Um imenso hospital caipira

Geisa Fernandes

  • Na Itália, ele é o abitante della campagna; na Alemanha, o Bauer; o paysan na França, o labrego galego-português, o guajiro espanhol-cubano. No Brasil, o termo caipira tem dois sentidos. Um ligado à idealização da natureza, outro, à ignorância e ao atraso. Este último, eternizado na figura do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, influenciou na caracterização do personagem de quadrinhos Chico Bento e serviu de base para a compreensão do bom e velho homem do campo.

    Em sua primeira aparição, em novembro de 1914, num artigo endereçado à seção de cartas dos leitores do jornal O Estado de S. Paulo, o Jeca Tatu representa o trabalhador rural itinerante do Vale do Paraíba. Indolente, ignaro, incapaz de prosperar, encarna o povo rural do país chamado pelo médico sanitarista Miguel Pereira, em 1916, de “imenso hospital”. O artigo de Lobato causou grande polêmica. A imagem de um Brasil que se queria urbano e industrial fora definitivamente arranhada. Acusavam-no de não perceber o caipira em toda a sua complexidade e, por isso, devotar-lhe tanto desprezo.

    Quase meio século depois, em 1963, o quadrinista Maurício de Sousa busca inspiração em Jeca ao lançar seu Chico Bento. No início, o personagem guardava semelhanças com o descrito por Lobato, especialmente na indumentária e no comportamento preguiçoso. Semelhanças que duraram pouco, porque rapidamente Chico passa a mesclar as características tradicionais do caipira com valores ligados às aspirações da “moderna” sociedade brasileira. Os pés descalços e a roupa esfarrapada passam de sinais de miséria a indícios de simplicidade momentânea, passaportes para um futuro promissor.

    Apesar de cometer pequenos “delitos”, como roubar goiabas do vizinho ou copiar a prova do colega, Chico Bento mantém sua singeleza, pois as más ações são entendidas como estripulias infantis. Os deslizes provocam a cumplicidade do leitor, que, assim como o menino, deve reafirmar continuamente seus compromissos com as normas sociais disciplinares. É que o leitor, assim como Chico, também comete pequenas infrações cotidianas no trânsito, ao furar uma fila ou jogar lixo na rua, mas entende que estes “deslizes” são desvios temporários de regras sociais com as quais concorda.

    A segunda chance a que Chico sempre tem direito é a mesma que julgamos merecer. Esta identificação faz parte do nosso apego à ideia do país do futuro. Mesmo atualmente, com a imagem do país fortalecida no exterior, o comportamento do personagem continua fazendo sentido para o leitor brasileiro. É certo que o contexto dos anos 1960 era mais eufórico. Mas a ideia de superação, ligada a uma identificação social e, portanto, coletiva, passa a definir o caráter do brasileiro, tornando-se um traço de identidade pessoal.
     
     O processo de conscientização e amadurecimento, entretanto, parece incompatível com a representação. Os maus hábitos de Chico (preguiça, notas baixas na escola, desculpas para deixar de ajudar no trabalho da roça) só podem ser corrigidos com o tempo, o que implicaria o envelhecimento e a morte do personagem. É como se ele estivesse condenado a repetir seus pecados, só que numa perspectiva de mudança. Não de continuidade.

    O erro é encarado com um breve desvio de percurso na busca pelo conhecimento, representado pela educação formal. Este diferencial na abordagem do caipira é responsável, em grande parte, pela boa aceitação do personagem pela crítica e por seu sucesso junto ao público.

    Chico Bento se alinha com o ideal da brasilidade definido por uma postura de otimismo, hospitalidade e capacidade de adaptação. Some-se a esta lista o desejo de ser considerado um país sério, seja por medidas político-econômicas ou pela inserção do Brasil em discussões de interesse mundial.

    O personagem serve de metáfora para a ideia de um povo que ainda precisa provar seu valor, mas que se orgulha de características inatas ligadas ao bem-viver e de não desistir nunca de seus objetivos. Neste sentido, é possível falar do personagem como um exemplo de reconstrução do significado do caipira, reafirmando a lição do historiador britânico Eric Hobsbawm de que também as tradições são uma invenção.

    Geisa Fernandes é pesquisadora do Observatório de Histórias em Quadrinhos (ECA/USP) e coautora de Muito além dos Quadrinhos: Análises e Reflexões sobre a 9ª Arte (Devir, 2009).


    Saiba Mais - Bibliografia

    CIRNE, Moacy. Quadrinhos, paixão e sedução. Petrópolis: Vozes, 2000.
    PATATI & BRAGA. Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
    VERGUEIRO, Waldomiro et al. Como Usar as Histórias em Quadrinhos em Sala de Aula. São Paulo: Contexto, 2006.