- Uma das transformações políticas mais importantes da América Latina contemporânea é o reconhecimento do Equador (2008) e da Bolívia (2009) como “Estados Plurinacionais” em suas novas Constituições. Pela primeira vez, as nações indígenas são oficialmente consideradas em sua diversidade e, ao mesmo tempo, integradas ao país.A relação entre esses povos e a comunidade nacional já foi chamada de “problema indígena” no início do século XIX. À frente dos processos de independência, as elites dirigentes crioulas (descendentes de europeus) propuseram a assimilação: para ser incluído, o indígena deveria deixar de sê-lo e tornar-se um cidadão como os outros. Isto significava perder as prerrogativas que tinham sob a administração colonial, entre elas, a propriedade comunitária da terra.As populações indígenas eram organizadas de duas maneiras. Pelo concertaje, eram obrigadas a trabalhar para intermediários ou “priorietários” (conhecidos como tierratenientes). Já os resguardos permitiam-lhes exercer a propriedade coletiva da terra e suas próprias formas de organização política, em troca de uma quantidade determinada de trabalho para as autoridades, os hacendados (no sistema de hacienda, os indígenas mantinham vínculos de servidão com os proprietários) ou a Igreja. Neste caso, a propriedade coletiva da terra era garantida pelos “protetores de índios”, funcionários a serviço da Coroa. Os indígenas se recusaram a abrir mão desse direito, e as elites locais também discordaram da assimilação, pois se beneficiavam do trabalho indígena. O projeto de cidadania individual não foi para frente, e em ambos os países persistiu a estruturação da sociedade em castas. Mas em meados do século XIX voltaria a oposição às formas comunitárias de propriedade da terra e ao tributo indígena. A ideologia liberal e o positivismo consideravam aquelas heranças coloniais como contrárias à cidadania e ao livre jogo das forças de mercado. Reformistas percebiam os nativos como raça bárbara, que impedia a construção de uma nação civilizada.
Os indígenas só entraram no cenário da política nacional com as revoluções liberais. No Equador, em 1895, liberais liderados por Eloy Alfaro, com raízes fortes no litoral e apoiado pelos indígenas, produziram uma revolta contra a hegemonia conservadora da Serra. Na Bolívia, houve uma guerra civil em 1898, na qual os liberais, liderados pelo coronel José Manuel Pando, representantes de La Paz e com o apoio de comunidades indígenas aymaras, enfrentaram os conservadores, representantes da região de Sucre. Os liberais lutavam pela instauração de instituições republicanas, defendiam o comércio internacional e a liberdade de mercado, enquanto os conservadores, sobretudo os grandes tierratenientes, defendiam privilégios e instituições herdados dos tempos coloniais. Tanto no Equador quanto na Bolívia, o projeto liberal continuava empenhado na integração do indígena como cidadão mestiço.
Setores médios e urbanos irrompem na vida pública desde o início do século, com os processos de industrialização e modernização. Eles exigem um lugar na direção do Estado e são simpáticos à miscigenação, vista como uma alternativa para construir nações homogêneas, nos moldes dos Estados europeus, acabando com a desigualdade social baseada no regime colonial das “castas”, que persistia desde a independência. Na Bolívia, o Movimento Nacionalista Revolucionário de 1952 tratou de assimilar os índios como camponeses mestiços. No Equador, o período de estabilidade política e auge bananeiro, a partir de 1948, permitiu a formulação de uma agenda de integração e desenvolvimento nacional apoiada na ideia de nação mestiça, que ganharia força com o governo militar desenvolvimentista e o “boom” do petróleo nos anos 70.Movimentos indígenas organizados surgem na segunda metade do século, colocando em pauta uma forma alternativa de integração nacional: o Estado Plurinacional. Por meio deste projeto, os nativos assumem o papel de sujeitos na construção da nação. Sua integração não significa assimilação, mas o reconhecimento de suas diferenças. Processos de reforma agrária – implementados na Bolívia em 1953 e no Equador em 1964 e 1973 – resultaram na liberação dos indígenas do sistema de hacienda e da servidão aos terratenientes. Sem estas amarras, as comunidades receberam o apoio de organizações de esquerda e das igrejas para se organizarem, chegarem ao governo local por meio de eleições e criarem organizações nacionais.Após a migração para os centros urbanos, muitos indígenas viram-se excluídos devido à “falta de preparação suficiente para o trabalho”, ou pelo simples fato de serem diferentes das pessoas das cidades. A discriminação deu-lhes razões para defender ainda mais sua identidade étnica. Organizações indígenas ajudaram na luta pela educação intercultural bilíngue, e o acesso à educação formal favoreceu o surgimento de uma elite intelectual indígena. O contexto era adequado para a mobilização, com os processos de democratização e de reforma do Estado no início dos anos 80. Nativos formulavam discursos de identidade já não mediados por organizações de esquerda ou pela Igreja. Questionavam as imagens racializadas que tinham sido criadas para representá-los como selvagens ou incivilizados, e se identificavam com categorias como povos, nações originárias ou nacionalidades indígenas.
