Uma tentativa democrática

Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico

  • Apesar das críticas e dos contratempos, as mudanças propostas com a instituição do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, vieram para ficar. Desde que foi anunciado, em 1998, sua abrangência vem aumentando, com o mérito de estimular a discussão sobre a exclusão de grande parcela das populações de baixa renda do ensino superior no Brasil. O principal objetivo do exame era “avaliar o desempenho do(s) estudante(s) ao fim da escolaridade básica”, sendo aplicado por meio de provas objetivas e uma redação na qual o estudante deveria demonstrar domínio da língua portuguesa, além de raciocínio e capacidade de articulação.

    A abrangência que o Enem passou a ter levou o governo, em 2004, a usar as notas dos estudantes para a seleção de bolsas integrais ou parciais nas instituições de ensino superior privadas. O Programa Universidade para Todos (Prouni) – que concede bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de educação superior – já atendeu desde então quase um milhão de estudantes carentes.

    A mudança mais importante e mais polêmica foi o anúncio, em 2008, da criação, pelo Ministério da Educação, do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), por meio do qual o governo pretendia que as instituições públicas de ensino superior utilizassem as notas obtidas pelos estudantes no exame para a classificação em seus processos seletivos.

    Cerca de 55 instituições públicas adotaram integral ou parcialmente as notas do Enem  como forma de avaliar o ingresso de estudantes. Após denúncias de fraude e o adiamento das provas em 2009, várias instituições abandonaram o processo, entendendo que ele deveria ser aperfeiçoado. Mesmo assim, o Conselho Nacional de Educação decidiu que, apesar das falhas, o Enem merecia ser reconhecido como “política de estado”. No ano seguinte, erros de impressão no cabeçalho das provas e nos gabaritos provocaram novos protestos. Outras adesões, no entanto, reforçaram sua importância. Em 2011, pelo menos 500 instituições de ensino superior, 59 federais, usaram o exame de alguma maneira em seus vestibulares.

    Desde a chegada do ensino superior no Brasil, junto com a família real, em 1808, jamais se formou uma ideia clara sobre a universalidade do acesso à educação. A expressão mais comum para se referir à população de 70% de analfabetos, de acordo com o censo de 1872, era “um país de iletrados”.  

    As formas de acesso aos poucos estabelecimentos eram tortuosas e clientelistas. Implicavam custos proibitivos para a maioria da população. Frequentados por representantes dos setores dominantes, havia cursos preparatórios para as faculdades de Direito e Medicina, embriões dos cursos pré-vestibulares de hoje.

    Considerado por vários autores como o início das regulamentações dos vestibulares no Brasil, o decreto 8.659, de 1911, destacava que o estudante que pleiteasse acesso ao ensino superior deveria ter idade mínima de 16 anos e “idoneidade moral”. Ele deveria ser aprovado em exame “que habilite a um juízo de conjunto sobre o seu desenvolvimento intelectual e capacidade para empreender eficazmente o estudo das matérias que constituem o ensino da faculdade”. As provas seriam livremente aplicadas por uma comissão. Provas escritas e orais avaliariam a “cultura mental”, o conhecimento de línguas e de ciências do candidato. O decreto se referia às faculdades públicas de Direito, Engenharia e Medicina, além do Colégio Pedro II e das escolas militares.

    Pequenas alterações na forma de seleção para as instituições superiores surgiram nas décadas seguintes. A reforma do Ministério da Educação e Saúde Pública (criado em 1930) pelo ministro Francisco Campos aumentou para sete anos o ensino secundário, sendo os cinco primeiros de formação geral e os outros dois anos de natureza complementar, visando à especialização em três áreas: pré-médico, pré-jurídico e pré-politécnica ou engenharia.

    Depois do Estado Novo (1937-1945) ocorre a criação de um grande número de universidades públicas federais, principalmente no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960) e no período militar (1964-1985). Esse crescimento substantivo do número de alunos de graduação correspondia às necessidades de mão de obra especializada para o funcionamento de um projeto de industrialização que se consolidava no Brasil.

    Ainda no início da década de 1960, foi promulgada a lei 4.024/61, chamada de Lei de Diretrizes e Bases da Educação, criando o modelo que atualmente regula as leis gerais da educação no Brasil. A LDB tratava, em seu artigo 69, das formas de acesso ao ensino superior. Como o artigo nunca foi regulamentado, ficou mais uma vez a cargo das instituições de ensino superior definir as modalidades de provas, os conteúdos e as formas de seleção.

