- A inclusão das temáticas de gênero no ambiente escolar vem gerando crescente tensão no país. Em 2010 e 2011, a principal polêmica girou em torno da composição e da distribuição do “Kit contra homofobia”, realizado pelo MEC, mas vetado pela presidente Dilma Rousseff. Em 2014, foi aprovado o novo Plano Nacional de Educação e, depois de forte pressão das bancadas evangélica e católica, o termo “gênero” foi retirado do texto final do documento. Este ano o resultado foi o mesmo em boa parte das Câmaras municipais, palcos de debates acalorados sobre a inclusão do tema nos Planos Municipais de Educação. Parte significativa delas, em todo o Brasil, recusou a permanência do termo “gênero” em atendimento a personalidades religiosas locais, tanto evangélicas quanto católicas.
Segundo os religiosos, o termo carrega um caráter ideológico. Falar de gênero, para essas pessoas, equivale a incentivar o fim da família tradicional, pois reforçaria a ideia de que cada sujeito pode ser o que quiser, independentemente do seu sexo biológico – este, sim, um desígnio de Deus. Tal raciocínio, pautado na defesa de uma família específica e das regras de gênero, ignora que ele próprio está imerso em uma ideologia, ou seja, carrega valores social e historicamente construídos.
Mas, afinal, qual é a importância de tratar desta temática na escola, em um contexto tão hostil às questões de gênero e às múltiplas formas de entendimento da sexualidade?Desde que nos entendemos enquanto sujeitos, estamos exercendo uma de nossas capacidades intrínsecas: a de nomear o mundo ao nosso redor. Todo o tempo estabelecemos diferenças, classificamos, atribuímos significados e valores. Pense, por exemplo, como o simples ato de sair com os amigos pode estar atravessado por nossa necessidade de nomear, de entender o que é feio ou bonito nas vitrines do shopping ou nas roupas e nos cabelos das pessoas, o que é normal ou esquisito no comportamento das crianças no playground, o que é bom ou ruim nos hábitos de uma amiga de infância.O problema é que o ato de nomear está imerso em relações de poder e, por vezes, implica hierarquias que sustentam relações de desigualdade, de violência, de discriminação e de preconceito com tudo aquilo que é diferente de nossos pressupostos.Com as questões de gênero e sexualidade acontece algo similar. Antes mesmo de os sujeitos nascerem, ainda nas barrigas de suas mães, promovemos um longo empreendimento de gênero: a partir da constatação de seu sexo biológico, batemos o martelo sobre se são meninos ou meninas. E então montamos o quarto, escolhemos as cores de roupa, compramos os brinquedos, conjecturamos sobre suas profissões e, principalmente, vislumbramos suas vidas amorosas, seus namoros ou casamentos, fundamentalmente com pessoas do sexo oposto.Todo um mundo possível é preparado para receber uma menina ou um menino. Isto explica, em parte, a decepção tão comum às famílias quando descobrem um filho ou uma filha homossexual (que não corresponde ao heterossexismo que pauta nossa sociedade) ou transexual (que possui uma identidade de gênero diferente da designada por seu sexo biológico). No fundo, reside a ideia de que o gênero e a própria sexualidade são as bases fundamentais da nossa formação “moral” enquanto sujeitos. Entendemo-nos enquanto seres masculinos e femininos, e isto é reforçado ao longo de toda a nossa existência, em múltiplos espaços: na família, no trabalho, nos círculos de amigos e também na escola.No seu curto tempo de existência, as crianças já possuem uma percepção sobre como agir de acordo com o seu gênero. Desde os primeiros anos de vida, as meninas são bombardeadas com informações sobre o que é esperado de uma pessoa que nasce com uma vagina, ou seja, que se constitua enquanto mulher e que, de preferência, evidencie um comportamento considerado feminino: que seja delicada, que brinque com bonecas, que cruze as pernas ao sentar, que fale baixo, que saiba desenvolver habilidades domésticas e que namore meninos. Este roteiro é elaborado em oposição ao que se espera dos rapazes: que sejam mais rudes, que brinquem com carrinhos e bola, que sentem de pernas abertas, que falem sem o compromisso com a voz baixa, que atuem