Essas novas categorias enfatizavam os "requisitos" que caracterizam uma nação: história, língua, território e cultura compartilhada. Os indígenas afirmam, portanto, que são nações – e que já o eram antes da conquista espanhola. Por outro lado, eles não são nacionalistas, no sentido moderno do conceito, pois não pretendem formar seu próprio Estado. Defendem a autonomia territorial, a autodeterminação e o autogoverno no interior do Estado boliviano ou equatoriano.O conceito de Estado Plurinacional, reivindicado pela maioria dos movimentos, aparece pela primeira vez na “Tese Política” da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia, em 1983. Não envolve a fragmentação do Estado, mas o reconhecimento da existência de distintas nações indígenas e do autogoverno em seus territórios. A demanda foi acolhida também pelo movimento indígena equatoriano.Mas nem todos os indígenas compartilham dessa ideia. No altiplano boliviano, a nação Aymara desenvolveu um discurso mais radical de autodeterminação à margem do Estado boliviano. “Nós não seguimos a bandeira tricolor da Bolívia que nossos opressores carregam. (...) Temos nossos próprios heróis e mártires. (...) Vamos ter de derramar sangue, mas estamos confiantes de que teremos a nossa própria forma de organização, a nossa nação indígena”, afirmou o líder aymara Felipe Quispe durante uma jornada de protestos em 2001. Em regiões do altiplano, a língua, os costumes e a memória de pertencer a um mesmo território se mantêm mais visíveis do que em outras regiões. Os aymaras também afirmam suas diferenças porque vivenciaram trocas intensas com a sociedade nacional, e as percebiam como desiguais. Em contraste, os povos da Amazônia não têm reivindicações radicais, em parte porque tiveram muito menos contato com os não índios. E, ao contrário de outros grupos, os aymara não são minoria e nem se percebem como tal: eles se veem como a maioria nacional.O radicalismo aymara também pode ser explicado pela forte influência dos discursos da esquerda. Os líderes desse povo acreditam na revolução e se engajaram na luta armada, com a formação do Exército Guerrilheiro Túpak Katari no final dos anos 1980. Pretendiam construir um socialismo baseado no ayllu. Trata-se de uma interpretação histórica segundo a qual, antes da colonização, havia uma organização social coletivista, que mantinha a harmonia entre os seres humanos e deles com a natureza. As organizações da Amazônia seguiram caminho diferente em ambos os países: influenciadas pela Igreja Católica, por algumas igrejas evangélicas e por ONGs, são menos beligerantes em sua relação com o Estado.O caráter separatista dos aymara depende do complexo equilíbrio entre a lealdade à sua própria “nação” e a lealdade ao Estado boliviano. Agora que a Bolívia se reconhece como Estado Plurinacional, como responderá o radicalismo aymara?Edwin Cruz é professor da Universidad Nacional de Colômbia.
Um país, várias nações
Edwin Cruz