Um político entre dois mundos

Luiz Alberto Grijó

  • “Para os de origem germânica [...] o trânsfuga, o apóstata do germanismo. Para os luso-brasileiros, que não acompanhavam com bons olhos sua ascensão, ele era o alemão que queria vender-se como brasileiro”. Assim o escritor gaúcho Vianna Moog (1906-1988), descendente de alemães, descreveu certa vez seu conterrâneo Lindolfo Collor, político de trajetória incomum. Numa época em que a maioria das lideranças político-partidárias do país era originária de grupos familiares vinculados à posse de terra, ele compensou a carência de recursos econômicos e de tradição familiar trabalhando pela aquisição de bens culturais e de relações sociais. Nasceram daí oportunidades para conquistar um espaço próprio no cenário político brasileiro, o que permitiu que se firmasse como um dos principais líderes do seu partido, o PRR, e chegasse a ministro do Trabalho após a instalação do Governo Provisório (1930-1934), sob a chefia de Getulio Vargas.

    Considerando a observação de Moog, o fato é que Lindolfo Collor – avô do ex-presidente Fernando Collor de Mello – construiu sua carreira e destacou-se na política brasileira sabendo crescer em dois mundos: de um lado, o germano-brasileiro, no qual passou a ser visto como um “alemão bem-sucedido e relacionado”, e, de outro, o luso-brasileiro, no qual conquistou um razoável reconhecimento como intelectual e político, como um “bom companheiro de lutas”. Ao tornar-se um mediador entre estas duas instâncias, conquistou espaço próprio no jogo político-partidário da época.

    Lindolfo Leopoldo Boekel nasceu em 1890 em São Leopoldo, região de colonização alemã do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Seus pais eram descendentes de imigrantes alemães radicados neste estado no século XIX e não possuíam muitos recursos econômicos. Mas isto não impediu que ele estudasse e se formasse como farmacêutico. Em 1911, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde atuou como jornalista e tornou-se escritor. Em 1919, retornou ao seu estado natal, e em meio a uma elite política formada por filhos de grandes proprietários rurais de origem luso-brasileira, tornou-se um político muito conhecido. Atuou nas disputas político-partidárias regionais, foi eleito para a Assembléia Estadual e, depois, para a Câmara Federal. Em 1929, apoiou a candidatura do também gaúcho Getulio Vargas à presidência da República e, no ano seguinte, foi um dos principais conspiradores contra o governo federal no processo que culminou com a Revolução de 30. Após a instalação do Governo Provisório sob a chefia de Vargas, Collor foi indicado para assumir a recém-criada pasta ministerial do Trabalho, Indústria e Comércio. Até hoje ele é reconhecido por ter sido o principal responsável pela elaboração das primeiras leis trabalhistas do Brasil.

    O pai, João Boekel, era sapateiro e músico, mas morreu quando os filhos eram ainda pequenos. A viúva, Leopoldina Schreiner Boekel, passou a trabalhar em um hotel até mudar-se para Barra do Ribeiro, cidade de ocupação colonial luso-brasileira, onde se casou com João Antônio Collor, de nacionalidade alemã. Do padrasto, Lindolfo tomou emprestado o sobrenome, que acrescentou ao de seu pai biológico, passando a chamar-se Lindolfo Leopoldo Boekel Collor. Sua intenção ao fazer isso, especulam, seria a de ter um sobrenome mais palatável do que Boekel no mundo luso-brasileiro, embora Collor já fosse um provável aportuguesamento do nome alemão Köller ou Koeller.

  • Os estudos iniciais de Lindolfo foram feitos em escolas públicas de Barra do Ribeiro. Mais tarde,foi morar na cidade de Rio Grande, onde se vinculou à Igreja Episcopal Brasileira. Enquanto continuava os estudos no seminário dessa instituição, fazia também “trabalhos apostólicos”, ministrando cursos de estudos bíblicos e fazendo “visitas pastorais” a detentos e enfermos. Ao mudar-se para Porto Alegre, ingressou na Faculdade de Farmácia, em 1907.  É quase certo que Collor atuou pouco ou nada como farmacêutico, pois alguns meses depois de formado mudou-se para Bagé, a fim de trabalhar como redator em um jornal local, de propriedade de um bacharel em Direito chamado Adolfo Dupont. Em 1911, transferiu-se para o Rio de Janeiro com uma carta de recomendação, provavelmente de Dupont, ao dono do jornal O Paíz, no qual passou a escrever semanalmente. Conseguiu também um emprego como prestador de serviços no Jardim Botânico.

    No Rio, Collor teve oportunidade de conhecer escritores e jornalistas locais, como Olavo Billac e Coelho Neto, assim como alguns gaúchos lá estabelecidos, como o escritor Alcides Maia e o senador do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) José Gomes Pinheiro Machado. Nesse período, passou a ocupar um lugar de razoável destaque na sociedade carioca e conquistou um certo reconhecimento como jornalista e escritor.

    Em 1914, casou-se com a filha do deputado federal paranaense Bartolomeu de Souza e Silva, dono do jornal A Tribuna, do qual se tornou diretor. Em 1917, bacharelou-se novamente em um curso superior, na Escola de Altos Estudos Sociais, Jurídicos e Econômicos.

    Até então, além da construção de relações sociais importantes no Rio de Janeiro, Collor investia em uma espécie de carreira intelectual como jornalista e escritor. Chegou a candidatar-se duas vezes a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), mas não foi eleito. Tinha também pretensões de ingressar na política partidária, pois tentou eleger-se para uma vaga de conselheiro no Conselho Municipal do Rio de Janeiro – cargo que hoje seria equivalente ao de vereador. Mas tampouco teve sucesso. 

