Por todo o país, paredes e tetos de estabelecimentos comerciais, teatros, clubes e casas particulares de pessoas abastadas se cobriram com fina camada de fantasias multicoloridas. A imaginação dos espectadores perambulava por espaços e tempos completamente diferentes daqueles delimitados pelos interiores arquitetônicos que os abrigavam.A difusão e a valorização das pinturasdecorativas, mais notadas em espaços públicos, são a demonstração de um dos fenômenos mais impressionantes da arte brasileira do período conhecido como Primeira República (1889-1930).
No Brasil, esse fenômeno acompanha o boom dos trabalhos decorativos em outros países das Américas e, principalmente, da Europa, ocorrido a partir do século XIX. O verdadeiro surto na produção desse gênero de pintura que o primeiro período republicano conheceu foi consequência, em boa medida, dos esforços para tornar visíveis, em imagens, noções abstratas como “República”, “pátria”, “unidadeterritorial” ou “orgulhocívico”. Imagens nas quais um novo Brasil, que deixava para trás o passado monárquico, podia se reconhecer. Isso fica claro na parcela mais espetacular das pinturas decorativas realizadas neste período, aquela concebida para prédios públicos, muito especialmente para os que abrigavam funções político-administrativas. Nesses locais, o culto das virtudes republicanas se materializou em obras impregnadas de narrativas sobre o processo histórico de formação da nação, seus mitos de origem e seus heróis venerados.
Na cidade do Rio de Janeiro, capital federal na época, um dos mais importantes conjuntos decorativos que ilustram essa tendência reveste as paredes e os tetos do Palácio Tiradentes, sede do Poder Legislativo, erguido na década de 1920, nas vizinhanças da Praça Quinze de Novembro, e que hoje abriga a Alerj – Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Esse edifício monumental teve sua pedra inaugural assentada em 19 de junho de 1922, em cerimônia conduzida pelo então presidente Epitácio Pessoa (1865-1942). Sua construção fazia parte do processo de modernização da paisagem urbana carioca, iniciado às vésperas das comemorações do centenário da Independência, capitaneado pelo prefeito Carlos Sampaio (1861-1930). Na esteira de outros prefeitos engenheiros como Pereira Passos (1836-1913) e Paulo de Frontin (1860-1933), Sampaio marcou sua administração com ações reformadoras de enorme envergadura, sendo o desmonte do Morro do Castelo a mais polêmica e lembrada até hoje.
A construção do Palácio Tiradentes atendeu às demandas da Câmara dos Deputados, que não tinha sede própria desde meados dos anos 1910. O local escolhido era o mesmo da Câmara Municipal e da CadeiaVelha, construção colonial farta em simbologia: nesse prédio, os inconfidentes de Minas Gerais aguardaram a leitura da sentença de sua condenação; dali partiu para a forca Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), que seria glorificado como patrono do novo edifício, como prova a gigantesca estátua na entrada, esculpida por Francisco de Andrade (1893-1953). Além disso, a Cadeia Velha guardava longa tradição cívica e legislativa desde os primeiros anos do Império: ali foi instalada a Assembleia Geral Constituinte Brasileira e, em 1826, o Congresso Legislativo do Brasil. O próprio sítio onde o Palácio Tiradentes foi construído evocava, portanto, a continuidade na vida parlamentar brasileira.
Os mais prestigiados artistas brasileiros da Primeira República trabalharam nas obras. No plano arquitetônico geral do prédio, concebido por Archimedes Memória (1893-1960), nas suas decorações pintadas e esculpidas, e mesmo nos seus detalhes ornamentais, é possível “ler”, por meio das imagens, um discurso bastante representativo das concepções políticas e ideológicas que então vigoravam oficialmente. Segundo o historiador Carlos Eduardo Sarmento, esse discurso visual relata o percurso histórico da nação brasileira, destacando o papel do Poder Legislativo no processo de unificação e desenvolvimento da pátria.
Alguns painéis que o Palácio Tiradentes abriga são prova dessa concepção, como as telas “Oprimeirocapítulodenossahistóriaparlamentar: Aparticipaçãodosdeputadosbrasileirosnascortesconstitucionaisportuguesas”, pintada por Fiúza Guimarães (1868-1949), ou “Osconstituintesde1891noantigoPaçodaQuintadaBoaVista”, quadro de Eliseu Visconti (1866-1944), no recinto do Plenário, sobre a Mesa Diretora. Digna ainda de destaque é a famosa tela de Francisco Aurélio de Figueiredo (1856-1916) “O primeirocapítulodahistóriapátria: AcartadePeroVazdeCaminha”, na qual o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral está lendo, para pequena e atenta plateia, o documento que firma a posse das terras brasileiras.
