Vendendo o peixe

Luis Fernando Cerri

  • "Eu devia agradecer ao Senhor/ Por ter tido sucesso na vida como artista / Eu devia estar feliz porque / consegui comprar um Corcel 73..." Assim cantava Raul Seixas no lançamento de "Ouro de Tolo". A crítica desiludida ao modo de vida assumido pela maior parte da classe média brasileira daquele momento permanece atual: mais que naquela época, estamos submetidos a fortes apelos de felicidade comprável em prestações e anunciada pela propaganda nos jornais, no rádio, nos outdoors, na TV.

    Se é verdade que o capitalismo não inventou a propaganda, também é preciso reconhecer que ele não pode viver sem ela. Hoje as agências publicitárias são parte imprescindível do ciclo de produção das sociedades de massa. A propaganda envolve bilhões de dólares, promove a continuidade do consumo elevado dos mais favorecidos, enfim, difunde comportamentos e valores que tornam possível a continuação do modo de vida globalizado dos "incluídos".  Por essas características, é possível pensar a propaganda e seus suportes (impresso, som, audiovisual, hipertexto etc.) como recursos para o estudo dos conteúdos históricos usados nas mensagens publicitárias, assim como recursos para o ensino de História. Aliás, é urgente trabalhar este aspecto da vida em sala de aula: os Parâmetros Curriculares Nacionais reconhecem o desafio de se educar o consumidor desde a escola, e várias organizações da sociedade civil apontam o consumo consciente e solidário como forma de pressão por mudanças sociais e ambientais.

    O que dá riqueza às peças publicitárias como documentos históricos para uso científico ou didático é o objetivo para o qual são produzidas: vender produtos, idéias e instituições para o público consumidor. Tanto faz se estamos falando em peças comerciais ou institucionais e políticas: as características se confundem, principalmente dentro da idéia de que "o pessoal é político e o político é pessoal". A mensagem publicitária se dirige ao conjunto de imagens, símbolos, desejos e medos que, embora variem um pouco de pessoa para pessoa, constituem um padrão cultural de cada sociedade, chamado de imaginário pelos estudiosos das ciências humanas. Esse imaginário não é estático, e sim reorganizado conforme as necessidades e características de cada momento histórico. Ele inclui desde referências a práticas ancestrais – símbolos antigos como os do cristianismo, por exemplo – até as idéias e imagens decorrentes das recentes disputas pelo poder.

  • O período do “milagre econômico brasileiro” (1969-1973) é um laboratório interessante para o estudo do imaginário através da publicidade. Caracteriza-se por um regime político autoritário, dotado, por um lado, de uma grande capacidade de controle dos recursos políticos e de comunicação e, por outro, de uma necessidade de legitimação constante no país, especialmente por ter surgido de um golpe de estado e valer-se de medidas de força para governar. Durante o “milagre”, essa legitimação é facilitada por um desenvolvimento econômico sem precedentes e por fatores de orgulho pátrio, como a conquista da Copa do Mundo de 1970. É um tempo de ufanismo. Vive-se num círculo de idéias positivas sobre a brasilidade em que um fator positivo alimenta o outro, mantendo o clima de otimismo que é sustentado pela propaganda.

    Sob a ditadura militar, a propaganda política assume uma forma mista. Por um lado, o regime detém instrumentos próprios, mobilizados de forma centralizada pela Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República, responsável por peças ainda hoje lembradas, como a canção “Este é um país que vai pra frente...” ou os comerciais de fim de ano com o tema "Este ano, quero paz no meu coração...". Por outro lado, o regime conseguiu a colaboração de empresas privadas, tanto por eventuais favorecimentos quanto por adesão ideológica, ou mesmo por necessidade de repercutir o clima social de euforia do momento, aproveitando-o para seduzir o público.

