A fotografia desempenhou um papel fundamental no processo de construção e divulgação de uma nova imagem da capital do Brasil durante os primeiros anos da República. O Rio de Janeiro seria retratado pelos artistas como exemplo de uma cidade moderna e cosmopolita, símbolo das mudanças ocorridas no país. As fotografias – com o advento de novos recursos técnicos – revelariam uma estrutura ilusória da cidade, mostrando como a capital gostava de se ver e ser vista naquele momento.
Entre as obras que ilustram este novo olhar sobre o “Rio Republicano” destaca-se o álbum de fotografias Vues de Rio de Janeiro – Brésil. Feitas pelos irmãos Musso, as fotografias de 34 vistas da cidade transportam o observador para um passeio pelo Rio de Janeiro do início do século XX. A edição é um clássico exemplo de encomenda oficial do governo federal, como comprova a capa em couro verde-escuro, decorada com uma moldura dourada onde se destacam no centro, em relevo, as armas da República do Brasil.
Os irmãos Musso publicaram um outro volume com capa semelhante: o álbum Exposição Nacional de 1908, que atualmente se encontra no arquivo do Museu Histórico Nacional. No mesmo local está guardada uma foto dos ministros do governo de Affonso Penna, feita pelos mesmos autores. Esse conjunto de importantes documentos indica que os irmãos Musso eram os fotógrafos oficiais reconhecidos pelo governo federal no período. A constatação é confirmada pela assinatura oficial aplicada na segunda folha de rosto do álbum, onde figuram as armas da República do Brasil.
Muito pouco se sabe sobre a biografia dos irmãos Luiz e Alfredo Musso, além da origem italiana. Sua formação na Itália transparece nas técnicas apuradas e na elegância do tratamento dado às imagens arquitetônicas. Entre 1901 e 1904, Luiz Musso participou, no Rio de Janeiro, da tradicional casa fotográfica Guimarães & C. Em 1905, Luiz e Alfredo Musso abrem uma casa fotográfica com o nome L. Musso & Cia. No mesmo ano, a casa é anunciada no Almanak Laemmert – tradicional anuário informativo – na categoria “Photografia Brasileira”.
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Personalidades ilustres foram retratadas no ateliê dos fotógrafos italianos: o escritor Machado de Assis, alguns presidentes da República e seus ministros, além de elegantes figuras femininas. Muitas dessas fotos foram publicadas pela revista Careta. Nas ilustrações, os retratos dialogam com o moderno grafismo de J. Carlos, responsável pelo desenho de suas molduras.
O título Vues de Rio de Janeiro – Brésil não foge do clichê comum aos álbuns europeus do século XIX que retratavam paisagens românticas. Mas em vez de inebriar o estrangeiro por meio do pitoresco e do exótico, as imagens revelam um novo olhar sobre uma cidade redesenhada, onde construções, palácios, ruas e jardins remodelados se relacionam com as belezas naturais e a mudança de comportamento de sua população. As fotografias exaltam ainda essas belezas naturais, a monumentalidade dos prédios públicos, a amenidade dos locais de lazer, as avenidas recém-construídas em direção ao sul, os modernos símbolos da economia e os atuais ícones culturais, como a Biblioteca Nacional e o Theatro Municipal.
A primeira página do álbum apresenta, em fotos individuais 5x4, o presidente Nilo Peçanha e sua equipe de ministros. O visconde do Rio Branco, que ocupava o cargo de ministro das Relações Exteriores e já havia trabalhado em publicações do mesmo tipo, possivelmente assumiu o papel de coordenador do projeto. Embora não exista qualquer referência à data da publicação, podemos supor que o álbum tenha sido produzido em 1910. Nilo Peçanha foi presidente da República entre 1909 e 1910, e as vistas das docas – contemporâneas do novo cais do porto inaugurado em 1910 – e do Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio, criado em 1910, confirmam a hipótese.
Provavelmente, a inauguração do porto motivou a encomenda do álbum aos irmãos Musso. As legendas são bilíngües, em português e em francês. Nesse período, o governo federal entregou a administração do novo cais à Compagnie du Port de Rio de Janeiro, empresa francesa que venceu a licitação.
