preservar o trono diante das intensas disputas entre os reinos. José Luís reproduz as palavras de Filipe II: “Sem os escritos não pode haver a notícia das coisas que ocorrem. Sem os escritos não se pode governar de uma forma perfeita”. Como resultado da estabilidade da Coroa, o Império espanhol tornou-se poderoso nos séculos XVI e XVII. E o arquivo cresceu.

    A existência de documentos brasileiros é de certo modo inesperada, pois todos os registros da expansão colonial e comercial da Espanha acabaram engolidos pelo Arquivo Geral das Índias, na cidade de Sevilha. Mas o Conselho de Portugal, criado no período da União Ibérica (1580-1640), garantiu o envio de centenas de processos para Simancas. Além disso, das “Índias”, como se refere ao Brasil, também eram tratados por outros conselhos José Luís explica que os assuntos: “No Conselho de Fazenda estão registros da riqueza proveniente do Brasil e no Conselho de Guerra existem muitos documentos sobre o aprovisionamento das armadas enviadas para a defesa do território”.

    A RHBN visitou o arquivo em julho e constatou que muitas vidas pulsam ali. Aventureiros, soldados e oficiais escreviam para o rei a fim de obter benefícios por serviços prestados na América. É quando surgem as histórias de valentia contra corsários franceses, invasores da Holanda na Bahia e em Pernambuco, paulistas caçadores de índios. As folhas de serviços envolvem desde figuras anônimas até nomes importantes, como Filipe Camarão e Salvador Correa de Sá e Benevides.

    Isabel Aguirre, que comanda com simpatia e erudição a sala dos investigadores, não vacila em indicar boas fontes: “Já conhece a documentação dos tratados de limites?” São mapas de grande precisão e qualidade, que mostram a situação das terras divididas por Espanha e Portugal, das missões jesuíticas espanholas, do sistema de defesa da ilha de Santa Catarina, etc.
    Ainda assim, é preciso garimpar. Importantes historiadores brasileiros passam por lá desde o século XIX, como Francisco Adolfo de Varnhagen e Antonio Gonsalves de Mello (responsável por importantes referências para o historiador Evaldo Cabral de Mello). Mas todos saíram com a sensação de que haviam apenas arranhado a superfície de um fabuloso tesouro.

    Nos últimos anos, a historiadora Roseli Santaella Stella vem explorando em artigos e livros o potencial das fontes sobre o Brasil em Simancas. Sua tese de doutorado, “O domínio espanhol no Brasil durante a monarquia dos Filipes” (2000), dedica-se a isso. Convidada pelo Projeto Resgate, que já organizou e digitalizou documentos sobre as capitanias em arquivos portugueses, Roseli está finalizando o levantamento do acervo de Simancas. Os documentos serão microfilmados, catalogados e disponibilizados para pesquisadores.

    Boa nova. Afinal, como disse Isabel ao ser interpelada sobre a freqüência dos brasileiros ao arquivo, “eles estão vindo...”.

    Saiba Mais:

    No site http://www.mcu.es/archivos/MC/AGS/index.html é possível consultar catálogos do acervo de Simancas e fazer uma visita virtual ao arquivo.