“Quanto são cabidas as (...) censuras ao nosso país, em cujo teatro se legitimam as versões espúrias e mal alinhavadas de (...) quanta ruindade desonra o teatro estrangeiro!”
É difícil reconhecer em palavras tão sisudas aquele que, com refinado senso de humor, se tornaria um dos mais brilhantes romancistas do Brasil. Às vésperas de completar 23 anos, Machado de Assis dava seus primeiros passos na literatura, encontrando no Conservatório Dramático Brasileiro uma oportunidade para estreitar os laços com escritores e interferir nos rumos do universo teatral.
Criado em 1843 e extinto em 1864, o Conservatório recebia dos empresários e autores os textos que subiriam à cena no Rio de Janeiro, devendo autorizar ou não sua representação. Cabia aos censores, escolhidos entre os literatos, a verificação do respeito à moral, ao decoro, à religião, às autoridades e aos poderes constituídos da nação, além da indicação de correções literárias e gramaticais.
Em meio à extensa documentação do Conservatório, é possível consultar os dezesseis pareceres assinados entre 1862 e 1864 pelo jovem Machado. Entre eles destaca-se, pela análise minuciosa e a expressão precisa do “bom teatro”, o parecer sobre o drama “Clermont ou a mulher do artista”, de 16 de março de 1862.
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De acordo com o parecer, a peça “é uma dessas banalidades literárias que constituem por aí o repertório quase exclusivo dos nossos teatros. A bem dizer, não é um drama, é uma narração fria, fastidiosa, trivial, onde a luta de sentimentos é nula, e onde nada existe do que pode constituir um drama”. Além disso, “se a peça nada vale por si, a tradução veio torná-la mais inferior ainda”.
A dura avaliação de Machado revela uma concepção de teatro que valoriza os aspectos literários, como a linguagem, a originalidade e a riqueza psicológica dos personagens em detrimento dos aparatos cênicos. De acordo com o literato iniciante, “pena é que os nossos teatros se alimentem de composições tais, sem a menor sombra de mérito; destinadas a perverter o gosto e a contrariar a verdadeira missão do teatro”. Afirmando que certas peças “pervertiam o gosto”, Machado acabava revelando que os espetáculos deveriam educar o público, transformando-se, segundo suas próprias palavras, em uma “força de civilização”.
A crença no potencial pedagógico do teatro não era privilégio do jovem censor. Em 1855, o empresário Joaquim Heliodoro reinaugurou o Teatro São Francisco, que passara por reformas, com o nome de Ginásio Dramático, em alusão ao Gymnase Dramatique. Segundo o empresário, o Ginásio encenaria o moderno repertório francês e textos originais brasileiros alinhados às propostas da reforma realista do teatro, que, iniciada em Paris, buscava transformar os palcos em “escolas de costumes”, ensinando comportamentos e “formando o gosto” das platéias. Muitos literatos viram com bons olhos a proposta de reforma, entre eles Machado de Assis e o já consagrado José de Alencar.
O parecer de Machado era profundamente influenciado pelas idéias realistas. Talvez por isso o censor acreditasse que o teatro brasileiro passava por sérios problemas, aos quais “o governo podia e devia pôr termo iniciando uma reforma que assinalasse ao teatro o seu verdadeiro lugar”.
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A defesa do apoio governamental ao teatro era freqüente entre os artistas, literatos e empresários teatrais do século XIX. Mais do que provedor, o governo deveria ser o regulador da atividade teatral, minimizando os efeitos nefastos da concorrência e garantindo a qualidade dos espetáculos. Como se pode imaginar, a afirmação do potencial “civilizador” do teatro serviu muitas vezes como justificativa para a requisição de verbas e subsídios oficiais.
Mesmo a contragosto, Machado autorizou a encenação da peça. Limitados pelos estatutos do Conservatório e pelas preferências do público, os literatos não conseguiram impedir o sucesso das “banalidades literárias” que divertiam as platéias de outrora.
Andrea Marzano
Um lugar para o teatro
Andrea Marzano