nos espaços públicos e que se interessem sexual e afetivamente por uma mulher.A escola exerce papel fundamental nesta constituição dos sujeitos. É ali que os alunos desenvolvem seus círculos de amizade, reforçam suas identidades e identificações e compreendem sua relação com o mundo. Esse espaço pode se consolidar como um lugar acolhedor e como única alternativa para aqueles alunos que apresentam conflitos familiares e em suas comunidades de origem. Ou pode se converter em um ambiente onde se reproduzem preconceitos, silêncios e formas de discriminação.Com frequência as normas de gênero são estimuladas na escola, tanto pelo corpo docente quanto pelos funcionários, entre os próprios alunos e alunas em suas brincadeiras e na forma como se constroem os grupos de interação. No polo oposto, excluídos, estão todos os sujeitos e as formas de vida que escapam ao roteiro socialmente estabelecido. Aqueles que rompem com a norma são enquadrados na categoria do patológico, do doente, do não desejado. Em outros termos: é o que não pode existir, e por isso deve ser humilhado e agredido.Para muitas pessoas que não reproduzem ou que resistem às regulações do gênero, o ambiente escolar acaba se transformando em um lugar de infelicidade e de sofrimento. Isto é especialmente válido para alunos homossexuais, transexuais e travestis, mas também para todos aqueles que não correspondem ao que foi designado normativamente para seu sexo biológico. Os casos recorrentes de suicídio entre a população LGBT evidenciam uma sensação de falta de adequação ao mundo e do não encontro com espaços de acolhimento.Outro futuro costuma esperar esses jovens. Eles e elas precisam também lidar com uma família que considera a homo/transexualidade como doença e/ou desvio moral e com uma escola hostil, com práticas discriminatórias. Além disso, correm o risco de se deparar com a violência homofóbica das ruas, como indica o aumento das estatísticas de homicídio levantadas pelo Grupo Gay da Bahia: no ano de 2013, houve um assassinato de LGBT a cada 28 horas no país, enquanto em 2004 registrou-se um assassinato a cada 55 horas.Para perceber se somos coniventes com situações de violência e de homo/transfobia, é preciso compreender que a escola não é um espaço neutro. Toda a comunidade escolar estimula determinadas práticas, reforça discursos, fala de sexualidades, desejos e afetos. O filósofo e historiador francês Michel Foucault elaborou em sua obra História da Sexualidade I: vontade de saber (1976) uma tese que pode nos ajudar a refletir sobre nossas práticas e discursos. Para ele, o discurso não é apenas a fala ou o enunciado, mas um conjunto de práticas que nomeia incessantemente os objetos aos quais se refere. E a sociedade ocidental não reprimia seu sexo e sua sexualidade, ao contrário, promovia em torno deles uma fala constante. A partir do século XVIII houve uma verdadeira explosão discursiva sobre a sexualidade, que permitiu regulá-la, governá-la, administrá-la. Embora tenhamos uma história distinta da Europa analisada por Foucault, colhemos os frutos de uma sociedade em que as instituições foram estimuladas a falar sobre a sexualidade de forma a produzir maneiras aceitáveis e não aceitáveis de vivenciá-la. E as escolas integram o aparato das pedagogias sexuais e de gênero.As práticas homo/transfóbicas estão ligadas às relações de gênero e aos comportamentos sexistas (machistas) e misóginos (ou seja, de aversão às mulheres). Quando os alunos desejam promover xingamentos, palavras como “mulherzinha” são usadas com a intenção de ridicularizar o outro, pois tudo aquilo associado às mulheres e ao feminino é visto como inferior. E os homens que se distanciam ou escapam das regulações da masculinidade acabam sendo nomeados de (des)viados.O silêncio também está presente na escola, reforçando preconceitos e mortes reais ou simbólicas. É frequente, em cursos de formação para o magistério, relatos do tipo “Trato meus alunos de forma igual, o fato de o sujeito ser assim ou assado não interfere nas minhas aulas”. Fingir que alguém marcado pela diferença não existe é eliminar sua potencialidade e promover sua morte. Em outros termos, é ser conivente com a violência. O