1688, cidade de Salvador. Na casa de Jerônimo Cordeiro, proprietário de escravos, Joaquim, um escravinho mulato com trânsito livre no lar de seu dono, usa de astúcia para conquistar atenção especial e pede a ele alforria.
1702, sala do juiz de órfãos. A preta Maria e seu filho Marcelino acabam de receber sentença do juiz. O documento que levam consigo comprova que o menino era tratado como liberto pelo finado senhor e garante, também a ele, a alforria dada à sua mãe em testamento.
1706, residência de frades franciscanos. A escrava Luzia, vinda do Congo, cuida diariamente do padre Francisco, de sua comida, suas roupas, suas doenças. Por essa dedicação, recebe a liberdade e uma série de presentes. São roupas finas, rendas, adereços de prata, tacho de cobre, tudo registrado no documento que comprova que ela agora é livre.
Cenas como estas, construídas a partir de cartas de alforria concedidas na Bahia de 1684 a 1707, faziam parte do cotidiano no Brasil colonial. São imagens bem diferentes daquelas que predominam nos registros sobre a escravidão. O escravo não aparece no papel de vítima, sem autonomia para viver sua vida, ou como alguém cuja obediência é mantida exclusivamente pelo chicote. As cartas mostram que ele soube criar, mesmo nos estreitos limites de sua condição, oportunidades para melhorar de vida usando artifícios como a sedução ou tornando-se cúmplice do seu senhor.
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No dia-a-dia, os escravos eram os responsáveis pelo funcionamento da casa. Preparavam a comida, amamentavam e cuidavam das crianças brancas. Alguns eram tão íntimos que dormiam no mesmo quarto que seus senhores. Esta convivência diária freqüentemente propiciava enfrentamentos, acordos e negociações que configuravam um singular jogo de poder e sedução. É notório que esses protagonistas, que ocupavam lugares tão diferentes na sociedade, chegavam, em alguns casos, a manter relações sexuais, e que muitas crianças nasceram desses encontros.
A complexidade desses laços pessoais oferecia aos escravos várias oportunidades para conquistarem importância e reconhecimento. Em muitos casos, ele se tornava objeto de cuidado e afeto por parte de seu proprietário. A família criava o negrinho que nascera em sua casa tendo por ele "amor como se fosse filho". Em outros, a habilidade de intervir no momento adequado – como o menino Joaquim, citado na abertura – podia conduzir à alforria gratuita. Também o domínio de certos saberes, como as “artes da feitiçaria” e os segredos da medicina caseira, favorecia a conquista de prestígio pelos escravos.
Algumas cartas de alforria também sugerem o desempenho de papéis especiais, como é o caso de Ignocência, afilhada da senhora, cuja ocupação declarada no documento é a de “assistente em minha casa”. Ou de Balthasar, alforriado gratuitamente por seu senhor com a alegação de “aver servido bem por hum particular serviço”. Outro documento revela a história da negra Maria e de seu filho Marcelino, que se aventuraram num outro tipo de espaço, o Estado. Também citados na abertura, eles procuram o juiz de órfãos para comprovar que o menino já era tratado como forro pelo falecido senhor e conseguem obter sua alforria junto aos testamenteiros.
Este último caso foi bastante incomum no quadro da escravidão no Brasil. Antes da Lei do Ventre Livre (no. 2040, de 28 de setembro de 1871), a alforria legal era um assunto essencialmente privado, em que o Estado só interferia quando entravam em jogo questões de sua alçada, como contrabando ou segurança pública. Além disso, apesar de se conhecerem outros poucos casos de intervenção de um escravo junto ao Estado, ele era considerado civilmente incapaz. Nada disso, no entanto, impediu que essa negra e seu filho conseguissem o que desejavam.
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A maioria dos alforriados trabalhava em “ocupações urbanas” – um conjunto diversificado de atividades que incluía ser artesão, vendedor ambulante, barbeiro, lavadeira, pedreiro, carpinteiro, carregador de água, carregador de cadeira, estivador e outras. Cronistas e historiadores contam como os “negros de ganho” – que prestavam serviços a terceiros e repassavam parte ou até todo o pagamento ao proprietário – ocupavam as ruas da cidade, decidindo eles próprios onde e como iriam trabalhar, só precisando prestar contas ao senhor do resultado de seu trabalho. Este sistema permitia que, com muito esforço, juntassem dinheiro e assim pudessem comprar a alforria. Escravos domésticos também circulavam pelas ruas, encarregados de tarefas como comprar alimentos, buscar água e levar recados, entre outras. Essa mobilidade deve ter contribuído para aumentar sua ambição e aprimorar sua habilidade de cavar chances de obter a liberdade.
