- A crônica colonial sempre reserva surpresas. Afinal, cronistas deixaram indícios preciosos sobre formas cotidianas de existência que já não nos são facilmente acessíveis. Foi assim que tentei justificar meu espanto quando encontrei urubus aparecendo na documentação. Já adivinho sorrisos cúmplices dos colegas. Às vezes, tais achados, de tão incomuns, não têm lugar nos textos acadêmicos e acabam tornando-se “histórias da tese”. Esta é uma das minhas.Antes, um mea culpa: tenho uma dívida com os urubus. Nos lavrados de Roraima, onde cresci, era minha a tarefa de manter a carne de sol feita por meu pai a salvo da astúcia esfomeada daquelas aves de rapina. Fazia isso desajeitadamente com um rifle 22. Confesso que matei alguns em defesa do almoço da família. Espero que o motivo me redima.Estou quase certa: foi meu passado que me fez prestar atenção no fato de que, no século XIX, os códigos de postura de Manaus eram duros com os matadores de urubus – 5 mil réis de multa ou um dia de prisão. Está no código de 1893, em plena belle époque.Escapei por pouco, mas fui achando urubus por todo lado. No século XIX, o espanto dos viajantes com seu número já era digno de nota. As gravuras de Auguste François Biard, francês que esteve em Manaus entre 1858 e 1860, são eloquentes. Biard explica o motivo da proteção do animal pelas autoridades: os urubus limpavam a cidade “sempre atulhada de ciscos”, ou seja, prestavam um serviço de utilidade pública.Encontrei algo semelhante em Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, escrito pelo padre João Daniel em meados do século XVIII. O jesuíta registrou as três espécies de urubus que conheceu. Falava de sua enorme serventia por comerem as carnes putrefatas. Afirmava que, se não existissem, certamente se “levantaria alguma peste”, tamanha a quantidade de carniça em certos lugares. Não bastasse o fato de pouparem a república dos gastos com limpadores e varredores, o jesuíta dizia que as penas eram ótimas para escrever, sendo que as do urubutinga serviam também contra febres e venenos.Há muito mais sobre eles nas cerâmicas paleoindígenas e na tradição oral dos povos amazônicos. Não fui tão longe. No nosso tempo, os urubus são um problema para a segurança da aviação na Amazônia. Atraídas pelos depósitos de lixo com tratamento inadequado nos arredores das pistas de pouso, as aves já causaram muitos episódios de colisões com aeronaves.Não resisti a fazer uma analogia entre os urubus e o “ogro da lenda”, como definiu Marc Bloch: os historiadores são atraídos pelo cheiro da carne humana. Neste caso, pelos dejetos humanos, que podem falar muito sobre nossas formas de existir. Será que ponho fim a meu carma se considerar os urubus uma chave para penetrar nesse país estrangeiro que é o passado?Patricia Sampaio é professora da Universidade Federal do Amazonas.
Urubu é rei
Patricia Sampaio