Zelar pela pureza da fé entre a população europeia para evitar que algumas de suas crenças e práticas “errôneas” contaminassem os índios. Esta era a principal missão do tribunal da Inquisição instalado na Nova Espanha – hoje, México e Lima – em 1571. Os nativos, chamados de “tenras plantas na fé”, eram considerados suscetíveis ao engano, induzidos pelos maus e falsos cristãos. Mas histórias de fogueiras nas quais foram queimados muitos dos perseguidos pelo Santo Ofício na região não passam de lendas.
Na Nova Espanha, a Inquisição não perseguiu maometanos nem judeus, que eram perseguidos na Espanha desde 1480. Buscava-se impedir o abandono da fé e, sobretudo, a mistura de crenças e práticas islâmicas e judaicas com as cristãs. A Inquisição não castigou acusados de delitos , como roubo e assassinato, mas puniu nos casos que envolviam crenças e práticas contrárias aos dogmas da Igreja Católica Romana.
O Império espanhol instaurou tribunais em todas as suas possessões. O Conselho Geral da Santa Inquisição, com sede em Madri, era o órgão central do qual dependiam todos os tribunais. Além do que abrangia México e Lima, outro tribunal foi estabelecido em Cartagena das Índias – atual Colômbia – em 1610, que pouco durou. Antes da criação do tribunal novo-hispano, houve no vice-reinado da Nova Espanha – que abrangia o México, parte dos atuais Estados Unidos, parte da América Central e as Filipinas – duas inquisições: a monástica, exercida pelos primeiros missionários franciscanos, dominicanos e agostinianos, entre 1522 e 1533; e a episcopal, executada pelos bispos, de 1535 a 1571.
Essas inquisições primitivas perseguiram os índios que continuavam praticando os rituais indígenas, apesar de terem se convertido formalmente ao cristianismo. A perseguição se estendeu aos espanhóis, mestiços e negros que cometiam pecados de fé. Ao considerar que os índios eram recém-convertidos e que não era possível, neste caso, agir com a mesma severidade aplicada aos espanhóis, o Santo Ofício não teve jurisdição sobre eles, que ficaram submetidos aos bispos, menos severos.
O tribunal novo-hispano era composto de três inquisidores. Ali chegavam os avisos de delitos contra a fé cometidos no distrito da Nova Espanha. Os mensageiros eram sacerdotes ou frades, que apenas transmitiam as denúncias que recebiam, cabendo ao tribunal tomar todas as decisões, inclusive julgamentos e punições, que aconteciam na capital, México. O distrito inquisitorial novo-hispano estendia-se do atual estado do Novo México, nos Estados Unidos, até Nicarágua e Filipinas. Era, portanto, uma área enorme, com dificuldades imensas de comunicação e que contava com um aparato inquisitorial muito reduzido. Trazer um réu de Santa Fé, do Novo México, de Granada, da Nicarágua ou de Manila, nas Filipinas, requeria tempo e dinheiro, que os bens sequestrados dos réus raramente conseguiam cobrir. Isto explica a relativa ineficiência do tribunal novo-hispano, desprovido de meios logísticos para exercer um controle efetivo. Além disso, a maioria da população recém-convertida, incapaz de observar a ortodoxia, também era incapaz de colaborar com denúncias que interessassem ao tribunal.
O Santo Ofício estava em busca, principalmente, de heresias de um punhado de protestantes e de menos de duzentos judeus, além de algumas heterodoxias e manifestações de uns poucos partidários dos filósofos franceses do século XVIII. Porém, a grande maioria das faltas estava relacionada a blasfêmias, profanações, palavras escandalosas, pactos demoníacos, bigamia e feitiçaria.
Os protestantes também estavam na mira do Santo Ofício: foi o que se passou com alguns piratas ingleses ou franceses que, depois do naufrágio de suas embarcações nas costas novo-hispanas, foram presos, levados ao México, julgados e castigados. A maioria desses piratas aceitou retornar ao catolicismo, outros voltaram à Inglaterra após cumprir seus castigos e alguns permaneceram na Nova Espanha. Os cristãos-novos, de modo geral, eram provenientes de Portugal. Na verdade, após a expulsão dos judeus espanhóis em 1492, muitos se refugiaram em Portugal, onde gozaram de relativa tranquilidade. Mas esse momento de paz durou pouco. Quando as coroas de Castela e Portugal se uniram formando a União Ibérica (1580 a 1640), algumas famílias foram para o Brasil e para vice-reinos espanhóis.
