Um cheiro de mistificação

Luiz Felipe de Alencastro

  • Vale a pena examinar sucintamente o movimento de 1641, apologizado pela historiografia paulista. Grupos coligados a famílias hispânicas teriam proclamado Amador Bueno — filho do sevilhano Bartolomeu Bueno e da paulista Maria Pires, sogro de espanhóis, irmão e pai de predadores de índios — Rei de São Paulo, independente de Madri e de Lisboa. Há consenso entre os historiadores sobre o fato de que espanhóis de São Paulo, inconformados com a Restauração, foram convencidos por Amador Bueno a aceitar a soberania dos Bragança. Mas o episódio propriamente dito da “aclamação” de Amador Bueno — pontuado de correrias, “vivas” ao rei paulista, fuga para o mosteiro, conchavos beneditinos e torcida da “plebe” e “povo”, ou dos espanhóis sem plebe nem povo — cheira a mistificação. Há mais de um século, Moreira de Azevedo apresentou no Instituto Histórico do Rio um estudo questionando o evento. Apesar da competência e da obstinação dos pesquisadores “bandeirantistas” da primeira metade do século XX e de outras pesquisas mais recentes, o único e solitário documento mencionando o fato continua sendo o texto torpedeado há mais de cem anos por Moreira de Azevedo: meia dúzia de linhas, escritas sessenta anos depois da suposta “aclamação” pelo governador do Rio, Arthur de Sá e Menezes, ao conceder patente de capitão a Manuel Bueno da Fonseca, neto de Amador Bueno. Os historiadores que reinventaram o evento, pintando-o com as cores do nativismo paulista do século XX, beberam todos da mesma fonte. Leram Pedro Taques e frei Gaspar da Madre de Deus, cronistas faceiros por terem Amador Bueno entre seus ascendentes, que se basearam no documento citado acima e numa tradição oral só por eles registrada. Como explicar, entretanto, que um acontecimento desse alcance, sucedido numa capitania rebelde, num momento difícil para a metrópole, não tenha sido registrado pela documentação da época e tampouco apareça nas atas do Conselho Ultramarino, quando o contencioso paulista voltava à baila em Lisboa? Por que cargas d'água a burocracia monárquica deixaria de fazer alarde desse evento exemplar, pró-bragantino, pró-lusitano? A referenda do documento de março de 1700 — quando a descoberta do ouro dava novo fôlego ao autonomismo paulista — leva jeito de manobra do governador do Rio, que, desde 1698, tinha jurisdição sobre São Paulo. Bajulava-se o orgulho de uma grande família paulista, vinculando-a ao lendário juramento de fidelidade a El-rei supostamente proferido por seu mais ilustre membro. A tramóia deu certo: duzentos anos depois, o bafo literário dos escritores “bandeirantistas” fabricou diálogos, movimentos e roupagem para a mise-en-scène da aclamação.

    O Trato dos Viventes. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000. p.397-398


    Luiz Felipe de Alencastro
    Doutor em História pela Universidade de Paris, professor da Unicamp  e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)