Difícil não ficar impressionado. São 360 mil metros quadrados com cerca de 3.500 espécies de plantas, da exótica e rara palmeira-laca da Malásia ao brasileiríssimo pau-ferro. Para muitos, o Sítio Roberto Burle Marx, em Barra de Guaratiba, Zona Oeste do Rio de Janeiro, é um dos espaços mais importantes do mundo no que se refere a plantas tropicais e semitropicais. Em suma, um imenso e maravilhoso jardim.
Mas não era assim que ele via seu sítio. Burle Marx costumava brincar dizendo que justo ele, o maior paisagista brasileiro, criador de tantos jardins públicos e privados, jamais criara um para si próprio. O que será que pensava, então, daqueles magníficos canteiros e suas variadas coleções botânicas? Sua vida e sua obra ajudam a desvendar esse enigma.
O amor pelas plantas começou muito cedo. Quarto filho de uma pernambucana de origem francesa, Cecília Burle, com um judeu alemão, Wilhelm Marx, Roberto nasceu em São Paulo em 1909. Os negócios no ramo de exportação e importação de couros não iam muito bem, e a família resolveu tentar a sorte no Rio de Janeiro em 1913. Wilhelm comprou um casarão no Leme, Zona Sul da cidade, onde Cecília passou a cultivar roseiras. Incentivado pela mãe, o pequeno Roberto cuidava de um canteiro e começou a fazer suas primeiras experiências com a jardinagem. Seu jardim de infância carregava esse sentido íntimo e lúdico.
Na juventude, teve oportunidade de ampliar as influências que marcariam seu trabalho artístico. Aos 19 anos, mudou-se com a família para a Alemanha, onde entrou em contato com a arte de Picasso, Matisse, Klee e Van Gogh, e passou a estudar pintura. E foi em Berlim que se deu conta da beleza das plantas tropicais brasileiras, ao observá-las em estufas do Jardim Botânico de Dahlem. De volta ao Rio, seu primeiro trabalho como paisagista atendeu a um pedido do arquiteto e amigo Lúcio Costa, no início dos anos 1930. Seu nome começou a tornar-se conhecido quando assumiu a Diretoria de Parques e Jardins de Recife, em 1934, fazendo usos criativos da vegetação nativa, como no Cactário Madalena, projetado para a Praça Euclides da Cunha, com plantas da caatinga e do sertão nordestino. No Rio, projetou os jardins do Edifício Gustavo Capanema (então Ministério da Educação e da Saúde), um marco da arquitetura moderna brasileira e do reconhecimento internacional de Burle Marx como o criador do jardim moderno.
Para conhecer a flora nativa, empreendia diversas viagens com amigos pelo país, de carro ou a pé, e mantinha estreita relação com botânicos e naturalistas de todo o mundo. Foi no fim dos anos 1940, quando já era internacionalmente conhecido, que passou a procurar um espaço adequado para cultivar as mudas que utilizava em seus projetos. E não eram poucas, pois se recusava a valer-se apenas de plantas já conhecidas ou tradicionalmente utilizadas.
O sítio foi adquirido em 1949. Era a sede de uma antiga fazenda, a cerca de 50 quilômetros do centro da cidade. Para lá iam todas as plantas recolhidas em suas expedições, organizadas em estufas e canteiros para depois serem replantadas em diversos jardins. Burle Marx pretendia ampliar o vocabulário paisagístico, descobrindo espécies nativas e retirando-as do contexto em que viviam para propor novos arranjos. Via-se na missão de “redimir” a planta, salvando-a do seu destino natural de invisibilidade no interior das matas. Muitos de seus clientes e amigos sublinhavam o sentido de revelação que tinham os seus jardins. O caso mais notório de apropriação de plantas corriqueiras foi o das helicônias, antes desdenhadas como bananeiras selvagens. Burle Marx as utilizou em centenas de jardins e arranjos florais. Dedicou-se tanto a pesquisá-las que foi o descobridor de muitas espécies, algumas das quais ganharam seu nome, como a Heliconia burle-marxii.
