As alternâncias e as inconsistências da democracia em terras latino-americanas preencheram longas páginas no decorrer dos quase dois séculos de independência desse heterogêneo conjunto de nações. A célebre frase de Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”, ilustra com maestria uma grande e influente linha de interpretação dos caminhos para a modernidade ao sul do continente.
As formas de fazer política das nações situadas ao norte do Atlântico seriam o principal motivo de grande parte das mazelas da América Latina. Autoritarismo, caudilhismo, clientelismo, personalismo – entre outros conceitos utilizados para explicar os problemas da região – seriam todos sintomas de uma síndrome da ausência de formas políticas típicas de certo padrão de desenvolvimento.
A busca pelas origens dessa ausência nos leva às nações responsáveis pela colonização dos países da América Latina. A culpa ficaria por conta das raízes ibéricas, agravadas, no caso brasileiro, pela transposição do Estado português no início do século XIX, com a vinda da família real. O cenário apresentado, em que um Estado forte se imporia sobre uma sociedade civil desfibrada, é motivo de uma conclusão problemática. Desconheceria fenômenos importantes da modernidade do Atlântico norte, como a organização social a partir dos interesses individuais, reforçados pela ideia central de mercado. Segundo o jurista Raymundo Faoro (1925-2003), o capitalismo brasileiro é “politicamente orientado” por um enorme aparato estatal, com as classes no papel de coadjuvantes – uma configuração completamente diferente dos casos americano e inglês.
A trajetória política da Península Ibérica ao longo de grande parte do século XX dá ainda mais força à ideia de que faltam aos latinos elementos fundamentais do desenvolvimento e da modernidade. Portugal e Espanha tiveram as mais longevas experiências autoritárias da Europa, sem qualquer tipo de instituição democrática durante 48 anos em terras lusas e 39 anos em solo espanhol. Em que pesem suas significativas diferenças, os dois regimes se relacionam com certa visão da América Latina por seu forte tom personalista, como bem demonstra a impressionante permanência de Antônio Salazar e Francisco Franco no poder.
O contexto global da emergência das ditaduras ibéricas era de extrema radicalização, com forte conflito entre um ascendente comunismo e ideários antidemocráticos, como o nazismo e o fascismo, enquanto o liberalismo vivia época de desprestígio. As visões de mundo que dariam o tom das próximas décadas se enfrentaram antes lá. Além das usuais características de regimes de exceção, como perseguição de adversários e a censura à imprensa, os governos construíam suas legitimidades a partir da uma tradição ibérica anterior, que negava tanto as ideias e instituições do capitalismo liberal quanto as comunistas, mesmo que uma aproximação pragmática com os Estados Unidos surgisse em alguns momentos.
As ditaduras latino-americanas surgem, por sua vez, em contexto e com imaginários distintos. O mundo vive o auge da Guerra Fria, sobretudo após a Revolução Cubana, de 1959. A participação americana na instauração e na manutenção das ditaduras do Cone Sul é fundamental. O objetivo maior é alcançar o "moderno" através da sua ampla inserção na ordem capitalista mundial, com os embates políticos passando pelas disputas sobre o modo como se irá conduzir esse processo. O anticomunismo os aproxima da experiência da Península Ibérica, mas o comunismo a ser combatido não é o mesmo. O mundo é muito distinto após a Segunda Guerra. Os continentes e os regimes se aproximam, contudo, na hora das transições. A semelhança, especialmente entre América Latina e Espanha, é grande, pela vitória de um modelo de transição negociada, em que o velho ainda teve voz forte no surgimento do novo.
Haveria então, de fato, alguma tendência não democrática na cultura política ibérica que chegou ao Brasil? A questão passa pelos difíceis limites da democracia, seja como ideia ou como prática política, e também pelos vínculos entre a sociedade e as instituições políticas. As reflexões sobre o “acesso ao moderno” no Brasil baseiam-se em leituras de Max Weber (1864-1920), já presente na ensaística dos anos 1930 através da prosa de Sergio Buarque e de uma série de outros autores, como o alemão Karl Marx (1818-1883), o russo Vladimir Lênin (1870-1924), ou o americano Barrington Moore (1913-2005). Como argumento de interseção, o esforço de explicar “o atraso”, que assume diversos nomes e formas. Um exemplo foi o golpe civil-militar de 1964, inesperado para a quase totalidade das esquerdas. Ao longo da década de 1970, uma série de autores relevantes – como Florestan Fernandes, Otávio Velho, Elisa Reis e Maria Sylvia de Carvalho Franco – chega a diferentes respostas sobre os motivos da recorrência de solução autoritárias e golpistas na trajetória brasileira.
