Eles formam um mutirão de pesquisa, coletando manuscritos importantes para a História do Brasil em arquivos de França, Itália, Bélgica, Holanda, Espanha, Reino Unido, Áustria, Estados Unidos e, principalmente, Portugal. Já são cerca de 300 instituições percorridas por mais de 100 pesquisadores desde o início do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, do Ministério da Cultura (MinC), em 1983. A maior parte do trabalho já está feita, mas ainda deve surgir muita novidade. Este ano termina o prazo para se chegar a cinco milhões de páginas de manuscritos recuperadas e copiadas em cerca de 500.000 microfilmes.
Em breve serão lançados os guias de fontes do material pesquisado na Itália, na Áustria e no Arquivo Secreto do Vaticano, e dois catálogos de cartografia de Espanha e Portugal. “Não conseguimos microfilmar os documentos de todos os países por questões burocráticas, mas os do Vaticano foram feitos. Quando sair o guia, as pessoas interessadas terão acesso a eles”, anima-se Katia Jane de Souza Machado, coordenadora técnica do projeto.
Mesmo Portugal, ponto de partida de todos os trabalhos, ainda renderá novidades este ano. A pesquisa no país se concentrou no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) do Instituto de Investigação Científica Tropical, onde se encontra o maior acervo sobre as capitanias hereditárias criadas no Brasil no início da colonização. O material está sendo publicado em cerca de 60 catálogos divididos por capitanias, e a cópia digital dos documentos pode ser vista em CDs distribuídos em universidades e institutos históricos, e também no site do Centro de Memória Digital da Universidade de Brasília (www.cmd.unb.br).“O material sobre o Brasil corresponde a cerca de 80% dos manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino. Agora estamos analisando documentos dos séculos XVIII e XIX, e alguns que ficaram para trás em trabalhos anteriores. Acho que temos pela frente mais de 40.000 páginas”, conta Érika Dias, atual supervisora do projeto em Lisboa.
O trabalho desenvolvido na terrinha tem ajudado não só pesquisadores brasileiros, mas muitos portugueses e outros frequentadores do AHU. Segundo a diretora Ana Canas, foi uma oportunidade de aprendizado mútuo. “Mais do que o AHU, quem se beneficia da catalogação e da reprodução desses documentos são os muitos utilizadores que querem ter acesso a informações sobre o Brasil. Além disso, nós nos apropriamos, de certa maneira, da energia e da experiência do Projeto Resgate, com o Projeto África Atlântica, que se inicia este mês. Ele fará trabalho semelhante nos acervos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe”, conta Ana.
Hoje, além de Érika, há outros três pesquisadores do Projeto Resgate no AHU. O número nem se compara às cerca de 50 pessoas que já estiveram ali ao mesmo tempo. “Quando cheguei, em 1998, tinha mais gente do projeto do que funcionários do arquivo”, lembra Érika, que foi para Portugal enquanto fazia mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A viagem rendeu mais frutos do que ela esperava: de tanto frequentar o AHU, conheceu o gerente do restaurante do outro lado da rua e se casou com ele.
Nem todos tiveram tanta sorte, mas foram muitos os participantes do projeto. Alguns eram professores que estavam pela Europa, outros se ofereceram para ir durante as férias, e há também os que conseguiram bolsa em universidades ou no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Aos poucos, foi se formando um verdadeiro batalhão de voluntários, que inclui até um revendedor de automóveis de São Luís. Foi ele quem deu o pontapé inicial no catálogo do Maranhão, doando alguns milhares de dólares sem pedir nada em troca.
Um dos beneficiados aqui no Brasil por esse esforço conjunto foi o historiador Bruno Miranda. Ele usou o material do Projeto Resgate em sua dissertação de mestrado na UFPE e acabou retribuindo durante o doutorado, finalizado em 2011 na Universidade de Leiden, nos Países Baixos. “Esse material é muito importante, pois muita coisa só tem ali. Embora parte da documentação neerlandesa tenha cópias em Pernambuco desde o final do século XIX, elas não são nem um terço do que existe no arquivo em Haia. Com os guias de fontes, dá para ter uma ideia de onde estão os documentos que te interessam. Enquanto estava lá, fui voluntário no quarto volume da publicação”, conta Miranda.