    Ao enfocarmos aquelas peças que se referem ou recorrem à nação, ao governo, à história nacional, podemos identificar algumas características comuns. O “Brasil” aparece como um dos grandes temas. Retomando uma tradição que vem desde o período colonial, o “Brasil” é louvado por suas características naturais e históricas, mas com uma particularidade: ao observador daquele momento parecia que finalmente o futuro tinha chegado, que todas a possibilidades do país encontravam sua realização. O “Brasil” é apresentado como um gigante, mas esse gigante não é representado visualmente. O apelo ao gigante Brasil encontrou eco também nas opções das políticas públicas, visivelmente marcadas pela necessidade de alimentar o ciclo do otimismo e da grandeza nacionais. Obras como a rodovia Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, decisões como a extensão do mar territorial para 200 milhas e, posteriormente, a construção das usinas de Itaipu e de Angra são a outra face do clima de então. De certa forma, essas ações têm um componente propagandístico inegável. Ao criar fatos políticos, o regime gerava uma matéria-prima importante para as peças publicitárias.

  • Uma outra face desse tipo de propaganda na época é o apelo à paz social e ao trabalho. Sem citar a oposição armada à ditadura, as peças governamentais e privadas apontam o trabalho duro como responsabilidade de todos, a passividade e o consentimento patriótico de cada um ao regime, e o direito ao consumo e à paz como recompensa. O alheamento político e o consumo são, no fundo, os maiores apelos dessa propaganda ao imaginário da classe média, o que recebe grande acolhida.

    Para o ensino de História, o uso de peças publicitárias como fonte histórica beneficia-se de um método razoavelmente simples de análise da linguagem publicitária, baseado nos estudos do escritor francês Roland Barthes. Para ele, a mensagem publicitária pode ser dividida em três mensagens concomitantes: a mensagem denotativa (que consiste na transmissão dos códigos em si, textuais, visuais, sonoros, e sua compreensão simples, ou seja, saber do que se trata), a mensagem conotativa (que se refere ao que a mensagem “quer dizer”, e aí mobilizam-se os fatores que o público usará para interpretar o sentido) e, por fim, a mensagem referencial (ou seja, o sujeito – empresa, pessoa, instituição – que se beneficia da aceitação da mensagem, o “vendedor” do produto ou idéia). Um bom conhecimento do contexto no qual a peça chegou ao público pode ser fornecido pelo professor, pelo material didático ou pela pesquisa dos alunos. Associado a isso, o trabalho de reconhecer esses níveis da mensagem publicitária torna-se capaz de contribuir para a compreensão e interpretação de quaisquer peças publicitárias e, sobretudo, do período da comunicação de massas, em que a propaganda se desenvolve de forma espetacular. A análise da publicidade permite, por exemplo, trabalhar com os imaginários coletivos, dado importante da compreensão histórica, que nem sempre é facilmente apreendido.

    Outra clara vantagem desse estudo é a reflexão sobre os sujeitos históricos, latente na descoberta e análise da mensagem referencial, que pode contribuir para o aperfeiçoamento dessa noção central, tanto para o conhecimento da história quanto para o exercício da cidadania.

  • O trabalho com publicidade pode levar os alunos a entender porque aquelas mensagens eram atraentes, qual era a “graça” que tinham para as pessoas da época. Eles poderão reconhecer o valor relativo da moda e dos padrões de beleza, e também entender os significados do consumo e do consumismo. Poderão, ainda, perceber que os grupos de afinidades – as chamadas “tribos” ou “galeras” – muitas vezes não se formam espontaneamente, mas sim para executar rituais de consumo que interessam mais às empresas do que às pessoas envolvidas. Com tudo isso, os alunos estarão capacitados para construir recursos de autodefesa contra a propaganda e usar da prerrogativa de consumidor consciente para subvertê-la e dirigi-la a favor dos seus interesses e de sua consciência.

    Luis Fernando Cerri é professor do curso de História e do mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa e organizador da coletânea O ensino de História e a ditadura militar, Editora Aos 4 Ventos, 2003.