Um moderno viajante nos trópicos

Luciano Trigo

  • A paixão pela aventura foi uma constante na trajetória do poeta e romancista franco-suíço Blaise Cendrars, que fez das viagens, reais ou imaginárias, a matéria-prima de sua criação. Cendrars fez sete visitas ao Brasil. Na primeira delas, em 1924, quando foi subvencionado pelo milionário e mecenas paulista Paulo Prado, permaneceu por nove meses. Travou contato com artistas modernistas em São Paulo, conheceu Donga e outros músicos populares no Rio de Janeiro, onde subiu sozinho uma favela, e passou a Semana Santa nas cidades históricas de Minas Gerais, ao lado de Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, na chamada “caravana modernista”.

    Foi Cendrars – um estrangeiro – quem despertou o interesse dos modernistas pela arte regional e tradicional barroca de Minas Gerais. Mário de Andrade chegou a declarar que foi Cendrars quem o libertou da França. E é a viagem com o escritor ao Rio de Janeiro, no Carnaval, que faz aflorar em Tarsila o gosto pelo popular, pela poesia das favelas e da gente humilde, até então soterrado pela influência do “bom gosto europeu”. Foi Cendrars, aliás, quem escreveu os textos do catálogo da primeira exposição de Tarsila em Paris, na Galerie Percier, em 1926. Tudo o encantava: a mestiçagem, as esculturas de Aleijadinho, as aventuras de Lampião. O Brasil nunca mais deixaria sua obra, estando presente nas poesias de Feuilles de Route, no fantástico personagem Coronel Bento de D’Oultremer à Indigo, no Febrônio de Magia Sexualis, e também no livro de memórias La Tour Eiffel sidérale.

    “Feliz de poder romper com o comércio de manifestações parisienses, onde se confinava a poesia – dadaísmo, surrealismo –, agarrei a oportunidade pelos cabelos e parti o mais depressa possível”. Cendrars rompe com seu passado de esteta, e essa ruptura se reflete nesse verso: “Adieu Paris, Bonjour soleil”, que se traduz como “Adeus Paris, Bom dia Sol”.

  • Antes desse contato real, o Brasil de Cendrars foi construído inicialmente por uma mitologia particular, formada a partir de seu convívio com os modernistas brasileiros na França e da leitura de antigos relatos de viajantes: um mundo edênico e distante, ao mesmo tempo promissor e ameaçador. Cendrars criou o Brasil na sua imaginação antes de recriá-lo em suas poesias – um Brasil exótico e exuberante, muito mais interessante que o Brasil urbano retratado, por exemplo, por Machado de Assis, que o poeta achava muito “europeu”.

    Chegando aqui, o escritor teve que adaptar essa visão fantasiosa de um mundo em gestação a uma realidade bem diferente, uma sociedade em rápido processo de modernização, que conciliava o fabuloso com o real. Cendrars se identificou imediatamente com o país, a ponto de declarar que o Brasil era a sua pátria espiritual. É sintomático, nesse sentido, que ele tenha traduzido para o francês o romance A selva, do escritor português Ferreira de Castro, cuja ação se passa no “inferno verde” da Amazônia. Para Cendrars, o Brasil era o cenário onde seria possível refazer a Criação à sua maneira.

    As afinidades de Cendrars com o Movimento Pau-Brasil, capitaneado por Oswald de Andrade, eram evidentes. Segundo Oswald, o primitivismo que na França aparecia como um exotismo era, para nós, um fato. Daí ele querer criar uma poesia de exportação, e não de importação, enraizada em nossa geografia, nossa história e nossa cultura. Para todos os modernistas brasileiros, Cendrars era uma referência, um modelo a ser copiado, no espírito renovador da Semana de 22. Oswald e seu grupo preconizavam a criação de uma poesia e de uma arte novas, que explorassem, por um lado, os sentimentos e estados de alma mais espontâneos e primitivos da sensibilidade brasileira; por outro, as inovações formais trazidas pelas vanguardas européias, sobretudo o movimento futurista, do qual Cendrars foi uma figura-chave. No amálgama da natureza com a indústria, da vegetação com a máquina, da floresta com o novo espaço urbano, o poeta enxergava a expressão de uma realidade superior a toda forma de saber livresco.

