Um embaixador brasileiro contra Vargas

Fábio Koifman

  • No início dos anos 1940, quando milhares de refugiados do nazismo tentavam sair da Europa e salvar suas vidas, mas eram barrados por normas rígidas para a concessão de qualquer tipo de visto, um embaixador brasileiro facilitou a saída de muitos deles da Europa e a entrada no Brasil, concedendo vistos sem levar em conta origem étnica ou recursos financeiros, contrariando a política imigratória do Estado e o próprio presidente Getulio Vargas.

    Era o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, neto de um dos mais expressivos senadores do Império brasileiro, Manuel Pinto de Souza Dantas, que dá nome à Rua Senador Dantas, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Apesar de sua atuação corajosa, ele foi esquecido devido a uma série de circunstâncias. Mas teve sua memória recuperada recentemente graças a um minucioso trabalho de pesquisa que resultou, em 2002, na publicação de um livro, que deflagrou homenagens no Brasil e no exterior.

    Souza Dantas nasceu no Rio de Janeiro em 1876. Após concluir os estudos de Direito aos 21 anos, ingressou no Ministério das Relações Exteriores já no período republicano. Galgou todos os postos da carreira diplomática e serviu em diversas capitais do mundo. Em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi nomeado ministro interino das Relações Exteriores e durante alguns meses respondeu pelo Itamaraty. Chegou ao posto de embaixador em 1919, quando passou a chefiar a representação brasileira em Roma.  

    Em fins de 1922, Souza Dantas foi nomeado embaixador do Brasil na França, cargo em que permaneceria até 1944. Entre 1924 e 1926, durante alguns períodos, foi também o representante do governo brasileiro na Liga das Nações – órgão que reunia representantes de vários países com o intuito de zelar pela paz mundial baseada na negociação e no entendimento cordial entre as nações. Em 1931, já era o decano do corpo diplomático em Paris, ou seja, o embaixador há mais tempo em atividade na capital francesa.

  • Em 1937, foi instaurada no Brasil a ditadura do Estado Novo. O presidente Vargas fechou o Congresso e passou a governar por meio de decretos-leis, instaurando um regime autoritário e repressivo. Nessa época, o governo brasileiro era um dos únicos no mundo que ainda estavam interessados em atrair imigrantes. Influenciado principalmente por uma eugenia à brasileira, seguia a política do chamado “branqueamento”, que tinha por finalidade “melhorar a composição étnica do povo brasileiro” por meio da miscigenação de novos imigrantes brancos com a população não-branca já residente. Era estimulada a imigração, especialmente de portugueses, bem como de suecos e outros povos considerados “etnicamente adequados”.

    Ao mesmo tempo, o governo Vargas rejeitava imigrantes de grupos étnicos considerados “inassimiláveis” ou indesejáveis, como japoneses, judeus e outros “indivíduos não pertencentes à raça branca”. Ordens vindas diretamente do presidente determinavam que não fossem concedidos vistos permanentes ou temporários a essas pessoas. As exceções contemplavam unicamente cientistas e artistas famosos ou pessoas muito ricas – desde que transferissem, ainda na Europa, uma soma elevada de dinheiro para o Banco do Brasil.

    Com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em 1933 e a publicação, em 1935, das Leis de Nuremberg, que estabeleciam um sistema jurídico e político autoritário, racista e discriminatório, iniciou-se uma expressiva onda migratória daquele país. Polônia, Bélgica, Luxemburgo, Holanda e França receberam um grande número de refugiados do nazismo. Judeus, comunistas e homossexuais tinham premência em sair dos territórios ocupados pelos alemães, uma vez que já era de conhecimento público que o regime nazista promovia assassinatos e perseguições violentas a esses grupos. Para essas pessoas, a obtenção de um visto de saída da Europa era questão de vida ou morte. Mas era muito difícil conseguir um visto, pois praticamente todos os países já impunham rígidas restrições à entrada de estrangeiros, especialmente refugiados.

