Ignorar a procedência dos documentos, a forma e as casualidades na constituição dos acervos, a trajetória das instituições que os produzem e que os guardam são graves descuidos cometidos por pesquisadores. Analisar a proveniência e, assim, a interdependência dos documentos é cuidado mínimo necessário para se captar o efetivo estatuto de fundo com que os arquivos tendem a nomear e a qualificar a massa documental que acolhem. Ou seja: se a organização e a ordenação dos acervos documentais se realizam hoje por intermédio de fundos, é também primordial que aqueles que os consultam tenham pleno conhecimento de como, quando e, sobretudo, emque circunstâncias eles foram constituídos e entregues à guarda das entidades que os abrigam.
Conhecer os organismos produtores dos documentos demanda, acima de tudo, conhecer seu percurso histórico. Só por aí é que se pode compreender as oscilações no fluxo da produção documental e as alterações na importância e nos conteúdos desses textos determinadas por mudanças nas estruturas administrativas.
Pouco se sabe, por exemplo, sobre as condições de produção de documentos pelas instâncias do poder e pelos órgãos político-administrativos no Portugal da Época Moderna, pois a história, a estrutura e o funcionamento dos mesmos são praticamente ignorados. A escassa bibliografia existente cuida, principalmente, da reprodução dos chamados “textos fundadores” das instituições ou é formada por obras que a estes adicionam comentários ligeiros. Ora, o ordenamento jurídico-legal das organizações é apenas o ponto de partida do estudo. Pouco adianta conhecer ou recuperar a orgânica administrativa de uma instituição se, em simultâneo, não se desvenda o funcionamento dos órgãos por ela abrangidos. Não será pela leitura dos textos legais que criaram o Conselho Ultramarino, em 1642, e a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, em 1736, que detectaremos a dinâmica das relações político-administrativas entre a Metrópole e as colônias ou o fluxo e o refluxo na tramitação dos documentos a elas ligados.
Nesse sentido, por comodidade autojustificadora, a historiografia tende a qualificar como ilógica ou caótica a documentação produzida ou recebida e arquivada pelas instituições portuguesas do período assinalado. Na verdade, o que ocorre é que quase sempre ignoramos a estrutura e o funcionamento dos órgãos administrativos da Colônia. Por conseguinte, a compreensão da gênese ou da tramitação dos documentos neles e entre eles produzidos torna-se fragmentada e parcial.
É essencial, pois, que os historiadores participem das discussões e dos trabalhos relativos à disposição e ao armazenamento dos conjuntos documentais recolhidos aos arquivos permanentes, e que ao lado de pesquisas de interesse individual se desenvolvam outras, de alcance social mais alargado e especialmente voltadas para a reconstituição da dinâmica administrativa das instituições.
Caio Boschi é professor da PUC-Minas e autor de O Brasil-Colônia nos Arquivos Históricos de Portugal (Alameda, 2011).
Um fio de Ariadne
Caio Boschi