  • Havia razões para essa exaltação ufanista. Quando Cendrars chegou no Brasil, encontrou um país em acelerada transformação e varrido por uma onda de otimismo nacionalista, uma terra de oportunidades que atraía cada vez mais europeus – que, reeditando a época do descobrimento, enxergavam nesta terra exótica, contraditória e caótica, possibilidades infinitas de realização. Os artistas e intelectuais brasileiros, em contrapartida, redescobriam a Europa, estabelecendo-se assim um intenso fluxo de informações e idéias. Além disso, a economia baseada na monocultura do café em São Paulo tornara a região um pólo de atração internacional: nas duas primeiras décadas do século XX, o Brasil recebeu mais de um milhão de imigrantes.

    Em São Paulo, Cendrars freqüentou a plutocracia do café e a oligarquia política. Empolgado com o que via, ele sonhou fazer no Brasil uma fortuna “à l’americaine”, iniciando empreendimentos em diferentes domínios: combustível, cinema e exportação de café, tema do texto La Métaphysique du Café, de 1927, em que exalta a riqueza e o progresso paulistas. Cendrars fez uma conferência no Conservatório Municipal de São Paulo, no dia 28 de junho, sobre arte moderna européia. Para o acontecimento, Olívia Penteado, Paulo Prado e Tarsila expõem obras de artistas franceses como Delaunay, Léger, Cézanne e Gleizes, de suas coleções particulares. Tarsila pinta uma tela especialmente para a ocasião.

    A conferência foi organizada em parte para remediar a precariedade da situação financeira de Cendrars, já que a renda permitiria que ele não ficasse inteiramente dependente da generosidade de Paulo Prado. No começo de março, Cendrars faz a viagem ao Rio, com Olivia Penteado, Oswald e Tarsila, para assistir ao Carnaval. Tarsila faria sete ilustrações para a primeira edição de Feuilles de Route, incluindo a capa, uma adaptação de seu quadro A Negra, de 1923, que realça o caráter exótico dos poemas. Mas São Paulo era mesmo seu lugar de predileção. Cendrars compreendeu como poucos a essência da metrópole então em expansão: sem tradição, sem preconceito, com um apetite furioso.

  • Naquele ano de 1924, Cendrars já tinha um currículo apreciável, como aventureiro e como criador. Dez anos antes se alistara na Legião Estrangeira para lutar na Primeira Guerra, pouco depois de lançar, com ilustrações de Sonia Delaunay, La Prose du Transsibérien et La Petite Jeanne de France, que fez dele uma referência no meio literário e intelectual parisiense. Sua carreira de soldado não durou muito: em 1915, no front, um tiro de obus lhe arrancou um braço. Voltando a freqüentar o Café de Flore e La Rotonde, travou amizade com escritores e artistas como Apollinaire, Soupault, Cocteau, Picabia, Léger e Modigliani.

    Em 1917, publica Profond Aujourd’hui, texto que resume uma estética da modernidade, que logo repercute no Brasil. E, no ano seguinte, J’ai tué, que testemunha o choque da guerra, com desenhos de Fernand Léger. Cendrars ainda encontrou tempo para trabalhar na equipe do cineasta Abel Gance, no filme La Roue, e para montar uma editora em sociedade com o banqueiro Paul Lafitte, Les Éditions de La Sirène. Por essa editora lança L’Anthologie Nègre, que também repercute entre intelectuais brasileiros e leva o compositor Darius Milhaud a chamá-lo para colaborar no ballet La Création du Monde.

    Em 1917 e 1918, Milhaud passara uma temporada no Rio de Janeiro como secretário da Embaixada. Paul Claudel era o chefe da missão diplomática francesa encarregada de transações de café com a firma Prado-Chaves-Fazenda São Martinho. Milhaud se encantou com a descoberta da música brasileira, os sambas, choros e maxixes cujos ritmos incorporaria no ballet Le Boeuf sur le Toit – criado por Jean Cocteau, com base no maxixe intitulado Boi no Telhado, de Zé Boiadeiro, sucesso no carnaval carioca daquele ano. Le Boeuf sur le Toit logo virou nome de um cabaré em Paris, onde artistas e intelectuais franceses ouviam música brasileira. Raul Bopp escreveu que lá se falava “de um Brasil imaginário, de suas paisagens coloridas, um verdadeiro país de utopia”.