No espaço do Plenário, peça central e verdadeiro pivô simbólico de todo o Palácio Tiradentes, destacam-se as decorações que ornamentam a imponente cúpula, feitas entre 1925 e 1926 pelo pintor Rodolpho Chambelland (1879-1967), auxiliado por seu irmão Carlos Chambelland (1884-1950). São oito imensas pinturas que, em certa medida, podem também ser compreendidas como tentativas de representar a unidade brasileira fundada em raízes legislativas. A escolha da linha de interpretação da História do Brasil e dos momentos a serem representados nos painéis teria recaído sobre o prestigiado Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e então diretor do Museu Paulista, que propôs o tema dos painéis – “OspontoscardeaisdaHistóriadoBrasil”.
Dispostos literalmente como uma bússola em volta de um vitral que representa o céu do Rio de Janeiro em 15 de novembro de 1889, dia da Proclamação da República, as pinturas da cúpula do Plenário estão divididas em duas linhas temáticas distintas que dialogam entre si, compondo uma visão panorâmica do passado brasileiro. Assim, os quatro painéis mais largos contam a evolução política do país – “Acatequese”, “O GovernoGeral”, “AMonarquia” e, exatamente sobre a Mesa Diretora, “ARepública” –, alternando-se com outros quatro painéis mais estreitos, que se referem ao processo de formação territorial do Brasil – “CabralchegandoaoNovoMundo”, “Alutapelaexpulsãodosinvasoresestrangeiros”, “As bandeiras” e “OBarãodoRioBrancodefinindooslimitesterritoriais”.
Em todos esses painéis, os retratos dos heróis nacionais estão localizados na parte inferior da composição e apresentam uma relativa definição em suas formas; à medida que se aproximam da parte superior, as pinturas se tornam progressivamente mais diáfanas e se desvanecem, a ponto de as figuras que nelas aparecem serem quase indistinguíveis. Em termos de colorido, predomina o uso de tons neutros e um certo branqueamento da paleta, características que favorecem a integração visual das pinturas na superfície de cantaria nua que compõe a cúpula e, ao mesmo tempo, remetem ao aspecto da tradicional técnica da pintura afresco, tida então como uma referência importante para a estética dos trabalhos decorativos.
Em outros conjuntos de pinturas do Palácio Tiradentes, os personagens históricos estão ausentes, e o domínio da alegoria é total. É o caso dos cinco painéis executados por João Timótheo da Costa (1879-1932) para o teto abobadado do SalãodeHonra: no centro desse conjunto, encontra-se uma enorme representação da própria República, como uma mulher portando o barrete frígio, alegoria derivada da iconografia inaugurada com a Revolução Francesa. Figuras alegóricas também dominam as pinturas que decoram a chamada SaladoCafé, espaço concebido para o convívio informal dos deputados e onde se encontram 16 painéis, de autoria de outro destacado artista da Primeira República, Carlos Oswald (1882-1971), que exibem dizeres como “Odespertardaraça”, “AuniãodosEstados”, “Otrabalho, sementeiradofuturo”, e que apresentam uma visão épica e vigorosa da nação. Esses painéis são marcados por fortes contrastes de claro-escuro, e as figuras enérgicas que neles se exibem podem ser vistas como antecipações dos tipos brasileiros heroicos encontrados em importantes trabalhos decorativos posteriores, como nos painéis dos Ciclos Econômicos feitos por Candido Portinari (1903-1962) para o prédio do antigo Ministério da Educação, também no Centro do Rio de Janeiro.
Apesar de realizadas em um momento de mudanças na História do Brasil, pouco antes das convulsões políticas que culminariam na chamada Revolução de 1930, as pinturas decorativas do Palácio Tiradentes são o auge de um esforço estético de exaltação cívica que atravessou toda a Primeira República. Sua mensagem ecoa até hoje, na muda eloquência de suas formas. Basta encarar as paredes para ouvi-la.
Arthur Gomes Valle é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e co-organizador de Oitocentos – Arte Brasileira do Império à República, tomo 2. (EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010)
Saiba Mais - Bibliografia
BELOCH, Israel; FAGUNDES, Laura Reis (coord.); SARMENTO, Carlos Eduardo (texto). Palácio Tiradentes: 70 anos de história. Rio de Janeiro: Memória do Brasil, 1996.
LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988.
SALGUEIRO, Valéria. “A arte de construir a nação – pintura de história e a Primeira República”, Estudos Históricos, Arte e História, nº 30, 2002.
Viajando nas paredes
Arthur Valle