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A presença dos retratos dos principais representantes do governo federal num álbum de vistas urbanas é um fenômeno completamente novo. Uma vez extintos a monarquia e seus ícones, desaparece a idéia de que o poder do soberano é infalível. A divulgação da própria imagem torna-se um instrumento para se fazer conhecer e ganhar a confiança do público. Nas edições oficiais das grandes empresas, passa a ser freqüente a apresentação de retratos dos diretores e funcionários.
A estreita ligação entre o governo e a sua capital, sugerida no álbum, enfatiza também o novo papel assumido pelo Estado em relação à gestão urbana desde o projeto de melhoramento urbano anunciado pelo presidente Rodrigues Alves (1902-1906). Fica clara nesse período a intervenção direta do poder político no processo de crescimento e de transformação da cidade, interferindo também na sua aparência estética.
O jovem Rio republicano ainda não apresentava uma área administrativa delimitada; as sedes da Presidência e dos Ministérios estavam espalhadas por diferentes locais da cidade, desde o Centro até os novos bairros da Zona Sul. A passagem do regime imperial para o republicano ocorrera muito rapidamente. Os ministérios na República Velha não tinham uma fisionomia própria que pudesse refletir uma mudança em relação ao período anterior. Alguns prédios foram construídos ou reformados obedecendo ao gosto eclético da época, caracterizado por uma convivência de diferentes estilos “históricos” e pela prevalência da decoração sobre a estrutura. Entre as novas construções estavam os prédios do Ministério da Marinha, no Cais dos Mineiros, o Ministério da Guerra e a sede da Prefeitura, na Praça da República, o Ministério de Transporte e Viação, na Praça XV. Muitas instalações que já existiam foram reformadas: é o caso do Palácio Presidencial, estabelecido no Solar dos Barões de Nova Friburgo, do Ministério das Relações Exteriores, no Palácio Itamaraty, e do Ministério da Fazenda, na antiga Academia Imperial de Belas Artes.
A fotografia feita pelos irmãos Musso do Palácio da Presidência procurava acentuar a suntuosidade do prédio. A forma como eles retratavam a arquitetura dessas construções distancia-se da visão frontal, comum nas representações feitas até então. Os autores italianos se esforçavam para valorizar ao máximo a decoração e o tamanho da construção a fim de forjar uma monumentalidade ilusória. Um exemplo significativo é a fotografia do Ministério da Guerra, na Praça da República. O ângulo visual escolhido é lateral, para reproduzir duas fachadas, a principal e a lateral, e assim evidenciar a imponência do volume, dando a impressão de uma terceira dimensão. O olhar dos irmãos Musso é condicionado pela própria formação, baseada na tradição artística italiana.
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A luz é dosada e calibrada em função das características da própria construção, sem fortes contrastes. A perfeita focagem dos detalhes estruturais e decorativos permite uma clara leitura dos elementos arquitetônicos fotografados. O retrato do respectivo ministro ou, no caso do Palácio do Catete, do presidente, era inserido por fotomontagem em um pequeno círculo na parte superior da imagem, provavelmente para sublinhar a ligação institucional do personagem com a construção.
Nas vistas, os fotógrafos se preocupavam em retratar o Rio como cidade construída segundo os modelos internacionais dentro de uma natureza privilegiada. Embora várias ilustrações repitam os clichês presentes em álbuns turísticos comerciais, o que mais surpreende é o destaque dado às grandes transformações realizadas segundo as diretrizes do plano de melhoramento urbano.
A Praça XV é mostrada por uma nova perspectiva, muito diferente da rígida e frontal iconografia imperial, em que os principais destaques eram o Paço Imperial e as igrejas, que funcionavam como pano de fundo. A mudança do ângulo visual, invertido em relação ao que era adotado antes, destaca a paisagem criada pelo desenho dos jardins. Fecha o cenário, do lado direito, a fachada lateral do Paço, utilizada como uma cortina cuja elegância arquitetônica contribui para embelezar a imagem.
