Alceu Amoroso Lima, também conhecido pelo pseudônimo Tristão de Athayde, teve, ao longo do século XX, importante presença no cenário intelectual brasileiro: foi crítico literário, ensaísta, professor universitário, traduziu livros, publicou dezenas de obras em variados campos do saber e assinou milhares de colunas jornalísticas em mais de sessenta anos de vida dedicada às letras. Notabilizou-se igualmente por sua fé católica, credo que, desde sua conversão aos 34 anos, levou à praça pública nacional, unindo contemplação e ação, opção religiosa e atuação política.
Filho de família abastada, aos seis anos, o carioca Alceu Amoroso Lima (1893-1983) foi alfabetizado em francês, em Paris. Na juventude fez mais três longas viagens à Europa sempre priorizando a França, onde, em 1913, acompanhou o curso que o filósofo Henri Bérgson (1859-1941) ministrava na universidade de Paris, a prestigiosa Sorbonne. Pode ser dito que ele pertencia, dentro dos padrões nacionais, a uma aristocracia de espírito. Aprendeu música com o maestro Alberto Nepomuceno (1864-1920), formou-se em Direito e teve rápida passagem pelo Ministério das Relações Exteriores como adido diplomático.
Até se converter ao catolicismo, em 1928, Amoroso Lima produziu muitos escritos. Leitor voraz, sua biblioteca particular, guardada em Petrópolis, na antiga casa de veraneio da família e hoje sede do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, reúne 18 mil volumes. Essas obras inspiraram e tornaram possível a produção de quase cem livros, partindo de sua estreia, Afonso Arinos (escrito aos 29 anos), até Tudo é Mistério (1983, edição póstuma). Na fase inicial de sua carreira, aparece mais o crítico literário, observador das letras e artes, atento ao que acontecia no exterior e entre nós. Ele acompanhou, por exemplo, o nascente movimento modernista. Desta época são os cinco volumes da série Estudos, editados de 1927 a 1933. A eles somaram-se ensaios de literatura, de sociologia, de política, de economia, de filosofia, de jornalismo; biografias; memorialística; e relatos de viagem.
A presença na imprensa nacional foi grande. Estreou em O Jornal (1919-1946), passando depois para o Diário de Notícias (1947-1966), a Tribuna da Imprensa (1950-1954) e Jornal do Brasil (1958 a 1983). Neste último período, teve seus artigos do JB republicados na Folha de São Paulo. Ao longo desse percurso, Alceu concentrou-se em diversos temas contemporâneos. Entre muitos, destacam-se debates políticos nacionais e internacionais, a agenda cultural do momento, assuntos internos da Igreja Católica e sua relação com a sociedade do século XX, crônicas e memórias variadas e até necrológios.
Depois de se tornar católico, em 1928, fez com que sua fé, algo de esfera privada, transbordasse para a praça pública, escrevendo livros e artigos em jornais de grande circulação. Ele encarnou a fé católica com o rigor e a exaltação dos recém-convertidos. Nesse período, as lideranças católicas desejavam marcar ostensivamente a presença da Igreja na sociedade, incorporando suas teses ao ensino, partidos políticos e ao governo. Uniam-se reação e proposição neste projeto, conhecido pelos historiadores como neocristandade. Na verdade, esta era uma reação a muitos aspectos que a Igreja percebia como negativos na modernidade: laicismo, indiferença religiosa, materialismo, ameaça esquerdista. A proposta era contra-atacar, replicando o mundo: se havia partidos políticos, universidades e imprensa seculares no Brasil, deveriam igualmente existir seus correspondentes católicos. O mesmo valia para a intelectualidade.
Amoroso Lima se converteu ao catolicismo por influência de outro intelectual, Jackson de Figueiredo (1891-1928), e do arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme (1882-1942). O clérigo delegou a ele o papel de liderança no laicato – conjunto dos leigos congregados à Igreja –, que deveria reunir fiéis em prol dos ideais da neocristandade. E Alceu correspondeu às expectativas. Acumulou as direções do Centro D. Vital e da revista A Ordem, ajudou na criação do Instituto Católico de Estudos Superiores (futura PUC-Rio), fundou e presidiu a Liga Eleitoral Católica, liderou a Ação Católica Brasileira, foi reitor interino da Universidade do Brasil, opondo-se com sucesso ao projeto acadêmico universitário idealizado por Anísio Teixeira (1900-1971), projeto que advogava o ensino público e laico, proposta que, então, a Igreja considerava esquerdista e, portanto, subversiva.