As conclusões dessas pesquisas apontam para a existência de múltiplas modernidades, irredutíveis em sua pluralidade de trajetórias históricas a um modelo único – como pressupunham as filosofias da História do século XIX e algumas sociologias da segunda metade do século XX. Não significa que esses autores tenham defendido a absoluta particularidade de cada trajetória nacional, mas sim que abriram possibilidades de identificação dos percursos comuns, compreendidos como padrões de desenvolvimento nacional. Um bom exemplo desse exercício é ver a categoria “modernização conservadora” caracterizando realidades tão diversas como a Alemanha e o Brasil: ambas marcadas por um processo de desenvolvimento que não conheceu grandes rupturas sociais e foi dominado por uma aliança entre a aristocracia rural e uma burguesia fraca.
O fato é que não há uma única avaliação sobre a história latino-americana ou ibérica. O historiador americano Richard Morse, em seu livro O espelho de Próspero (1982), propõe que, apesar das mazelas e dos problemas da história ibérica, jazem aqui contribuições intelectuais e culturais nas quais é possível encontrar alternativas aos limites com os quais a modernidade central cada vez mais se depara. A ausência do predomínio do interesse individual, a construir com uma racionalidade utilitária os laços e as instituições sociais, não seria um problema, mas uma virtude: permitiu que na América Latina emergissem formas políticas e culturais que valorizam o comum e outros tipos de interação humana, para além do mero cálculo de vantagens. A Ibéria tem os seus problemas, assim como o Ocidente hegemônico, mas as bases culturais e valorativas sobre as quais ela se erige permitem vislumbrar um horizonte mais afortunado do que no seu espelho do norte. A cultura de valorização do público e do comunitário – marca dessa formação – fornece, por exemplo, interessante resposta aos problemas produzidos por uma organização social construída sobre valores individualistas e egoístas.
Esse tipo de formulação oferece o evidente risco de usos conservadores e conformistas. É inegável que as experiências históricas latino-americanas produziram sociedades com alarmante grau de desigualdade social, que vivenciam dinâmicas extremamente violentas e presenciaram, por inúmeras vezes, a vigência de regimes autoritários, com todas as suas lamentáveis consequências. Todo esse acúmulo de mazelas não pode se resumir a assertivas ou negativas simples, ou a pressupor uma posição extrema e radical. As críticas não significam a negação das virtudes produzidas, assim como o reconhecimento de vantagens da nossa tradição não implica qualquer ufanismo míope. Reflexões como a de Morse têm o mérito de problematizar a saída simples do elogio e da imitação do centro – como se este não fosse assolado por problemas e limites, seja no campo institucional ou intelectual. Quando o artista uruguaio Torres-Garcia afirma que “nosso norte é o sul”, não elogia o existente, apenas defende certo modo de compreendê-lo.
Quando o assunto é democracia, este tipo de consideração ajuda a lembrar que o termo não tem um sentido único, ou seja, não é sinônimo da internacionalização do liberalismo de mercado. Apesar de atualmente contar com uma aura de eternidade, esta versão recua apenas até o pós-1945, sendo raras as democracias representativas no início do século XX.
A pergunta mais eloquente talvez seja: Qual democracia? Ela não é formulada como modo de camuflar regimes autoritários, mas reflete o nosso acúmulo de experiências históricas, servindo de bússola para a construção de uma ordem latino-americana que já tem suas conquistas, mas ainda vê uma longa estrada para caminhar.
Jorge Chaloub é professor da FGV-CPDOC e autor do artigo “Dois liberalismos na UDN: Afonso Arinos e Lacerda entre o consenso e o conflito”. Revista Estudos Políticos, n. 6 (UFRJ, 2013).Saiba mais - Bibliografia
RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
WISNIK, José Miguel. Machado Maxixe: o caso Pestana. São Paulo: Publifolha, 2008
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Jorge Chaloub