No final do século XVI e em meados do XVII, foi intensificada a perseguição aos cristãos-novos no Peru e na Nova Espanha. Estes, aparentemente católicos, continuavam, na realidade, fiéis às crenças e práticas judaicas. Por isso eram renegados. Esses cristãos-novos foram objeto de importantes processos. Quando julgados pela primeira vez por judaísmo e demonstravam arrependimento, eram punidos com exílio na Nova Espanha, penas pecuniárias, espirituais, e levados a autos de fé, onde deveriam abjurar o judaísmo. Quando julgados pela segunda vez ou mesmo pela primeira, mas sem confessar a prática do judaísmo, eram condenados à fogueira. Eles foram as principais vítimas submetidas à tortura e à morte na fogueira.
Os blasfemos e aqueles que proferiram palavras escandalosas eram quase sempre espanhóis. As profanações e os pactos diabólicos foram cometidos sobretudo por escravos negros ao serem castigados pelos seus senhores. As punições inquisitoriais eram açoites, serviço temporário em hospital ou convento e alguma penitência espiritual. A bigamia também era condenada, e frequente: os espanhóis, tendo deixado suas esposas na Espanha, casavam-se novamente na Nova Espanha. Mas a bruxaria como praticada na Europa, com pactos diabólicos, praticamente inexistiu na Nova Espanha. Já a feitiçaria, que mistura práticas e crenças europeias, indígenas e africanas, foi muito comum. Geralmente era praticada por mulheres mestiças, pobres ou viúvas que encontravam no seu exercício o meio de sobrevivência, mediante retribuições. A prática também dava certo status em suas comunidades, onde eram mais temidas do que solicitadas.
No século XVIII, surgiu outra ação condenável pela Inquisição: emitir opiniões inspiradas nas ideias iluministas. Alguns intelectuais professavam as críticas de Jean- Jacques Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778), John Locke (1632-1704), que podiam trazer ataques à Igreja, e foram denunciados ao tribunal. Como nos séculos anteriores, não existia diferença entre poder temporal e religioso; a crítica às autoridades e às instituições civis ou religiosas era considerada um delito contra a ordem estabelecida por Deus.
A tortura era um recurso utilizado por inquisidores para obter confissões, mas apenas uma parcela ínfima dos réus “negativos” – ou seja, que se negavam a confessar – era submetida a ela. O sadismo não teve lugar na tortura inquisitorial, mas a frieza burocrática, sim.
O resultado foi um impacto pequeno da Inquisição na população da Nova Espanha, pois só foi sentido na capital e nas regiões centrais do altiplano. O Santo Ofício restringiu sua atuação à população espanhola e, com o passar dos séculos, à crescente população dos mestiços. Em contrapartida, sua influência foi nociva para a minoria de intelectuais que aprendeu a ocultar suas dúvidas, a não questionar e a se conformar com as aparências.
Com a invasão da Espanha por tropas napoleônicas no início do século XIX, o Santo Ofício espanhol foi suprimido. Mas a imensa maioria da população novo-hispana sequer percebeu, pois jamais tomara conhecimento de sua presença. Somente o grupo de espanhóis peninsulares e crioulos, a elite colonial, entendeu o significado do desaparecimento, não faltando quem tenha lamentado e proposto o restabelecimento da Inquisição, agora mexicana.
O Santo Ofício novo-hispano não cometeu atrocidades. Os índios, em particular, deixaram de ser submetidos à Inquisição episcopal a partir dos anos 1540 e foram expressamente excluídos da jurisdição do Santo Ofício em 1571. As fogueiras nas quais supostamente foram queimados muitos deles nunca existiram. Cabe imputar ao Santo Ofício novo-hispano o clima conformista, estéril e até hipócrita imposto à sociedade do vice-reino.
Solange Alberro é professora do Colégio de México e autora de Inquisición y Sociedad en México, 1571-1700 (Fondo de Cultura Económica, 1988).
Saiba Mais - Bibliografia
MEDINA, José Toribio. Historia del Tribunal del Santo Oficio de la Inquisición en México. México: Ediciones Fuente Cultural, 1952.
GREENLEAF, Richard. Inquisición y Sociedad en el México colonial. Madri: José Porrúa Turranzas, 1985.
Um tribunal estratégico
Solange Alberro