  • Em 1919, porém, Collor é convidado pelo presidente do estado do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, para trabalhar no jornal A Federação, do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Ao aceitar o convite, retornou ao seu estado natal. Este seria um momento importante em sua trajetória, pois em menos de um ano passou de redator a diretor do jornal. Em 1921, foi eleito pelo PRR para a Assembléia Estadual e, em 1923, para a Câmara Federal. 

    A década de 1920 chegou marcada pelas revoltas “tenentistas”, empreendidas por oficiais de baixa patente do Exército descontentes com as instituições e as diretrizes políticas do país, e pelo governo centralizador de Arthur Bernardes (1922-1926). Em 1921, Borges de Medeiros cumpria seu quarto mandato à frente do governo estadual e se colocou contra a candidatura de Bernardes à presidência da República. No ano seguinte, Borges se candidatou a um novo mandato. As oposições no estado resolveram lançar também um candidato, supondo que o presidente do estado estivesse enfraquecido devido à derrota no plano nacional. Porém, apesar das acusações e denúncias de fraudes, foi declarado reeleito. Inconformados, os oposicionistas se levantaram em armas na chamada Revolução de 23, buscando uma intervenção federal no Rio Grande do Sul. Isto não ocorreu, e a revolta acabou sendo vencida no mesmo ano pelos partidários de Borges. Este, no entanto, teve de fazer algumas concessões, como, por exemplo, concordar com o fim da possibilidade da reeleição de presidente do estado.

    Nesse contexto, o engajamento político-partidário de Collor fez com que ele se tornasse um dos principais líderes políticos em seu estado. Sempre apoiando as posições de Borges no jogo político-partidário, aproximou-se da cúpula do PRR e dos novos líderes que vinham se destacando na mesma época: Getulio Vargas, de São Borja, José Antônio Flores da Cunha e Oswaldo Aranha, de municípios da fronteira oeste da Campanha, e João Neves da Fontoura, de Cachoeira do Sul, entre outros. Além disso, passou também a buscar, na região em que nasceu e nos demais municípios de colonização alemã, as bases de apoio para sua carreira política.

    Entre 1921 e 1923, Collor foi representante na Assembléia Estadual. Entre 1924 e 1930, foi deputado federal. No início da década de 1920, portanto, conquistou um importante espaço entre os seus conterrâneos e colegas de partido político. O resultado foi que pôde voltar ao Rio de Janeiro “por cima”, como deputado federal. Na Câmara, foi membro das comissões de Finanças e de Relações Exteriores, pela qual fez várias viagens a outros países como representante do Parlamento brasileiro – esteve no Uruguai em 1925, em Buenos Aires e Santiago do Chile em 1926 e em Havana em 1928. Na capital federal, foi também redator-chefe do jornal O Paíz.

  • Tudo isso foi aumentando o seu prestígio e fazendo com que fosse aceito pelos demais líderes do PRR como um dos articuladores da Aliança Liberal – movimento político de apoio à candidatura de Getulio Vargas à presidência da República em 1929. Porém, com a derrota dessa candidatura – pois Getulio não contava com o apoio dos ocupantes do Palácio do Catete –, Collor e outros líderes rio-grandenses, como Oswaldo Aranha e João Neves da Fontoura, passaram a conspirar para a derrubada do presidente Washington Luís (1926-1930). Aliados a outros líderes políticos e a vários militares do Exército descontentes com a situação, alcançaram seu intento em outubro de 1930.

    O cargo no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio veio logo no início do Governo Provisório de Vargas, em 1931. Alguns chegam a afirmar que a criação da pasta deu-se por insistência de Collor. No discurso de posse, depois de afirmar que o governo daria a maior atenção à “questão social”, o novo ministro salientou que “o operariado brasileiro merece e requer a nossa assistência e proteção em vários e vários capítulos”: salários “dignos e remuneradores”, proteção “a todo trabalho humano”, regularização do “trabalho de mulheres, de adultos e menores”, “seguros sociais”, aposentadorias, moradias “dignas e baratas”, e escolas. A esses benefícios e garantias “todo homem deve ter direito, como tem direito ao sol”, sustentava.

    Em 1932, quando Vargas governava por decretos e o Congresso Nacional já estava fechado havia dois anos, Collor se afastou do ministério e do governo para apoiar o movimento constitucionalista, assim chamado porque pregava a reconstitucionalização do país. Desde então, não conseguiu mais ocupar posições de destaque na política nacional, mantendo apenas alguma influência no Rio Grande do Sul. 

    Em 11 de maio de 1938, um ano após a decretação do Estado Novo, quando o Congresso foi novamente fechado, membros da Ação Integralista Brasileira (AIB) -- agremiação de inspiração fascista também proscrita -- participaram de uma tentativa frustrada de golpe de estado contra Vargas. Collor foi acusado, justa ou injustamente, de ter participado desta conspiração, e foi exilado. Depois de ter morado na França e em Portugal, retornou ao Brasil em 1941 graças a amigos que se responsabilizaram por ele frente aos órgãos de segurança do Estado Novo. Ainda foi preso algumas vezes por declarações contra o regime. Morreu no Rio de Janeiro em 1942.


    Luiz Alberto Grijó é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor de “Apóstata do germanismo ou alemão arrivista: a trajetória de Lindolfo Collor até a revolução de 1930” na revista Anos 90. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, n. 15, 2001/2002.