Nas cidades proliferavam os pequenos proprietários, cujo sustento com freqüência dependia totalmente do trabalho dos escravos de ganho. Uma situação como esta certamente gerava laços pessoais bastante complexos. Uma das aquarelas de Debret, por exemplo, retrata uma mulher branca empobrecida recebendo pagamento da escrava. Outra mostra uma senhora percorrendo a rua descalça, em posição semelhante à das negras que a rodeiam. As imagens levam a supor que essas mulheres tinham uma intimidade maior com as escravas, decorrente do fato de compartilharem as dificuldades da sobrevivência.
As cartas aqui examinadas se referem à alforria de 400 escravos. As alegações de 116 delas sugerem relações de cumplicidade, de afeto ou mesmo esperteza em tirar proveito de certas situações. Dessas 116 alforrias, 71 foram concedidas gratuitamente e sem qualquer cláusula restritiva. Nas cartas que parecem ter sido concedidas em nome da intimidade, a maioria indica que os senhores decidiram alforriar o negro por tê-lo criado ou ainda o estar criando, pelo fato de ter nascido em sua casa e pelos bons serviços da mãe. Entre os 83 escravos alforriados com este tipo de alegação encontram-se seis africanos, que devem ter chegado ao Brasil ainda pequenos. Quatro cartas sugerem ou declaram explicitamente que o proprietário teve um filho com a escrava alforriada ou que era pai do alforriado.
Crianças tinham mais chances de obter afeto e atenção por parte dos senhores. Segundo relato do cronista Luís dos Santos Vilhena, professor na Bahia em fins do século XVIII, mulatos e negrinhos eram criados com “extrema indulgência”. Das 116 cartas que sugerem relações de cumplicidade entre senhores e escravos, 64 tratam da alforria de menores. É uma proporção bastante elevada, considerando-se o número reduzido de crianças nos quadros da escravidão. Um exemplo disso é uma fotografia de um período posterior ao das cartas, na qual os escravos, possivelmente de uma única fazenda, estão reunidos. À frente estão os brancos. Os únicos negros que aparecem junto deles, em primeiro plano, são três meninos, o que sugere que gozavam de certos privilégios.
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Outra argumentação freqüente nas cartas é que “o escravo é gente da casa". A condição de servidor doméstico, sem acesso a dinheiro, fazia com que os únicos caminhos para conseguir alforria fossem a sedução e as boas relações com os proprietários. Neste contexto, as mulheres foram as maiores beneficiadas pelo fato de cuidarem dos afazeres diários e das crianças brancas. Isso deve ter contribuído para que o percentual de mulheres adultas alforriadas tenha sido mais que o dobro do de homens adultos nas cartas estudadas.
A escolha do senhor para padrinho de batismo de crianças escravas também pode ter sido um expediente usado estrategicamente pelas mães para a conquista de parentesco ritual com seus proprietários. Nos registros analisados, quatro escravos foram alforriados por serem afilhados de pessoas livres.A leitura das cartas de alforria vem confirmar parte de um ditado popular citado pelo jesuíta André João Antonil (1650-1716) — “O Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos”. De fato, dos 116 escravos cujas cartas foram estudadas, 74 eram mulatos, 24 eram crioulos, 17 eram africanos e apenas um era caboclo. A preferência pelos mulatos adquire dimensão maior se considerarmos que eles constituíam, de acordo com os padrões demográficos gerais da escravidão brasileira, apenas 10% a 20% da população escrava. A quantidade de crioulos favorecidos pelas alforrias está em maior equilíbrio, visto que representavam de 20% a 30%. No caso dos africanos, a desarmonia é grande: apesar de constituírem mais de 60% da população escrava, os beneficiados nos casos estudados são apenas 15%.
Os privilégios que mulatos e crioulos obtiveram de seus senhores talvez expliquem em parte sua ausência nas revoltas escravas, das quais participaram sobretudo os africanos. Estes, por serem estrangeiros, teriam preferido uma estratégia de guerra para tentar se libertar. Já os nascidos no Brasil, mais identificados com o lugar onde nasceram, adaptados à língua e à cultura — especialmente os mulatos —, teriam tido maiores oportunidades para uma política de alianças.
