Casaca e cartola para os homens e vestidos longos e chapéus com plumas para as mulheres: era com essa elegância que os cariocas iam às apresentações do Theatro Municipal no início do século XX. O requinte era tanto que havia bondes com bancos forrados de tecido branco para que os trajes dos passageiros não se sujassem e permanecessem impecáveis. O cuidado e a pompa não podiam ser diferentes; afinal, a casa de espetáculos, que completa 100 anos, era o que havia de mais moderno e luxuoso no Rio de Janeiro.
Prestigiando a primeira noite em que o Municipal levantava suas cortinas – no dia 15 de julho de 1909 –, estavam presentes muitas personalidades importantes, como o presidente da República, Nilo Peçanha, e a compositora e pianista Chiquinha Gonzaga. Era o primeiro público que subia pela suntuosa escadaria e usufruía o mobiliário em mogno, com incrustações em mármore.
O Municipal era um teatro que finalmente estava à altura do Rio. Além da sua excelência arquitetônica, oferecia inovações no funcionamento de uma casa de espetáculos. Mais do que pompa, trazia praticidade e conforto. Havia refrigeração artificial, a cortina e os cenários eram suspensos por um mecanismo que não provocava dobras no pano e o palco era móvel. Os menores detalhes foram planejados: o gerador de energia elétrica ficava em um prédio anexo para que a trepidação e o ruído não atrapalhassem as apresentações.
Para combater o calor escaldante da cidade foi encontrada uma solução engenhosa: “Um caminhão deslizava gelo por uma ponte até uma entrada que dava para uma parte subterrânea do teatro. Em uma câmara isolada, o gelo era mantido”, conta o pesquisador Edgard de Brito Chaves Jr., autor do livro Memórias e glórias de um teatro – Setenta anos de história do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
O discurso do poeta Olavo Bilac (1865-1918) na inauguração dá uma idéia de como a nova construção foi recebida: “Dentro do teatro reside a vida civilizada, tudo quanto ela tem de sério e amável, de forte e de meigo. Dentro dele impera o pensamento. Faltava-lhe este palácio, cidade amada!” Derramando-se em elogios, Bilac descreveu-o como “uma das mais belas jóias da tua coroa de rainha”.
Atualmente cercado por prédios altos no movimentado centro da cidade, fica difícil ter noção da imponência e do destaque que o Municipal teve na paisagem, e da admiração que causou em seus freqüentadores, nos cronistas e até em quem vira apenas sua fachada. O público encantou-se não só por sua beleza arquitetônica, mas pelo que simbolizava: era um passo na direção da tão almejada modernidade.
Pronto somente na gestão do prefeito Serzedelo Correia, o teatro foi uma realização do antecessor. Francisco Pereira Passos, idealizador da reforma urbana (1902-1904) apelidada de “Bota-abaixo”, saneou o Rio, alargou as avenidas, melhorou sua iluminação e os transportes e derrubou os antigos casarões coloniais. No lugar deles foi construído um conjunto de prédios – do qual faz parte o Theatro Municipal – formado pela Biblioteca Nacional, pelo Museu Nacional de Belas Artes e pelo Supremo Tribunal Federal.
O Theatro Municipal pode ser considerado o coroamento dessa reforma, segundo a historiadora da arte Claudia Ricci: “É um dos edifícios da reforma urbana com melhor acabamento, materiais de qualidade – mármore de Carrara e parte da estrutura encomendada da Inglaterra –, além da mão-de-obra especializada, como Rodolfo Bernardelli [escultor, 1852-1931], entre outros. É uma obra sólida”.
Não foi à toa que, para arrematar com esplendor a mudança radical da cidade, decidiu-se por uma casa de espetáculos: “Em vez de catedral, o teatro é o centro da reforma. Se fosse o Brasil Colônia, seria a igreja”, comenta Ana Cavalcanti, professora de História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É o teatro da burguesia que está se formando. Onde a elite vai ver e ser vista. De tarde passeia na Avenida Central, toma chá nas confeitarias e à noite vai ao Municipal”, complementa Claudia Ricci. “O teatro veio responder aos anseios de uma classe burguesa que dizia que aqui só tinha belezas naturais. Era a transformação de uma cidade colonial na ‘Paris dos trópicos’”, explica Ana.
Paris era o paradigma da modernidade. A cidade havia passado por uma reforma, entre 1853 e 1870, projetada pelo barão Eugène Haussman, e era admirada por seu luxo e por seus bulevares (rua ou avenida larga, em geral arborizada).
Aqui, enquanto as avenidas eram abertas, Pereira Passos resolveu se engajar na empreitada de construir um teatro moderno. As duas maiores casas de espetáculos do Rio, o São Pedro e o Lírico, tinham instalações precárias e antigas. O primeiro e principal defensor de um teatro nacional que fosse sede de uma companhia municipal foi o dramaturgo Arthur Azevedo (1855-1908), que lançou campanha para pôr em prática sua idéia. O esforço resultou numa lei municipal, em 1894, para a criação de um teatro, mas ela não saiu do papel.