A partir da década de 1940, Amoroso Lima começou a dar uma guinada em suas reflexões, redefinindo sua visão da fé católica e as consequências da pertença à Igreja para os fiéis. Esta atitude repercutiu muito em sua atuação pública, influenciada pela reflexão católica produzida por intelectuais como Jacques Maritain (1882-1973), Yves-Marie Congar (1904-1995), Emmanuel Mounier (1905-1950) e Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955). Congar foi decisivo em sua trajetória, graças, sobretudo, ao texto “Dieu, est-Il à Droite?” (“Deus está à Direita?”), contundente crítica ao atrelamento do catolicismo a regimes de direita, publicado pela revista dominicana francesa La Vie Intellectuelle, em 1936.
Alceu abraçou teses liberais na Igreja e na política, posicionamento já evidente nos anos 1960. Ele defendeu enfaticamente as resoluções do Concílio Vaticano II (1962-1965), que promoveram o diálogo da Igreja e do catolicismo com o espírito moderno, aproximação conhecida pelo nome de aggiornamento católico. Neste mesmo período, apoiou causas progressistas, como as reformas de base do presidente João Goulart (1919-1976) e o voto dos analfabetos, além de denunciar a ingerência norte-americana em Cuba e a Guerra do Vietnã, classificada por ele como genocídio.
Suas atitudes tornaram-se ainda mais chocantes para os conservadores, muitos deles católicos, quando dedicou um artigo de jornal a Camilo Torres (1929-1966), padre que aderira à guerrilha colombiana, e ao revolucionário Ernesto Guevara (1928-1967). Neste texto, publicado em outubro de 1967, Alceu, mesmo reprovando com ênfase a opção dos dois pela violência, refere-se a Torres como “santo” e Che Guevara como “herói”. Para ele, havia sentido na morte de ambos: “mais vale morrer por uma causa justa, mesmo que por processos de violência condenável, do que pactuar com os defensores da pior das violências, a que se mascara de legalidade ou de democracia, para perpetuar uma ordem social iníqua”.
Foi exatamente no Brasil da ditadura militar (1964-1985) que Alceu, tomando a necessidade da denúncia como missão cristã, consolidou sua renovada imagem de católico liberal. Nas colunas assinadas em jornal, em entrevistas e como professor universitário – mesmo aposentado, era frequentemente eleito patrono ou paraninfo de formandos –, ele pediu o fim da censura, a volta das eleições livres, anistia para opositores e o retorno dos exilados pelo regime.
O destino dos desaparecidos pela repressão também foi tema de seus artigos. Um exemplo foi o sequestro do ex-deputado Rubens Paiva, cassado em 1964, preso em 20 de janeiro de 1971 e desaparecido desde então. Passado um mês da detenção, a coluna de Alceu intitulada “Trágica Interrogação”, no Jornal do Brasil de 25 de fevereiro, indagou o paradeiro de Rubens Paiva. E, em outubro de 1974, voltou à carga, desta vez sem nomear um caso em particular: “Há neste momento, no Brasil, sem que sequer se possa citar-lhes os nomes, ao lado de nós, dezenas de lares e neles centenas de corações, que sofrem em silêncio a tragédia da espera, da dúvida sobre a vida ou a morte dos seus mais queridos (…) passam os dias, passam os meses, passam os anos talvez, e a espera continua vã. As promessas [das autoridades] continuam vãs. O destino dos desaparecidos continua envolto no mistério. (…) Até quando haverá, no Brasil, mulheres que não sabem se são viúvas; filhos que não sabem se são órfãos (...)?”.
Por sua idade e por ser considerado um homem correto, Alceu não foi preso ou calado pelo governo, as autoridades de então sabiam que prendê-lo seria desastroso em termos de relações públicas. Nas duas últimas décadas de vida, animado por sua fé, Amoroso Lima conquistou o respeito de muitos, religiosos ou não: D. Hélder Câmara, Leonardo Boff, Otto Maria Carpeaux, Nelson Werneck Sodré, Oscar Niemeyer, Ênio Silveira, Carlos Heitor Cony, Paulo Francis. E, à sua maneira, unindo cidadãos tão díspares na mesma trincheira, na luta pelo retorno ao Estado de Direito, lembrou aos brasileiros o significado original da palavra “católico”: universal.
Marcelo Timotheo da Costa é professor da Universidade Salgado de Oliveira e autor de Um Itinerário no Século: mudança, disciplina e ação em Alceu Amoroso Lima (PUC-Rio/Loyola, 2006).
SAIBA MAIS - Bibliografia
AMOROSO LIMA, Alceu. Memórias Improvisadas. Petrópolis: Vozes, 2000.
AMOROSO LIMA, Alceu. Os Direitos do Homem e o Homem sem Direitos. Petrópolis: Vozes/Educam, 1999.
CARPEAUX, Oto Maria. Alceu Amoroso Lima, RJ, Graal, 1978.
VILLAÇA, Antonio Carlos. O Desafio da Liberdade, RJ, Agir, 1983.
Um Católico na Praça Pública
Marcelo Timotheo da Costa