Uma multidão sai às ruas

João Paulo Rodrigues

  • Manifestação na Praça do Patriarca, em São Paulo, no dia 22 de maio de 1932. Cresce a revolta dos paulistas contra um governo surdo às suas reivindicações.Dois anos após Getulio Vargas assumir a liderança do país, pondo um ponto final na Primeira República, já enfrentava a oposição numa guerra que tinha como bandeira o retorno à normalidade constitucional. Para vencê-la, ao lado das estratégias militares a propaganda teria posição privilegiada, e o Governo Provisório se empenharia nas rádios cariocas e nos panfletos lançados por aviões sobre São Paulo. Na capital paulistana, por outro lado, foi criada a Comissão de Propaganda Cívica, que procurou arregimentar artistas dispostos a colaborar com a causa e que deixaram uma variedade de imagens, usadas, inclusive, em produtos comercializados associados à “revolução”: cartazes, cartões-postais, panfletos ilustrados, alegorias, mapas decorados e selos de correspondência, entre tantos outros que tiveram larga circulação no estado. De fato, a propaganda constitucionalista valeu-se de um conjunto diversificado de imagens para viabilizar e fortalecer o levante de 1932.

    A fotografia teve lugar de destaque nos planos das lideranças da campanha, pois interessava aos constitucionalistas a suposta ótica realista que impregnava as cenas retratadas. Por isso o grande número de imagens preservadas na atualidade, que vão de manifestações e desfiles cívicos que antecederam o conflito até as cenas da mobilização popular para formar batalhões de soldados e voluntários da retaguarda dos combates.

    Basta um rápido olhar para duas das fotografias sobre a deflagração da “revolução” de 32, e logo se é atraído para o intenso brilho realista das multidões paulistas em cena, aparentemente conduzindo os destinos de seu estado rumo à “revolução libertadora”. Mas é justamente aí, no valor de “cópia fiel da realidade” que costumamos atribuir à imagem fotográfica, que se alicerçaria a propaganda visual da guerra.

    A primeira fotografia, infelizmente de autoria desconhecida, registra o momento inicial da campanha, em 25 de janeiro de 1932: a primeira grande manifestação cívica paulista “em defesa da reimplantação da Constituição no país”, suprimida desde o final de 1930 pelo governo Vargas. Nela temos o panorama das comemorações promovidas no Centro de São Paulo, inicialmente por ocasião do aniversário da cidade, mas que, “por força das circunstâncias”, teriam se transformado em evento político.

    A imprensa registrou a festividade em diversas fotografias. A cena retratada, do acervo do jornal O Estado de S. Paulo, parece bem mais poética do que reveladora de intrigas políticas a instigar a manifestação. Nada de partidos ou grandes líderes à frente da proposta constitucionalista, que meses depois justificaria a “revolução”. O enfoque recai sobre o povo de São Paulo, uma multidão de cerca de 200.000 pessoas, para uma população da capital não superior a um milhão de habitantes, a “clamar pela Constituição”.

    O fotógrafo, posicionado em ângulo superior à multidão, como quem detém as condições ideais para registrar o fato com objetividade, tal como teria acontecido, esforça-se para transmitir esta ideia. O contingente popular extravasa os limites do visor fotográfico, e a unanimidade sugerida fica clara na síntese focalizada entre a multidão comprimida sob a chuva e os ideais a guiá-la, em slogans como “São Paulo unido exige a Constituinte”. Ante o suposto realismo da fotografia, anunciada como arte de denúncia a documentar a ação real do povo comum, não caberia dúvida sobre as raízes populares, espontâneas e não “politiqueiras” da campanha constitucionalista.

    Já a segunda imagem, também de autor desconhecido, é do momento de radicalização da “luta pela Constituição”, que se traduzia no começo do conflito bélico em 9 de julho – e que durou até 2 de outubro de 1932 –, e na tomada de posse do governo “revolucionário” em São Paulo. O interventor federal nomeado por Vargas para o Estado, Pedro de Toledo, ex-deputado pelo Partido Republicano Paulista e diplomata de longa carreira, já tinha dado mostras de que mudara de lado e aceitaria o cargo. Na cobertura jornalística, sua posse também seria atribuída às exigências populares.

    O periódico local A Gazeta usaria inovadoras técnicas jornalísticas da época para divulgar o ato. Em formato grande, que ocupava as seis colunas da metade superior da primeira página do jornal, a fotografia superaria em importância o texto escrito na capa, como a imagem de abertura da cerimônia de aclamação do governador e do início da “Revolução Constitucionalista”. Já à primeira vista, é a imensa multidão que compareceu no dia 10 de julho ao Largo do Palácio, local do ato, que recebe o enfoque. Enquadrada por ângulo lateral, ela aparece em posição de quem não pode ser reconhecida ou dividida em classes. Representa, na perspectiva do fotógrafo, o povo anônimo, real, que de forma comovente aclama o governador e conduz o desencadeamento de sua “revolução”.