silêncio geralmente é acompanhado pela cumplicidade com as chamadas “brincadeiras”. Rir do colega afeminado, lançar apelidos para a menina lésbica, chamar alunas e alunos transexuais pelo nome de origem, e não pelo social, são atitudes consideradas pelos docentes e pelos funcionários como algo do foro das “brincadeiras de crianças”, que não merecem interferência.A falta de compreensão sobre como desenvolvemos nossos desejos e afetos pode levar os que atuam nos estabelecimentos de ensino até mesmo à dúvida sobre como tratar casais homossexuais. Entre os hábitos comuns estão o silenciamento da prática, escondida em frases como “são dois amigos” ou “são duas amigas”, os impedimentos de que estes sujeitos vivenciem seus amores, mesmo quando os casais heterossexuais circulam livremente e, no limite, xingamentos, ataques e agressões.A prática docente exige um constante processo de autorreflexão que nos permita questionar aquilo que entendemos como “normal”. É fundamental saber que existe uma diversidade de sujeitos e formas de existência: sujeitos que não se reconhecem em seus corpos, que têm desejo por pessoas do mesmo sexo, que gostam de se vestir de formas variadas. Todas e todos devem ter como direito básico existir, falar e se expressar no espaço escolar.Uma vez engajados neste exercício, educadores precisam romper o silêncio. É de extrema importância que se converse sobre as “brincadeiras” não somente quando acontecem, mas durante todo o ano letivo, por meio de discussões que remetam à situação vivenciada. E isto pode ser feito a partir de temas que aparecem na mídia, de atividades de desconstruções sobre padrões estéticos, de corpo, de sexualidade ou por meio de debates sobre filmes e músicas, além das necessidades manifestadas pelos próprios alunos.O cuidado com a linguagem também caminha junto com o respeito à diversidade. Deve-se evitar o emprego de diminutivos para se referir às meninas e de aumentativos, aos rapazes. E deixar de usar termos que geram estigmas, optando por aqueles mobilizados pelos próprios movimentos sociais, como “gays”, “lésbicas”, “transexuais”, “travestis” ou, simplesmente, optar por compreender e respeitar a forma como as pessoas preferem ser nomeadas.Podemos abordar práticas homossexuais com o uso de palavras que atribuam a elas afetividade. Diante de dois homens ou duas mulheres que se abraçam, é preferível dizer que são namorados e namoradas ao uso do termo “homossexuais”: o namoro, nas escolas, não pode ser privilégio de casais heterossexuais.O nome é outro motivo de tensão e violência no espaço de ensino. Sujeitos transexuais não se reconhecem em seu corpo biológico. O nome de registro pode ser motivo de sofrimento, na medida em que remete ao corpo que rejeitam. Quando há dúvidas sobre como proceder, apenas pergunte como a pessoa prefere ser chamada.A vida escolar é fundamental para a consolidação das nossas personalidade, identidade e subjetividade, e certamente referenda o nosso agir no mundo. É imprescindível que este exercício seja o de conviver com a diversidade e com as diferenças. Enquanto formadoras e formadores, uma mesma pergunta deve sempre guiar nossas práticas e discursos: estou possibilitando que todos os meus alunos e alunas existam?Lara Facioli é autora da dissertação “Conectadas: uma análise de práticas de ajuda mútua feminina na era das Mídias Digitais” (UFSCAR, 2013).Saiba MaisMISKOLCI, Richard. Marcas da diferença no ensino escolar. São Carlos: EdUFSCar, 2010.LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2004.LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.LOURO, Guacira Lopes. “Gênero, sexualidade e educação: das afinidades práticas às tensões teórico-metodológicas”. Educação em Revista, Belo Horizonte, nº 46, dez. 2007.FilmesTomboy (Céline Sciamma, 2012)XXY (Lúcia Penzo, 2007)O riso dos outros (Pedro Arantes, 2012)Minha vida em cor-de-rosa (Alain Berliner, 1997)SitesQuereres – Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Gênero e Sexualidade http://www.ufscar.br/cis/CUS – Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade: http://politicasdocus.comHomofobia Mata: https://homofobiamata.wordpress.com/
Uma escola para a diferença
Lara Facioli