Vício solitário

Joaquim Tavares da Conceição

  • Quando se apagam as luzes do dormitório, um jovem regente, responsável por vigiar os outros estudantes, toma sua posição estratégica. Enquanto finge dormir, observa atentamente as atitudes do suspeito, numa cama próxima. Algum tempo depois, começam os movimentos característicos e a respiração “frequente e suspirosa”. Está armado o flagrante. Silenciosamente, o regente levanta-se, aproxima-se da cama e surpreende o estudante no meio da manobra. Dá início, então, ao escândalo. Os pensionistas acordam sobressaltados e, sentados em seus leitos, testemunham o sermão público contra aquelas “imundas práticas”. “Confuso e envergonhado, o delinquente agradece os bons conselhos” e promete deixar para trás a masturbação. 
     
    A cena aconteceu no Seminário de Diamantina, provavelmente no início de 1860, em Minas Gerais, e foi usada como exemplo pelo médico João da Matta Machado em 1875. Ele ensinava que, se houvesse fortes suspeitas de masturbação contra um interno de colégio, deveria ser provocada a “confissão do delito” ou a acusação direta. E se esses meios se mostrassem ineficazes, não se poderia hesitar em utilizar o recurso extremo de surpreender o colegial em “flagrante delito” e expô-lo ao escárnio dos colegas.  
     
    A prática do onanismo entre alunos de internatos era uma preocupação e objeto de estudo de muitos médicos no século XIX. Para eles, a vida reclusa contribuía para propagar e agravar a prática das “manobras secretas” entre os meninos e as meninas. Para reprimir o “terrível inimigo” entre os colegiais, os médicos indicavam um conjunto de “regras higiênicas” direcionado aos diretores dos colégios, aos professores e às famílias.
     
    Gravura de um dos contos do “Decamerão”, de Boccaccio. O controle do corpo era uma das abrangências do poder eclesiástico na Idade Média. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Na tese A libertinagem e seus perigos relativamente ao físico e moral do homem, publicada em 1853, o médico Marinonio de Freitas Britto registrou que a masturbação estava muito difundida entre os meninos e os moços na cidade de Salvador. Segundo ele, os indivíduos afeitos à masturbação alegavam que esta era uma forma de saciar seus prazeres sexuais sem o perigo de contraírem a sífilis. No mesmo ano, o dr. Sulpício Germiniano Barroso também alertou para a prática generalizada e de efeitos assustadores que muitas vezes requeriam intervenção médica. “A julgar pela minha própria experiência, em dez masturbadores em quem a saúde se alterou imediata ou consecutivamente pode-se contar nove que se perderam no colégio ou em um internato”, reforçou em 1858 o dr. Antenor Augusto Ribeiro Guimarães. No Rio de Janeiro, João da Matta Machado dizia-se espantado, em 1875, com o desleixo dos educadores diante das “manobras secretas” entre colegiais.
     
    Diante desse que foi considerado um problema de saúde pública, a medicina tentava fazer a sua parte. “Regras higiênicas” eram indicadas para extinguir ou prevenir o aparecimento da masturbação nos internatos. O receituário do dr. José Bonifácio Caldeira de Andrada Junior, por exemplo, recomendava: não aceitar no internato adolescente de costumes e hábitos suspeitos; proibir a leitura de livros eróticos e as conversas levianas; dividir os dormitórios de acordo com as idades (pequenos, médios e grandes); proibir o diálogo muito livre entre os alunos internos e os externos; prevenir o aparecimento precoce da sensualidade por meio de exercícios físicos; abolir alimentos excitantes; repreender ou expulsar do colégio o masturbador, segundo a gravidade do “crime”; e medicar os que necessitarem de cuidados médicos. 
     
    Era imperativo identificar os estudantes masturbadores a fim de reprimir, evitar o “contágio” e as consequências do “vício execrando”. A “campanha antimasturbatória” era fundamentada na moral religiosa e reproduzia ensinamentos contidos em obras de médicos europeus, como o famoso tratado Do onanismo ou das doenças decorrentes da masturbação, escrito em 1758 pelo suíço Samuel Tissot. Este tipo de literatura denunciava o prazer solitário como capaz de provocar “não apenas as piores doenças, mas também as piores deformidades do corpo e, por fim, as piores monstruosidades do comportamento”, nas palavras do filósofo Michel Foucault (1926-1984). 
     