A parte central do álbum, da página 10 à 18, é dedicada ao novo cenário do Rio belle époque, da Avenida Central à Avenida Beira-Mar. A série de imagens traduz as expectativas de progresso e modernidade que definem o ideal republicano. A vista da nova Avenida Central, tomada do alto, mostra o “embelezamento” resultante dos novos ornamentos arquitetônicos, iluminação e organização urbana. A abertura da Avenida representa, de fato, uma profunda mudança no espaço urbano e a introdução de um novo módulo métrico, que chegou para ficar e se impor sobre o antigo traçado colonial.
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As arquiteturas dos edifícios notáveis recém-construídos (Biblioteca, Theatro Municipal, Palácio do Supremo Tribunal, Palácio Monroe) parecem fazer parte de uma cenografia teatral.
O tratamento sofisticado utilizado para retratar a Biblioteca Nacional inclui, na parte lateral esquerda, a presença do Morro do Castelo, que já se encontrava escavado para dar lugar a novas construções. A escolha de um corte capaz de colocar as construções ilhadas num grande espaço vazio, sem nenhuma relação com seu entorno, cria a idéia da amplidão do novo espaço urbano, característica predominante da cidade moderna.
Os edifícios-monumentos são retratados pelos irmãos Musso como integrantes do cenário de uma cidade vazia. O método é também uma conseqüência do longo tempo de exposição necessário às fotografias na época. A presença de pessoas nas imagens das vistas era evitada, pois estas precisariam permanecer imóveis por algum tempo, o que era inviável em locais de grande circulação. Na época, o Rio de Janeiro tinha 500 mil habitantes, e muitos dos prédios fotografados se encontravam no coração da cidade, onde havia muito movimento.
Podemos dizer que as “vistas” apresentadas pelos fotógrafos são cenários construídos de propósito, artificiais e sem movimento. Como disse Walter Benjamin ao analisar a obra do fotógrafo Eugène Atget (1856-1927), que no início do século XX retratou as ruas de Paris vazias, sem qualquer presença humana: “A cidade é deserta como um apartamento que ainda não achou seus novos inquilinos”.
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Em momentos de rápidas e radicais transformações históricas, como no caso do advento da República no Brasil, a introdução de uma nova visão, quase simbólica, facilita a aceitação da nova realidade e permite apagar a ansiedade coletiva gerada pela mudança.
No início do século XX, a remodelação do Rio de Janeiro se manifesta como resultado de uma “utopia coletiva”, que o arquiteto Segre chama de “o mito do novo”. Em toda a América Latina seriam construídas novas paisagens, capazes de anular ou ocultar antigas reminiscências. A cidade vista pelos irmãos Musso aparece como um todo harmonioso, onde tudo encontra o seu lugar, o seu papel, e as criaturas possuem sua representação nos elegantes hábitos urbanos. As raras figuras humanas aparecem apenas como silhuetas. Servem de escala para exaltar a grandiosidade das construções. Por outro lado, seus costumes, caracterizados nas imagens, determinam a classe social a que essa parte da cidade pertence.
Ao contrário da obra dos irmãos Musso, as fotografias de Marc Ferrez ou de Augusto Malta, seus contemporâneos, enfatizavam a animação das ruas e a presença da população. Estes eram fatores importantes ligados à vivência, onde o presente interage com o próprio passado.
O conjunto de vistas feitas pelos irmãos Musso substituiu a cidade real por sua imagem fotográfica, utilizando a ilusória objetividade das novas técnicas. O Rio apresentado é o produto da era moderna. Neste contexto, a fotografia desenvolve o papel de comunicação, instrumento de divulgação de idéias, e ao mesmo tempo se coloca como um projeto de cidade que antecipa sua verdadeira construção.
Maria Pace Chiavari é Graduada em arquitetura na Universidade de Florença, Itália e possui o Diploma de Estudos Avançados de urbanismo pela Universidade de Paris VIII, França. Trabalha no Instituto Italiano di Cultura do Rio de Janeiro.
Uma cidade deserta
Maria Pace Chiavari