Uma beleza, a beleza

Maria Luisa Tavora

  • Fayga Ostrower foi uma figura especial no universo artístico brasileiro. Desenhou, pintou com aquarela, ilustrou periódicos, livros e poemas de escritores como Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, criou capas de discos e de livros, fez estampas de tecidos, desenhou joias e projetos de murais para edifícios. Além de artista plástica, foi uma pensadora e uma teórica sobre a arte, escrevendo livros e artigos e circulando pelo Brasil e pelo mundo para proferir palestras e orientar cursos em instituições universitárias, museus e centros culturais. Mas foi na gravura que encontrou o seu meio preferencial de expressão, ao qual dedicou toda a vida. 
     
    Polonesa de família judaica, emigrada adolescente para o Brasil em 1934, Fayga explorou com sensibilidade os efeitos das cores, sempre buscando resultados suaves. Um dos exemplos de sua maturidade inventiva é o Painel do Itamaraty, feito para o Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. 
     
    Em 1967, quando terminaram as obras do Palácio do Itamaraty, destinado a abrigar o ministério que ainda funcionava no Rio de Janeiro, o embaixador Wladimir Murtinho procurou a artista. A ideia era complementar o acervo de obras brasileiras do palácio do Rio com outras aquisições para o prédio construído em Brasília. Murtinho estava interessado em comprar seis gravuras de Fayga para compor as paredes de uma sala dedicada a ela – àquela altura uma artista reconhecida internacionalmente, contemplada em 1957 com o grande prêmio em gravura na Bienal de São Paulo e em 1958 na Bienal de Veneza. 
     
    Diante da rara oportunidade de ter uma exposição exclusiva e permanente em lugar de circulação de intelectuais e personalidades interessados na cultura artística do Brasil, Fayga fez uma contraproposta: em vez de juntar seis gravuras diferentes, ela faria uma obra especialmente para a sala. Pensou em criar várias gravuras que se relacionassem visualmente por suas cores e formas, e que funcionassem como uma espécie de painel. Precisou de nove meses e meio, em regime de dedicação exclusiva, para concluí-lo. O resultado foi uma série de trinta painéis.
     
    Ao voltar para buscar as obras, Wladimir Murtinho surpreendeu-se ao ver uma pilha de gravuras colocadas à parte, em um canto do ateliê da artista. Eram soluções abandonadas pela autora e que, por isso mesmo, podiam revelar como se dera aquele processo criativo. O embaixador propôs-lhe, então, realizar uma exposição didática, na qual ela pudesse apresentar o conjunto abandonado juntamente com o painel pronto. De junho a julho de 1968, a proposta concretizou-se em uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde o público pôde compreender de maneira mais concreta os interesses que conduziram Fayga na composição definitiva do Painel do Itamaraty.
     
    Por causa dessa exposição, considerada pela crítica especializada a melhor daquele ano, a artista recebeu o prêmio Golfinho de Ouro, conferido pelo Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, e uma quantia em dinheiro. Em 1970, o painel feito para o Ministério das Relações Exteriores proporcionou à artista mais uma distinção, desta vez junto à Organização das Nações Unidas. Na comemoração dos 25 anos da instituição, cada país que integrava a entidade ofereceu-lhe uma obra de presente. O governo brasileiro escolheu o Painel do Itamaraty e encomendou a Fayga outra cópia da obra. 
     
    O painel constitui uma síntese das preocupações de Fayga Ostrower. Ela estrutura o espaço a gravar com diáfanas camadas de cor e pesquisa ritmos em planos de transparência que se interpenetram e provocam um contínuo buscar de imagens – que se organizam, se desfazem, se movem, gerando outras formações. Há um dinamismo na evocação das imagens, resultando em um verdadeiro exercício para o olhar.
     
    Na abstração sensível valoriza-se a criação de formas imaginadas livremente pelo artista, que se serve de sua intuição para compor e estruturar o trabalho. Este jogo de formas livres foi levado a cabo por Fayga e outros artistas nos anos 60. Desde a década anterior, a gravura atraía interesse no Rio de Janeiro, onde foram criados vários ateliês para o ensino de suas técnicas. A Escola Nacional de Belas Artes, o Instituto Municipal de Artes, o Museu de Arte Moderna e a Escolinha de Arte do Brasil foram responsáveis por esse trabalho de divulgação e expansão da gravura, compreendida não só como uma técnica multiplicadora de imagens, mas também como um instrumento para a criação artística. 
     