    Em 1940, com a iminência da invasão alemã no Norte da França, o governo francês se retirou para o Sul, instalando um governo colaboracionista na cidade de Vichy. Naturalmente, o corpo diplomático estrangeiro o acompanhou. Registros dessa época mostram que Souza Dantas já vinha intercedendo em favor de refugiados do nazismo desde a sua saída de Paris. É possível comprovar o envolvimento pessoal e direto do embaixador, que começou a emitir os primeiros vistos diplomáticos “irregulares” de próprio punho. A maioria desses documentos foi concedida em Vichy e beneficiava não apenas judeus, mas também homossexuais, comunistas e qualquer pessoa ameaçada pelo nazismo.

  • No entanto, de acordo com a legislação vigente na época, era raro um embaixador conceder pessoalmente um visto, e isto só costumava ser feito em casos excepcionais. Para um “indesejável” receber um visto – mesmo o que se encaixava nas poucas exceções preestabelecidas –, era necessário apresentar uma série de documentos, como atestados negativos de antecedentes criminais, de “não ser de conduta nociva à ordem pública”, de saúde e prova de profissão lícita, entre outros. Era muito difícil conseguir estas declarações, principalmente para os refugiados que se encontravam longe de seus países de origem. A autoridade consular brasileira que emitia o visto, por sua vez, tinha a obrigação de informar a “origem étnica” do estrangeiro. 

    Uma grande quantidade de pessoas que requeriam vistos era apátrida, portadoras de passaportes “Nansen” – fornecidos pela Liga das Nações para indivíduos expatriados por causa de problemas políticos. Outras não possuíam qualquer tipo de documento para viajar. Algumas provinham de países que se encontravam tecnicamente extintos naquele momento devido aos conflitos ou cujos governos não os reconheciam mais como cidadãos. A exigência de uma série de documentos e certidões dos imigrantes tinha, na realidade, a função de impedir a entrada de refugiados no Brasil.

    No dia em que Souza Dantas deixou Paris rumo a Vichy, já no caminho, ao passar por cidades como Perpignan e Bordeux, começou a assinar passaportes e documentos de viagem de estrangeiros, a maioria refugiados. Não eram pessoas “especiais” ou “importantes”, mas gente comum. Ele não seguiu nenhuma regra do governo brasileiro, não exigiu taxas, transferências bancárias, declarações ou atestados, e tampouco perguntou ou informou a alguém a origem étnica dos pretendentes.

    Cerca de 500 vistos diplomáticos foram emitidos entre meados de junho de 1940 e 12 de dezembro do mesmo ano – data em que Souza Dantas foi proibido formalmente de conceder qualquer tipo de visto. Entretanto, de acordo com depoimentos, muitos refugiados estiveram com o embaixador nos primeiros meses de 1941 e receberam vistos com datas anteriores a 12 de dezembro de 1940. Ou seja, ele ainda concedeu alguns vistos, mesmo depois de ter sido repreendido e proibido.

  • A partir de agosto de 1940, quando começaram a chegar ao Brasil refugiados com vistos emitidos por Souza Dantas, o Ministério das Relações Exteriores passou a receber um grande número de queixas e reclamações provenientes da polícia marítima, dos inspetores de imigração e do Ministério da Justiça. Não demorou muito para que, após uma série de incidentes envolvendo o impedimento do desembarque de refugiados nos portos brasileiros, o embaixador acabasse sendo considerado um transgressor da lei. Mais grave ainda, seu comportamento irritou profundamente Vargas. Não somente pela repercussão internacional negativa e pela conseqüente pressão sobre o ditador geradas por inúmeros impedimentos de desembarque, mas, principalmente, porque a concessão de vistos já havia sido limitada pelo próprio presidente.