Nem todos os escravos, porém, tinham a sorte de se livrar das obrigações impostas por sua condição após conseguirem alforria. É o que parece ter acontecido com Julliana, cuja carta afirma ser “já velha”, e que, mesmo depois de ter comprado sua alforria, foi obrigada a continuar servindo sua proprietária – freira do convento de Santa Clara do Desterro – até a morte desta. História diferente de Angela Viegas de Souza, parda forra que declarou possuir seis escravos ao conceder alforria a quatro deles.
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Apesar das dificuldades para se libertar do estigma da escravidão, chegar à condição de liberto parecia estar simbolicamente associado a um renascimento, pois as cartas contêm expressões do tipo “como se nascera de ventre livre” ou “como se nascesse de pais e avós absolutos senhores de suas vontades”. De fato, o único bem que um escravo possuía era o seu próprio corpo. Mesmo assim, era apenas portador deste, e não proprietário. A libertação, portanto, devia significar a aquisição de um novo corpo, autônomo, diferente daquele que era propriedade de alguém.
O casamento também parece ter sido um motivo de valor para a concessão da alforria. Por exemplo, uma proprietária estipula em sua carta que “... esteja em minha companhia enquanto eu for viva, caso este em que também lhe não adquira estado de casada, porque então poderá seu marido levá-la para onde for seu gosto...”. Este argumento se deve ao fato de que seria difícil para mulheres e homens escravos conciliar as obrigações com sua própria família e a do senhor. Talvez por isso, a senhora desejava a escrava alforriada em sua companhia somente se ela não se casasse, pois então seria preferível que passasse a se dedicar apenas ao marido.
Certas cartas contêm curiosos conjuntos de justificativas. Motivos de tipos bastante diferentes são mencionados em bloco, como “me deu por si 80.000 réis em dinheiro corrente e pello amor que sempre lhe tive e a ter criado com muito mimo e juntamente pello amor de deos”. Uma dúvida: a quem eram dirigidas estas justificativas? Aos outros senhores? Ao escravo? À sociedade como um todo? Não se sabe ao certo.
Em alguns casos, como na carta da negra Luzia, alforriada pelo frade franciscano e citada no início, o inventário dos objetos com que o frade a presenteou pode ter servido para comprovar que ela não os havia roubado. Mas, se havia laços de cumplicidade entre senhor e escravo antes da alforria, é provável que alguns continuassem existindo após a libertação, garantindo também — é preciso dizer — a continuidade do sistema e o prestígio dos senhores. As relações de compadrio, por exemplo, permaneciam após a concessão da liberdade. Os dizeres das cartas seriam, então, um modo de reforçar os laços da relação patrono-liberto, ou de recomendar o ex-escravo, valorizando-o como digno do afeto e da consideração do senhor.
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O dinheiro também era mencionado nas cartas, talvez em nome do compromisso ou do desejo, por parte do senhor, de definir precisamente o que estava em jogo na concessão da alforria. Esta parece ter sido dada, muitas vezes, igualmente por amor e por interesse. Em caso de necessidade, um escravo querido podia ser trocado por dinheiro, seja pela sua venda a um outro senhor ou pela alforria paga por ele próprio ou por um benfeitor qualquer. A economia, a propósito, foi um fator determinante nessa relação, pois, em momentos de prosperidade econômica, a concessão de alforrias tendia a diminuir. Já em épocas de crise, os senhores podiam recuperar o capital investido em escravos por meio de alforrias pagas.
Desse modo, mesmo recebendo afeto e sendo seu cúmplice, o escravo não deixava de ser também alvo do olhar vigilante e da violência de seu senhor, ou de ter sua vida limitada por ser propriedade de alguém. Este caráter ambíguo é o que há de comum entre as cartas examinadas, pois, como se pode ver em boa parte delas, a alforria era concedida ao mesmo tempo por amor, por dinheiro e por temor a Deus.
Estudos sobre a escravidão no Brasil analisam os diferentes mecanismos de controle desse sistema, entre os quais se destacam a violência e a opressão. Mas é preciso considerar a política senhorial paternalista, que, para manter o bom comportamento dos escravos e para justificar-se moralmente, fazia concessões.
Lígia Bellini é professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autora de A coisa obscura: mulher, sodomia e Inquisição no Brasil colonial. Editora Brasiliense, 1989, e co-organizadora de Formas de crer: ensaios de história religiosa do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIV-XXI. EDUFBA; Editora Corrupio, 2006.
Uma relação delicada
Lígia Bellini