Ele ficava cada vez mais consciente da situação ecológica do país. A percepção de que o ambiente vinha sendo destruído pela civilização voraz o levou a intensificar seu discurso em defesa da harmonia entre cultura e natureza. Esta era a verdadeira razão de ser do sítio, onde passou a morar no início dos anos 1970. Preservação e revitalização eram as palavras de ordem daquele ambiente. No sítio, as coleções botânicas conviviam intimamente com obras de arte e cultura. A começar por uma pequena capela de Santo Antônio, erguida no século XVII. Destruída em 1710 por soldados franceses, a capela chegou a ser reconstruída em 1791, mas a decadência do engenho no qual se situava acabou arruinando o lugar no século seguinte. Burle Marx restaurou o espaço e o devolveu aos fiéis. Ainda hoje, na capela celebram-se missas, casamentos, e há uma famosa procissão de Santo Antônio no dia 13 de junho. Ao paisagista interessava não apenas restaurar e conservar o lugar, mas recuperar a sua vitalidade.
As edificações mais recentes do sítio também seguiam esse ideal. É o caso do jardim aquático criado diante da residência. Burle Marx utilizou blocos e colunas de granito adquiridos em demolições, dando novo uso e valor a essas peças rejeitadas pelo crescimento urbano. Era um recurso peculiar do artista, comum em outros jardins projetados por ele. Conta-se que, por ocasião da demolição de um edifício comercial antigo no centro do Rio, o arquiteto Renato Soeiro telefonou para Burle Marx oferecendo a fachada do prédio. Soeiro era presidente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e achava, com razão, que o paisagista seria o único “maluco” a aceitar uma oferta como aquela. Burle Marx não só recebeu a fachada como a utilizou em um novo ateliê. As grades de ferro que fechavam as arcadas no projeto original foram deslocadas, e hoje estão nas janelas do prédio que abriga a administração do sítio.
Ao se apropriar de elementos de diferentes tempos e lugares, o sítio expressa uma aceitação incondicional da vida, sem passividade ou cinismo. Se por um lado Burle Marx demonstrava entender que nada podia frear o curso da civilização, por outro acreditava ser possível construir alternativas para lidar com a destruição. Recusava a nostalgia, mas não abria mão do diálogo com a tradição, com aquilo que nos antecede e nos forma. Para ele, a natureza e a cultura constituem uma mesma esfera, anterior e superior ao homem – nossas raízes, nossa identificação como parte da humanidade.
A casa ganhou uma biblioteca com mais de três mil títulos, pinturas, desenhos, tapeçarias, vitrais, painéis de azulejos, cerâmicas, esculturas. “Roberto fez ali uma das maiores coleções de plantas tropicais e subtropicais do planeta, muitas delas em extinção. Recuperou a sede de uma fazenda antiga e passou a morar nela, materializando os sinais das mais diversas fontes de cultura que alimentavam a sua personalidade e, portanto, a sua criação. Livros de ficção, poesia e arte, um piano, cusquenhos, ex-votos, carrancas, vidros de design escandinavo, terracotas colombianas, um corolário de compoteiras, barros do Jequitinhonha, móveis brasileiros dos séculos XVII e XIX ao lado de outros da Bauhaus”, descreve Soraia Cals, amiga do paisagista e autora de sua fotobiografia.
No sítio cabia o mundo inteiro. Desafiando tradicionais oposições entre arte erudita e popular, pura e aplicada, atual e tradicional, Burle Marx construiu para si um ambiente em que os valores estéticos eram centrais. Não era à toa que gostava de citar uma frase de Le Corbusier: “Precisamos nos cercar de objetos carregados de emoção poética”.
Diante de tudo isso, como poderia não considerar seu sítio como um jardim? Talvez porque lhe fizesse falta um projeto original, aquele plano central de distribuição de massas, volumes e texturas do qual nasciam seus trabalhos. Intervenções criativas não faltaram naquele espaço, mas elas eram parciais, sem uma visão mais geral e totalizante. Sem um projeto único e coerente, enfim.