    A relativa “insignificância” do personagem principal da ocasião, o governador Pedro de Toledo, e das demais lideranças da guerra, fixadas ao fundo da imagem pela verdadeira torrente humana que ocupa todos os espaços, é devidamente explorada pelo autor da foto. Como poderiam os líderes civis e militares ludibriar tamanho contingente? O fotógrafo se apresenta como quem pretende denunciar com objetividadea ação de um povo oprimido para se libertar do governo “ditatorial”.

    Do ponto de vista estético, comparadas as duas imagens, parece claro que ambas recorrem ao mesmo estilo artístico para representar as duas diferentes etapas da campanha. Ambas privilegiam os atos do povo em geral, sem a preocupação de identificar eventuais lideranças a decidir os caminhos da luta; retratam e apoiam o que seria a reação da população trabalhadora contra a opressão da “ditadura” e procuram expressar o real em detalhes. Essas diretrizes correspondem ao movimento realista-naturalista na arte, que desde o século XIX pretendia uma abordagem objetiva da realidade, tal como seria de fato, e comprometida com temas sociais. Em São Paulo, as Escolas de Belas Artes eram versadas neste estilo, o que explica o fato de que dois jornais diferentes tenham se inspirado nele para retratar 32.

    Mas, em 1922, o estado fora palco da Semana de Arte Moderna, que havia apresentado novas formas artísticas e questionado abertamente o princípio realista da arte como meio passível de descrever objetivamente o real. Os valores pessoais do artista reconhecidamente interferiam, e muito, no resultado de sua obra, causando distorções. Por que, então, estas duas imagens, aparentemente sem vinculações entre si, não filtraram as críticas dirigidas ao realismo? Qual a razão de jornais de ponta na época persistirem neste estilo combatido?

    O mais provável é que esses órgãos da imprensa paulista tenham transposto as fronteiras da “neutralidade”, tomando partido da causa constitucionalista. Daí terem optado pela linguagem naturalista para “descrever a revolução” não como ela era de fato, e sim como convinha a seus interesses, defendendo-a de ataques dos adversários sobre seu suposto caráter político elitista.

    Com o acirramento da guerra, a interpretação visual de alguns jornais acabaria integrando a propaganda oficial da “revolução”. Junto com outras estratégias, defenderiam a origem popular e constitucionalista da luta, quando ela de fato representava um ponto de vista parcial sobre os acontecimentos. Para as gerações posteriores, esse “realismo” dificulta a compreensão de 32. Afinal, por que tão numerosa multidão acorreria ao Largo do Palácio para aclamar a guerra e o líder de seu estado em 10 de julho se não estivesse de acordo com isso?

    A fotografia, como fragmento selecionado no espaço e no tempo, pela ação subjetiva de um fotógrafo, envolve escolhas. Se a opção da propaganda de 1932 por retratar as massas em ação evidencia o consentimento do povo paulista ao constitucionalismo, isto não significa que seja ele o grande responsável pela “revolução”. Não há nas imagens elementos que sustentem essa conclusão.

    Sabe-se que nos meses iniciais de 1932 a situação econômica do país era delicada e as insatisfações sociais se voltavam contra o governo de Vargas, exigindo soluções. Entretanto, em São Paulo, as elites estaduais também não gozavam da plena simpatia dos movimentos de operários. Em maio daquele ano, houve greves que chegaram a paralisar mais de 16.000 trabalhadores, dissipadas sob violenta repressão policial e com o aplauso dos setores patronais. Para estes segmentos sociais – que não se limitam a lideranças de classe –, a Constituição sozinha não representava garantia de melhoria nas condições de vida.

    Talvez por isso, no início da campanha constitucionalista, na imagem de 25 de janeiro, o grupo que ocupa as escadarias da Catedral da Sé e lidera o comício – provavelmente partidários políticos –, empunha as faixas que associam, sem disfarces, a alternativa constitucional ao aceso regionalismo paulista. Sob o atraente realismo das imagens de 1932 muito ainda resta a desvendar, e, para tanto, será preciso atravessar a aura das representações construídas pelos contemporâneos desse levante, que já se torna octogenário.

     

    João Paulo Rodriguesé autor de 1932: Pela força da Tradição. São Paulo: Annablume, 2012 (no prelo).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    PAULA, Jeziel de. 1932: Imagens Construindo a História. 2ª ed. Campinas: Unicamp/Unimep, 1999.

    VILLA, Marco Antônio. 1932: Imagens de uma Revolução. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.

     

    Saiba Mais - Internet

    Memorial 32 – José Celestino Bourroul:

     www.memorial32.org.br

    Sociedade Veteranos de 32 – MMDC:

     www.sociedademmdc.com.br