Além de poetisa e jornalista, Cecília Meireles (1901-1964) foi uma escritora viajada. As crônicas sobre suas experiências no exterior e no Brasil, publicadas em jornais ao longo dos anos 1950, chegaram a ser editadas em três volumes. O tamanho da obra é compatível com a quantidade de lugares que ela visitou. Cecília passou por vários países europeus – Portugal, Espanha, Itália, França, Bélgica, Holanda, Grécia –, além de Estados Unidos, Uruguai, Argentina, Porto Rico, Peru, México, Israel, Índia e Goa, estado indiano que ainda era uma colônia portuguesa. No Brasil, a poetisa se aventurou principalmente por Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Suas crônicas revelam o contexto histórico em que foram escritas: o mundo do pós-guerra, que vivia grandes transformações na experiência de se viajar. O turismo se populariza, os meios de transporte ganham velocidade, e o efeito mais imediato dessa aceleração é uma “diminuição” das distâncias geográficas. São essas profundas transformações na experiência da viagem que suas crônicas buscam compreender.
A importância dessas excursões para a produção poética é evidente ao longo de toda a sua obra. Não por acaso, o livro que a própria Cecília considerava o marco inicial de sua fase madura chama-se Viagem, e recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras em 1938, tendo sido publicado no ano seguinte em Portugal.
Em seus escritos sobre o tema, Cecília Meireles fez de forma mais ou menos explícita uma oposição entre “viagem” e “turismo”, “viajante” e “turista”. Esses tipos ideais contrastantes têm como elementos centrais uma relação diferenciada com o tempo e a importância das várias formas de convivência que uma e outra experiência trazem. Ela não foi a primeira a apresentar essas oposições: essas ideias aparecem em outros autores e no senso comum. Seus textos, no entanto, são de grande clareza e perspicácia, e cativam pela beleza de suas imagens. Na crônica “Roma, turistas e viajantes”, de 1953, ela define o turista como um ser que caminha feliz pela superfície dos locais que visita, equipado com máquina fotográfica, guia de viagem e um vocabulário limitado, passando de um ponto a outro com notável fluidez. Em contraste, o viajante seria um ser menos feliz, movendo-se vagarosamente por entre locais e coisas, buscando desenvolver com eles uma relação de afeição, apaixonada, por mais que a saiba irrealizável.
A viagem, para Cecília, não é apenas um deslocamento no espaço, mas também no tempo. Esse movimento envolve tanto uma dimensão histórica, que se acumula através dos anos, unindo eventos e personagens do passado e dando densidade à experiência da viagem, como de um tempo “cotidiano”, formado pelos pequenos ciclos e rituais repetitivos da vida. Ambas as dimensões, no entanto, são experimentadas lentamente. Nesse sentido, os viajantes se diferenciam dos turistas porque desejam viajar, e não chegar. Os turistas buscariam a mais rápida mobilidade possível, ansiosos pelo ponto de chegada; velozes e tranquilos, não se desgastariam com a observação do caminho. A paisagem, para eles, é imóvel, estável – e de certa forma, acrescenta Cecília, os próprios turistas o são. Nesse tempo e nesse espaço incolores do visitante apressado que é o turista, cabe perguntar, como ela faz numa crônica em que fala das mudanças de fuso horário: onde ficariam aquelas horas perdidas que eles não vivem?
Essas imagens literárias são desenvolvidas, é bom ressaltar, em um contexto de crescente aceleração dos meios de transporte, principalmente com a transição do navio de passageiros para a aviação comercial como meio principal de viagem. Numa crônica de 1952 sobre o avião, Cecília compara o aeroporto com o cais. Este, lugar de lentas e chorosas despedidas, com lenços que continuam a ser acenados enquanto o navio se afasta, contrasta com o aeroporto, onde tudo se passa de modo mais rápido. O passageiro embarcado no avião, mesmo antes de decolar, já se encontra muito longe.