Outros estados, além da Pernambuco, têm cópias de documentos estrangeiros desde o século XIX. Isso porque, a partir de 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro decidiu enviar copistas, como Antônio Gonçalves Dias, Capistrano de Abreu e Afonso d’Escagnolle Taunay para o Velho Mundo. Muitas expedições foram realizadas por iniciativa dos próprios copistas. Dizem, por exemplo, que nos anos 1950, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto (1920-1999), adido cultural em Sevilha, comprometeu-se a pesquisar na cidade para poder ficar lá por mais tempo. O mesmo teria acontecido com o pintor Cícero Dias (1907-2003), que recebeu recursos do Itamaraty para fazer a pesquisa na Biblioteca Nacional de Paris.
“No século XX, vários diplomatas fizeram esse tipo de trabalho. O barão do Rio Branco, ex-ministro das Relações Exteriores que empresta o nome ao Projeto Resgate, já dizia que a gente precisava ter acesso aos documentos. A ideia da formação de nacionalidade, forte na época, estava associada ao conhecimento da história desse país que estava nascendo”, conta Esther Bertoletti, consultora e ex-coordenadora, que esteve envolvida com o projeto desde sua criação, em 1983.
A maioria das iniciativas ocorreu a partir dos anos 1970, quando a Unesco começou, por causa da descolonização dos países africanos, a incentivar a criação de guias de fontes na Europa, para que os novos países tivessem acesso à sua história. Foi também nessa época que surgiram os cursos de pós-graduação em História no Brasil, quando muitos professores estiveram em arquivos estrangeiros fazendo pesquisas. Alguns chegaram a copiar documentos e a realizar inventários preliminares, como foi o caso de Caio Boschi, historiador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Em 1986 ele publicou a primeira edição de O Brasil Colônia nos Arquivos Históricos de Portugal, um roteiro com todos os arquivos portugueses de interesse para o Brasil. Depois, com os 200 anos da Inconfidência Mineira, em 1989, organizou os documentos relativos à capitania de Minas Gerais, com apoio do CNPq.
“O trabalho sobre Minas terminou em 1991 e serviu como passaporte para conseguir fazer o resto das capitanias, já com o Projeto Resgate. Lá em Portugal tem umas 2.000 caixas sobre o Brasil, mas nada estava em ordem cronológica e muitos anexos foram separados do dossiê a que pertenciam. Isso tudo está sendo organizado até hoje. É um trabalho enorme”, lembra Boschi.
A partir daí, houve uma grande virada. De 1995 em diante, já com Esther como coordenadora técnica, o projeto passou a enviar pesquisadores e a microfilmar manuscritos sistematicamente. Até 2011, quando passou a função para Kátia, Esther viveu na ponte aérea entre os países participantes e na luta para conseguir organizar o material com menos investimentos que o necessário. “O Brasil foi o único país ibero-americano, até onde sabemos, que foi de forma unificada até a fonte dos documentos sobre sua história. Só em Portugal tivemos mais de 100 pesquisadores voluntários. Sem eles, não teríamos como fazer isso”, afirma.
Mas engana-se quem acha que o trabalho está perto do fim. Apesar de todo o esforço das últimas décadas, ainda há muitos documentos espalhados pelo mundo. Segundo Boschi, só Portugal tem cerca de 30 arquivos públicos e privados que interessam ao Brasil: “Vários deles ainda precisam ser organizados como o AHU. Seria interessante para muitos pesquisadores porque, dependendo do assunto, a maioria do material relacionado pode estar em um desses arquivos menores. Trabalho não vai faltar”.
Saiba Mais - Bibliografia
Centro de Memória Digital da Universidade de Brasília (www.cmd.unb.br)
Um resgate e tanto
Cristina Romanelli