    No dia 11 de outubro de 1941, Getulio ordenou a abertura de um inquérito administrativo contra Souza Dantas e iniciou os trâmites para sua substituição em Vichy. O inquérito foi instaurado, mas o rompimento do Brasil com a Alemanha, em janeiro de 1942, fez com que ele perdesse força. Logo após o Brasil declarar guerra ao Eixo, em agosto do mesmo ano, Vargas ordenou o arquivamento do processo. Mas isso não impediu que um substituto para Souza Dantas fosse escolhido e indicado. Enquanto esperava a chegada de seu substituto, ele encaminhou ao governo brasileiro telegramas detalhados sobre a situação dos refugiados na França:

    “(...) A “Gestapo” vem procedendo, na França ocupada, a verdadeira escravização e extermínio dos judeus. Suas famílias são literalmente separadas: os maridos, de cabeças tosadas, são tangidos para trabalhar na Silésia; suas mulheres são internadas nos campos de concentração na Polônia, uns sem jamais poder saber dos outros, todos relegados a destinos ignorados; e os filhos, mesmo os de idade mais tenra, são violentamente arrancados às mães e confinados em asilos especiais, onde sucumbem (...)”

    Em novembro de 1942, a Alemanha invadiu a área sob administração do governo francês em Vichy e ocupou ostensiva e militarmente toda a França. No dia seguinte, a sede da Embaixada do Brasil foi invadida por um grupo de oficiais nazistas. Souza Dantas se interpôs, aos gritos, na frente dos alemães, protestando contra tal arbitrariedade. Os soldados o ameaçaram com armas e somente com a intervenção do conselheiro Trajano Medeiros do Paço, fluente em alemão, os ânimos se acalmaram. Souza Dantas e seus subordinados acabaram sendo detidos e deportados, em janeiro de 1943, para Bad Godesberg, na Alemanha, onde permaneceram internados em um hotel até o fim de março de 1944. Os diplomatas só conseguiram retornar ao Brasil em maio daquele ano.

  • Por causa da presença de soldados brasileiros na guerra, das notícias da resistência de Souza Dantas à invasão da embaixada em Vichy e de seu longo internamento na Alemanha, os jornais brasileiros passaram a tratá-lo como herói. Mas a transformação do diplomata processado pelo governo em herói não agradou ao ditador Vargas. Rapidamente, as notícias de homenagens a Souza Dantas sumiram da mídia, então controlada rigidamente pelo Estado. Enquanto durou o Estado Novo, Getulio tratou de manter o diplomata fora de evidência no Brasil. Com a queda da ditadura em 1945, o velho embaixador saiu do ostracismo graças à influência política de antigos companheiros do Itamaraty.

    Já aposentado, Souza Dantas foi convidado pelo Ministério das Relações Exteriores para chefiar a delegação brasileira na Primeira Assembléia Geral das Nações Unidas, em Londres, entre 10 de janeiro e 14 de fevereiro de 1946. O embaixador foi o primeiro brasileiro a discursar neste órgão precursor da ONU. Souza Dantas passou seus últimos anos de vida em Paris, falecendo em 1954, mesmo ano da morte de Getulio.

    Vargas voltou a ocupar a presidência do Brasil entre 1951 e 1954, finalmente eleito por voto popular. Uma série de circunstâncias e de medidas adotadas por seus “herdeiros políticos”, entretanto, acabou fazendo com que Souza Dantas fosse ignorado ou negligenciado, como ocorreu com outros personagens, fatos e registros negativos relacionados a Vargas. Acontecimentos ou evidências que chamassem a atenção do público para os fatos que pudessem ser associados à face autoritária e fascista de Getulio Vargas sempre foram evitados pelos que zelaram pela memória do presidente. O fato de Souza Dantas não ter tido filhos também contribuiu para que fosse esquecido.

    Passados quase cinqüenta anos, a publicação do livro Quixote nas trevas e o reconhecimento do embaixador como “Um Justo entre as Nações” pelo Museu do Holocausto de Jerusalém (Yad Vashem), em 2003, deram início a uma série de homenagens a Souza Dantas no Brasil – Rio de Janeiro, São Paulo e Londrina – e no exterior – Nova York e Paris. Um editorial publicado no jornal norte-americano The New York Times no dia 10 de abril de 2005 relembra a atuação do diplomata brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial. A história do embaixador finalmente foi resgatada e ele ganhou seu lugar merecido: como referência e exemplo por seus atos humanitários.

    Fábio Koifman é professor do departamento de História da Universidade Estácio de Sá e autor do livro Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo (Rio de Janeiro: Ed. Record, 2002).