    Fayga desempenhou  papel central nesse contexto, produzindo suas obras e escrevendo sobre os princípios da arte abstrata. Em seu livro Acasos e Criação Artística (1990), dedica-se a analisar e a dimensionar a questão do acaso, elemento fundamental para a abstração expressiva, cujas obras estruturam-se também a partir de certos achados propiciadores de sua criação. A uma prática intensa Fayga integrava uma profunda reflexão sobre a arte.
     
    Naqueles anos muitos artistas do Rio e de São Paulo exploraram a abstração, tanto a partir de soluções ligadas à geometria e à racionalização da composição quanto à abstração sensível, baseada na liberdade individual e na imaginação como princípios organizadores das formas. Ao optar pela segunda via, Fayga construiu em suas gravuras uma visão lírica do mundo. 
     
    Até 1953, sua obra preocupara-se em desvelar o drama humano diário com uma temática voltada para a pobreza, maternidades sofridas e acolhedoras, crianças de morro, ambientes de subúrbio – conteúdo de caráter social, comum aos pintores e gravadores dos anos 40. O Painel do Itamaraty corresponde a um momento privilegiado da arte de Fayga na tendência da abstração. Através das finas camadas de cor, dos ritmos criados pelas formas, do tratamento do espaço gravado e da técnica da xilogravura, a artista vai além das aparências do mundo visível. Como singularidade de sua gravura, a composição nasce colorida e uma leveza se afirma através da exploração de tramas delicadas e complexas das texturas que a impressão sobre a madeira possibilita.  
     
    Com Fayga Ostrower, a xilogravura ganhava outra dimensão artística. Trabalhando com a matriz de madeira, ela criou uma verdadeira sinfonia das cores, o que era inusitado se considerarmos a tradição desta técnica entre nós, tendo como seu grande representante Goeldi (1895-1961), mestre dos contrastes do preto e branco. A gravura de Fayga, artista autodidata, resultou inicialmente da admiração pela gravadora alemã Käthe Kolwitz (1867-1945) e seu entendimento do papel da arte inserido no plano existencial de transformações sociais; outra influência foi a do pintor francês Paul Cézanne (1839-1906). Fayga segue o legado deste artista, realizando composições ordenadas e estruturadas pela cor, na compreensão de que a arte é uma linguagem específica, um campo próprio de investigação do homem.  
     
    Foi inédita a utilização da escala monumental para um trabalho em xilogravura. Incluindo as margens de cada uma das pranchas, o painel tem 1,04m de altura por 2,80m de largura. A obra de Fayga invade o ambiente do observador. A dominante vertical das sete pranchas, com o espaço gravado em transições suaves das cores em transparências, favorece a ideia de transcendência, de espiritualidade. O painel foi estruturado a partir do entrelaçamento de diagonais, numa audácia cromática de vermelhos e alaranjados. Mesmo utilizando cores quentes, a artista alcança uma leveza desconcertante. 
     
    As formas criam um movimento no espaço gravado que provoca o espectador, sendo preciso atravessar com o olhar as múltiplas camadas de cor superpostas, o que gera o sentido de algo sempre em mutação, no ritmo do próprio observador. À sua maneira, Fayga cria um fluxo constante de imagens ao qual o espectador vai aderindo, sendo levado a um mundo de poesia, a uma atmosfera imaterial. A um lugar onde talvez estivesse aquilo que ela sempre perseguia: “uma beleza não sei qual, uma beleza, a beleza”. 
     
    Maria Luisa Tavora é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora da dissertação “O lirismo na gravura abstrata de Fayga Ostrower” (EBA/UFRJ, 1990). 
     
    Saiba Mais
     
    FERRAZ, Eucanaã (org.). Fayga Ostrower ilustradora. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2011.
    Catálogo da exposição Os caminhos de Fayga Ostrower. Texto de Anna Bella Geiger. Rio de Janeiro: Ed. Instituto Fayga Ostrower, 2006. 
    KOSSOVITCH, Leon; LAUDANNA, Mayra & RESENDE, Ricardo. Gravura Brasileira. São Paulo: Cosac & Naify / Itaú Cultural, 2000.
     
    Internet
     
    Instituto Fayga Ostrower, www.faygaostrower.org.br