Quando se conhecem outras obras do paisagista, porém, essa resposta parece insuficiente. Afinal, muitas das plantas e dos desenhos em guache que fazia eram esquemas abstratos que, embora essenciais, precisavam ser compensados pela experiência direta e vital da natureza. Burle Marx sabia que a planta, matéria-prima do paisagismo, não é estática. Ela tem vida própria e precisa ser conhecida e respeitada. Nos projetos, bidimensionais, ele apenas indicava as espécies que utilizaria neste ou naquele canteiro, sabendo, como poucos, antecipar as relações formais que dali surgiriam.
Trabalhava com contrastes cromáticos que nada tinham a ver com as cores usadas em seus planos feitos em guache. Combinava as tonalidades das folhagens perenes com as cores das flores que só surgiam em determinados períodos do ano. Previa o crescimento de uma espécie e como ela poderia vir a dialogar com a fachada do edifício ou se opor às plantas rasteiras. Presumia até os efeitos produzidos pela combinação dos cheiros das espécies. No atual Instituto Moreira Salles, por exemplo, o cheiro impregnante do pau-d’água é elemento central na criação dessa ambiência sensível.
Ou seja: o desenho original jamais determinou o destino do jardim, sempre imprevisível e instável. O uso da forma abstrata em seus projetos respeitava essa idéia de incompletude – seu fim permanecia em aberto.
Ainda que não tenha sido concebido como tal, o sítio de Burle Marx reúne qualidades centrais de todas as suas obras. É um espaço existencial, móvel e cambiante, que se fundamenta na aproximação entre a arte e a cultura, a preservação e a vitalidade.
A recusa de Burle Marx em reconhecer seu estatuto de “jardim” pode ter um sentido inesperado e comovente: cercar o sítio de mistério e poesia. Talvez quisesse transformá-lo em uma espécie de jardim secreto. E mesmo hoje, sob a guarda de uma instituição pública – desde a morte do paisagista, em 1994, é administrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) –, esse espírito se mantém: não há limites para o destino e os usos daquele espaço. O Sítio Roberto Burle Marx estará para sempre aberto às experiências sensíveis de cada um de nós. Como todos os seus jardins.
Vera Beatriz Siqueira é professora de História da Arte e vice-diretora do Instituto de Artes da UERJ e autora do livro Burle Marx (Cosac Naify, 2001).
Saiba Mais - Bibliografia:
CALS, Soraia. Roberto Burle Marx. Uma fotobiografia. Rio de Janeiro: S. Cals, 1995.
ELIOVSON, Sima. Os jardins de Burle Marx. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991.
LEENHARDT, Jacques (org.) Nos jardins de Burle Marx. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996.
MARX, Roberto Burle. Arte e paisagem. Conferências escolhidas. São Paulo: Nobel, 1987.
Conheça o jardim dos jardins
O Sítio Roberto Burle Marx está localizado na Estrada da Barra de Guaratiba n° 2019, um dos endereços mais nobres da ilha de Guaratiba, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Cerca de cinco mil pessoas visitam o espaço anualmente. Mas para conhecê-lo é preciso agendar com antecedência, pelo telefone (021) 2410-1412. As visitas são guiadas, duram cerca de duas horas e podem ser feitas diariamente (inclusive aos sábados, domingos e feriados) em dois horários: 9h30 e 13h30. O atendimento pode ser individual ou a grupos (incluindo escolas) formados por até 30 pessoas. Outra maneira de se conhecer a casa de Burle Marx é freqüentar os eventos promovidos pela Sociedade de Amigos do Sítio, como visitas a outros projetos do paisagista e concertos musicais no ateliê. Essas atividades são restritas aos sócios, que pagam uma anuidade de R$ 50,00. Para garantir sua carteirinha, basta ligar para (021) 2558-9945. E é melhor não esperar muito: a Sociedade promete novidades para agosto, mês em que será celebrado o centenário de nascimento de Burle Marx.
Um jardim sem igual
Vera Siqueira