    Foi quando aumentou o número de estudantes das classes médias que pleiteavam vagas nas universidades como forma de manutenção do status social. Crescia a relação candidato/vaga nos exames, ampliando ainda mais a distância entre ensino médio e superior.

    A pressão de setores das classes médias por mais vagas se traduzia em críticas aos sistemas de avaliação (subjetividade nas provas e nas correções, inadequação das provas orais). A pressão levou às primeiras tentativas de racionalizar e universalizar os processos seletivos.

    Em 1964, professores ligados à Escola de Medicina da USP criaram a Fundação Carlos Chagas. O grupo promoveu uma série de mudanças no vestibular daquela instituição: adoção de provas objetivas, que, por serem facilmente quantificáveis, acelerariam o processo de correção e impediriam as fraudes ou “preferências”; revisão dos programas do vestibular, evitando a precoce especialização do ensino médio, incluindo na área de Saúde conteúdos de Matemática, Língua Estrangeira, História, Geografia, Português e Literatura; e introdução de uma “prova de nível intelectual”, escrita e de caráter argumentativo sobre um tema geral, que deu origem às provas de Redação.

    A revolução proposta por esse novo modelo de avaliação vinha principalmente do caráter científico e matemático da correção. Os cartões de respostas que seriam “lidos” pelos primeiros computadores instalados no Brasil encantavam amplos setores da sociedade e garantiriam a seleção justa dos mais preparados.

    A Reforma Universitária de 1968 estabeleceu o Exame do Vestibular, realizado a partir de um programa mínimo estabelecido pela lei nº 5.540/68 que em seu artigo 21 destacava: “O Concurso Vestibular abrangerá os conhecimentos comuns às diversas formas de educação de 2º Grau, sem ultrapassar este nível de complexidade, para avaliar a formação recebida pelos candidatos e sua aptidão intelectual para estudos superiores”. A reforma foi nitidamente inspirada nas provas da Fundação Carlos Chagas, que estavam rapidamente se tornando um padrão para os exames das diversas instituições de ensino.

    Com a redemocratização na década de 1980, começaram também os questionamentos sobre o vestibular e a exclusão crescente de grandes parcelas da população. Datam desse período as críticas mais contundentes sobre as formas e  os conteúdos das provas. Vários educadores comentavam que as questões objetivas estimulavam apenas a memorização, sem a adoção de um pensamento crítico ou a discussão dos conteúdos.

    Outra conclusão a que rapidamente se chegou foi a da existência de um fosso, criado pela generalização do ensino público para o nível fundamental. Nas décadas de 1960 e 1970, o crescimento exponencial das escolas estaduais foi acompanhado de uma deterioração da qualidade do ensino e da remuneração dos professores. Essa lacuna no ensino de qualidade, capaz de preparar os jovens para enfrentar o vestibular, acabou por fortalecer as instituições privadas de ensino, criando um paradoxo até hoje aparentemente insolúvel: ensino público nas universidades ocupadas majoritariamente por estudantes das escolas privadas, enquanto uma grande maioria de estudantes do sistema público tem dificuldade de acesso ao ensino público superior.

    As críticas às provas objetivas também aumentaram muito durante esse período e, como fruto de algumas dessas pressões, a partir de 1985, universidades como a Unicamp inovaram seus modelos de prova aplicando cada vez mais questões discursivas, tendência que iria se consolidar nos anos seguintes.

    Os últimos 20 anos foram marcados por uma profunda discussão sobre o caráter igualitário do vestibular, e um novo capítulo sobre a educação ganhou espaço: as discussões sobre cotas étnicas ou sociais. O caráter universal, parece, continua sendo uma busca.

    Luiz Fernando Saraiva é professor da Universidade Federal Fluminense e Rita Almico é professora do Colégio de Aplicação da Universidade Federal Fluminense.
     
     
    Saiba Mais - Bibliografia


    FRANCO, Maria Aparecida Ciavatta. “O acesso à universidade: uma questão política e um problema metodológico”. In: Seminários Vestibular Hoje. Brasília: MEC/Sesu, 1987.
    NEVES, Lúcia Maria Bastos P. “Cidadania e participação política na época da Independência do Brasil”. Cad. CEDES [on-line]. 2002, vol.22, nº 58, pp. 47-64.
    ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. “Prescrevendo regras de bem viver: cultura escolar e racionalidade científica”. Cad. CEDES, nov. 2000, vol.20, nº 52, pp.55-73.
    VILLALTA, Luiz Carlos. “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”. In: MELLO e SOUZA, Laura de. História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, vol. 1. pp. 341-342.