Mas a diferença que Cecília Meireles aponta é mais profunda que uma mera aceleração dos meios de transporte: trata-se de uma forma diferente daquilo que o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) chamou de “atenção à vida”. Viver num século apressado, com a sensação da passagem vertiginosa do tempo, nos faz pensar no que dele restará no futuro. Numa crônica escrita em 1953, na cidade italiana de Siena, está presente a mesma ideia de urgência da vida que dificulta a vivência e a fruição do presente, pois só ele existe, e abarca o passado e o futuro. Nesse sentido, para Cecília, viajar é uma forma de meditar.
O ritmo específico da viagem também diferencia, em outro sentido, a experiência do viajante da do turista. O viajante está quase sempre só, e é essa solidão que permite que ele mantenha uma conversa infinita consigo mesmo. Sozinho, ele está mais aberto para se encontrar com outras pessoas, mesmo que por pouco tempo. O turista, ao contrário, comprime-se na multidão, em bandos, geralmente levado por guias, que Cecília chama, numa crônica, de pessoas amáveis mas fatigadas, responsáveis por domar e adestrar uma turba numerosa de excursionistas que o seguem, respeitosa e obediente. O viajante, diferentemente, pode estabelecer uma comunicação sentimental com os objetos e os lugares, uma silenciosa conversa da qual resulta a aprendizagem, o bem mais caro da experiência que está sendo apreciada.
Para Cecília, é importante perceber que há na viagem uma sociabilidade específica que traz como resultado – e recompensa maior – o autoconhecimento. É ele que permite encontros profundos, mesmo que fugazes, entre pessoas que não se conheciam. Unem-se, assim, uma forma de se relacionar com o tempo e uma forma de se relacionar com lugares, coisas e pessoas, que são características da viagem. A arte de viajar é, para a autora, uma arte de amar, de admirar; uma emoção constante, nem sempre alegre, porém intensa. Enquanto o viajante assim pode conhecer os outros e, como num espelho, se conhecer mais, o turista conheceria apenas coisas práticas – lugares, preços, dicas –, e sempre acaba por se deter justamente ali onde a vida real está só começando. O contraste do espírito do viajante com a eterna melancolia do turista, fruto da pressa, é, assim, marcante.
Além da experiência vertiginosa da velocidade das viagens e dos bandos de turistas, a mercantilização das viagens e o espírito consumista são como pecados originais do turismo. Cecília se incomoda com a onipresença da mão que aguarda a gorjeta. Para ela, o turista é, a seu modo, um comerciante, que compra avidamente sensações de beleza, desde que revestidas de sensações de conforto.
A valorização do viajante e o desprezo pelo turista são evidentes nos escritos de Cecília Meireles. Na crônica “Quando o viajante se transforma em turista”, de 1953, ela não se furta a descrever, a respeito de uma experiência na Espanha, um momento em que teria perdido a honrosa condição de viajante, decaindo para a degradante categoria de turista. Em outra crônica do mesmo ano, ela assume que, quanto mais viaja, mais se torna antiturística, ao contemplar as hordas de forasteiros que, qual formigueiro humano, invadem a Itália. Porém, se Cecília afirma resistir à condição de turista, ela não nega que, em alguma medida, acaba assumindo essa condição.
Já ao falar do turismo no Brasil, por exemplo, Cecília defende os visitantes apressados. Eles seriam desajeitados, porém bem-intencionados, desejando entrar em contato com a terra e o povo e aqui deixando seu dinheiro – motivos pelos quais mereceriam ser bem tratados.
Ao escrever dezenas de crônicas sobre o tema, Cecília Meireles registrou, vivenciando-o, um contexto de grande transformação na experiência de se viajar, e de popularização do turismo de massas. Mais que isso, ao contrastar de forma tão clara e poética os dois tipos, legou-nos uma sutil percepção de elementos que até hoje estão presentes no cerne da experiência turística.
Celso Castroé professor da Fundação Getulio Vargas e autor de “A natureza turística do Rio de Janeiro”. In: Turismo e identidade local: uma visão antropológica (Papirus, 2001).
Saiba Mais - Bibliografia
MEIRELES, Cecília.Crônicas de viagem.3 vols. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998-1999.
Uma viagem pelas crônicas
Celso Castro