    Influenciados por esses argumentos, os médicos brasileiros listavam uma série de danos decorrentes da prática da masturbação. Mencionavam, entre outros, a magreza, a palidez, o encovamento dos olhos, salivações abundantes, vômitos, estatura diminuída e curvada para diante. Em relação ao comportamento, os onanistas tornavam-se tímidos, melancólicos, indolentes, buscando sempre o isolamento. No intelecto, o vício ocasionaria a completa estupidez e idiotismo, resultando na incapacidade para o exercício de qualquer atividade ou profissão que exigisse a mínima concentração.
     
    O opróbrio (vergonha pública) completava o quadro deplorável pintado pelos médicos, como descrito de forma dramática na tese Generalidades acerca da educação física dos meninos (1846), de autoria do dr. Joaquim Pedro de Mello: “Os indivíduos, que têm a infelicidade de se lançarem a tão torpe vício (...) trazem em seu semblante, em todo o seu corpo, e tão bem em sua inteligência estampada a ignominiosa marca, que a todos denuncia a sua lastimável paixão”. 
     
    Gravura de Jules-Adolphe mostra certa repulsa pela prática fortemente reprimida até meados do século XX. (Imagem: Reprodução)Drasticamente, os médicos também consideravam a masturbação como capaz de causar ou contribuir para o aparecimento de doenças como a tuberculose e a epilepsia. “Abusos de toda espécie, os excessos venéreos, a masturbação e a sífilis são causa de tísica pulmonar”, afirmou o dr. Candido Teixeira de Azeredo Coutinho em tese defendida no Rio de Janeiro em 1857. Da mesma forma, Miguel Antonio Heredia de Sá, em Algumas reflexões sobre a cópula, onanismo e a prostituição do Rio de Janeiro (1845), procurou explicar como se dava a manifestação da tuberculose nos indivíduos que buscavam o prazer sozinhos: as pessoas “dadas desde a tenra infância à masturbação têm o tórax acanhado e incompletamente desenvolvido, contém quase sempre, ou sempre, catarros crônicos, e afecções mais ou menos profundas do órgão pulmonar, que repetindo-se termina na tísica”.
     
    Na tese, o dr. Heredia de Sá registra o caso de um menino epilético e já idiota pelos efeitos do onanismo. Internado no Hospital da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, o rapaz apresentava na expressão da face “o vício e o padecer; teria ao muito doze anos; seu corpo era franzino e atrofiado, mas os órgãos genitais eram prodigiosos e tão completamente desenvolvidos como se fossem de um homem”. O dr. Sulpício Germiniano Barroso, por sua vez, estava certo de que a epilepsia era uma afecção nervosa que, apesar de ter também outras causas, manifestava-se nos indivíduos apegados à masturbação. Para ilustrar, o médico descreve o caso de um rapaz que se entregou ao vício e acabou contraindo a doença: “todas as vezes que tinha poluções era acometido imediatamente do ataque, e a mesma coisa sucedia quando se masturbava: os acessos foram repetindo-se com tal intensidade que o indivíduo morreu em um deles”.
     
    A chegada do século XX não fez desaparecer o alardeio repressivo contra a prática da masturbação entre internos de colégios. Em 1927, a médica Ítala Silva de Oliveira, em sua tese Da sexualidade e da educação sexual, alertou para a proliferação do vício que, segundo ela, campeava na penumbra dos dormitórios dos internatos. Mas na mesma época já havia médicos que se afastavam da tese dominante, que condenava a prática da masturbação, também agora influenciados pelas novas correntes de estudo europeias. O dr. Oscar Bastos Rabello, por exemplo, lembrou em sua tese de 1920 que o médico suíço Auguste Henri Forel (1848-1931) não via mal na prática. Se espaçada, higiênica e moderada, não havia qualquer base na medicina para condenar a masturbação. 
     
    Nos internatos, dali para frente, a perseguição ao onanismo seria fundamentalmente religiosa. 
     
    Joaquim Tavares da Conceição é professor da Universidade Federal de Sergipe (Colégio de Aplicação e Programa de Pós-Graduação em Educação), autor da tese “Internar para educar. Colégios-internatos no Brasil (1840-1950)”, (UFBA, 2012).
     
    Saiba Mais
     
    COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004.
    GONDRA, José Gonçalves. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004.
    FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
    LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.