  • Enquanto isso, sob o mecenato do magnata do café Paulo Prado, um grupo de intelectuais e artistas inicia um movimento em busca dessa nova identidade brasileira, privilegiando temas nacionais mas ao mesmo tempo absorvendo influências das vanguardas européias. Tudo isso irá desembocar na Semana de Arte Moderna de 1922. As idéias de renovação que prevaleciam na Europa desde o Manifesto Futurista de Marinetti eram importadas em série. Oswald de Andrade estava em Paris em 1923, com a pintora Tarsila do Amaral, então sua amante. Os dois faziam parte da colônia brasileira que, apoiada pelo embaixador Souza Dantas, se integrava à vida cultural parisiense. Oswald chegou a pronunciar uma conferência na Sorbonne, intitulada L’Effort intellectuel du Brésil contemporain. Tanto quanto os balés russos e a música negra, o exotismo brasileiro estava na moda.

    Foi Oswald quem procurou Cendrars, como atestou Sérgio Buarque de Holanda. O lugar do encontro, naturalmente, foi o Le Boeuf sur le Toit. Os dois logo se tornam amigos, e Blaise presenteia Oswald com um quadro a óleo. Cendrars ciceroneia o casal Oswald-Tarsila por tout Paris. Amigo do mecenas Paulo Prado, Oswald articulará rapidamente uma nova viagem de Cendrars ao Brasil – já que a caução de um artista daquele nível seria ótima para o movimento modernista brasileiro. Apresentado a Cendrars, Prado, bibliófilo, lhe põe nas mãos Voyage dans les Provinces de Saint Paul et Sainte Catherine (Viagem às províncias de São Paulo e Santa Catarina), de Auguste de Saint Hilaire, e Tableau Général de la Province de Saint Paul, que inspiram Cendrars a escrever o poema “Pedro Alvares Cabral”. “Foi Prado quem me iniciou na História do Brasil”, escreveu Cendrars em Trop c’est trop.
    Cendrars já não gostava tanto da agitação, dos manifestos e das palavras de ordem das vanguardas estéticas européias, que lhe pareciam esvaziadas pelo trauma da guerra. Via com desconfiança a renovação da poesia francesa e se dizia cansado do que chamava de “literatura de laboratório”. E, mais tarde, quando Oswald rompe com Paulo Prado, Cendrars fica do lado deste. É o momento em que o escritor francês se torna crítico em relação a seus colegas modernistas brasileiros, que ambicionam uma literatura nacional, mas vão buscá-la no passado: “Meus amigos ficaram insuportáveis”, escreveu, “amaldiçoam a Europa, mas não podem ficar uma hora longe de sua poesia”. A Yan de Almeida Prado, Cendrars declarou que já era tempo de os brasileiros se voltarem para o Brasil, ao invés de só enxergarem Paris.

    José Augusto Calil, um estudioso do tema e organizador da segunda edição do livro A aventura brasileira de Blaise Cendrars, de Alexandre Eulálio, para o qual reuniu extensa documentação, dirigiu ainda um longa-metragem intitulado Acaba de chegar ao Brasil o bello poeta francez Blaise Cendrars, inspirado numa notícia de jornal da época. Um dos projetos não realizados de Cendrars era, aliás, produzir um filme para divulgar o Brasil na Europa – Um filme 100% Brasileiro –, para o qual chegou a conceber 27 projetos. No livro de Alexandre Eulálio, estão transcritas as últimas linhas escritas por Blaise Cendrars, após sofrer um derrame. Essas linhas falam do Brasil.

     

    Luciano Trigo é jornalista e escritor, Coordenador Geral do Livro e da Leitura da Biblioteca Nacional.