Somente em 1903, em meio à reforma urbana, foi aberta uma concorrência para decidir qual seria o arquiteto responsável pela tarefa. Estava iniciada uma polêmica que movimentou a capital. Dos sete projetos apresentados, o Áquila e o Isadora (pseudônimos dos autores) ficaram empatados em primeiro lugar. A confusão começou quando se descobriu que o primeiro era de autoria do filho do prefeito, Oliveira Passos. As reações na Câmara Municipal e na imprensa foram enfurecidas. Oliveira Passos teria sido favorecido? A seção de arquitetura da prefeitura teria feito o projeto?
“Não podemos ser respeitados quando a maior autoridade local do Distrito convida em um certâmen universal filhos de nações estrangeiras para a ele concorrerem, sabendo de antemão que já estava o primeiro prêmio destinado a seu próprio filho,” escreveu Eneas Sá Freire no Jornal do Commercio. Entre os estrangeiros a que ele se refere estava o arquiteto francês Albert Guilbert, vice-presidente da Associação de Arquitetos Franceses e autor do projeto Isadora.
Parte da população também se indignava por acreditar que a nova construção seria um luxo desnecessário numa cidade que ainda enfrentava problemas de saneamento básico e epidemias como a da varíola. Em meio a tantos ataques, ficou decidido que seria adotada uma fusão dos dois projetos.
O modelo arquitetônico foi inspirado na Ópera de Paris, projetada por Charles Garnier (1875). Ao contrário do que muitas vezes é repetido, nosso Theatro Municipal não é uma simples réplica da casa francesa, explica Claudia Ricci: “Ele [Oliveira Passos] não foi lá e copiou. A cópia desprestigia a capacidade do arquiteto de pensar. Não havia como reinventar a roda. Inclusive, se você olhar por fora, eles não são parecidos”, diz a historiadora. O teatro parisiense, ela ressalta, era um paradigma do período. Em seu projeto, Garnier conseguiu solucionar arquitetonicamente problemas como a falta de higiene e o conforto, aliando tudo isso à beleza. É uma arquitetura revivalista, isto é, que mescla elementos de estilos antigos, como o barroco, com materiais novos, como o ferro fundido.
Não faltou empenho durante a construção do Municipal. A obra foi realizada em tempo recorde (quatro anos e meio) graças aos 280 operários que se revezavam em dois turnos de trabalho. Durante as escavações para a colocação das estacas de madeira que fariam parte da fundação do prédio, uma surpresa: foram achados restos de uma embarcação que possivelmente foi utilizada para navegar entre a antiga Lagoa de Santo Antônio – sobre a qual foi erigido o teatro – e o mar.
Para o delicado trabalho de decoração, cercado de preciosismo, foram convocados importantes artistas da época. Eliseu Visconti (1866-1944) foi responsável pela pintura da cúpula localizada acima da platéia, que ele chamou de “Dança das horas”. Na imagem, as alegorias femininas representam a aurora que acaricia o dia e as horas entrelaçadas seguidas pela noite. A passagem é ilustrada também pela diferença de cores; dos tons mais azulados para o tom alaranjado. A historiadora Ana Cavalcanti explica que Visconti fez uma adaptação do pontilhismo para arte decorativa: “A mistura de cores se faz por justaposição”. Entre os artistas que decoraram o Municipal estavam o pintor Rodolpho Amoedo (1857-1951) e os irmãos Rodolpho e Henrique Bernardelli (1857-1936).
Marco de uma cidade que se queria moderna, o Theatro Municipal é, ironicamente, parte do que chamamos hoje de Rio Antigo, mas continua sendo um ícone da nossa arquitetura e centro de cultura por onde passaram grandes nomes, como a soprano brasileira Bidu Sayão (1906-1999) e o tenor italiano Enrico Caruso (1873-1921), e onde, certamente, ainda se apresentarão muitos outros.
Saiba Mais - Bibliografia:
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SEVCENKO, Nicolau (org). A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: História da Vida Privada no Brasil 3: República da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
De volta à cena
Logo que assumiu a presidência da Fundação Theatro Municipal do Rio, em outubro de 2007, a atriz Carla Camurati se deparou com uma situação calamitosa: “Uma cúpula da platéia ficava coberta com plástico preto. Os mictórios tinham que ser esvaziados a balde no intervalo. A cortina do palco não fechava, havia infiltrações em todas as áreas e até fios de pano.” Uma reforma era mais do que urgente. Com um custo total de R$ 78 milhões, as obras, que começaram em março de 2008, contaram com quatro grandes patronos: BNDES, Eletrobrás, Petrobras e TV Globo (cada empresa contribuiu com R$ 15 milhões).
As instalações hidráulicas e elétricas estão sendo totalmente reformadas, além dos reparos necessários em locais como a sala de espetáculos, o balcão nobre e as frisas. As telas de Eliseu Visconti e as esculturas e pinturas dos irmãos Bernardelli também vão passar por uma revitalização. “Essa reforma vai deixar o teatro pronto para viver mais cem anos de arte e emoção na vida de nossa cidade,” afirma Carla. No dia 14 de julho próximo, mesma data da fundação, a casa de espetáculos reabre suas portas ao público.
Um luxo de teatro
Claudia Bojunga