- Uma característica peculiar da ditadura uruguaia foi que o próprio presidente da República, Juan María Bordaberry, promoveu o golpe, em 1973, dissolvendo as Câmaras com o apoio das forças militares e policiais. Três anos depois, seriam os militares a se desfazer de Bordaberry, passando a basear toda a sua ação em uma lógica fervorosamente anticomunista.Mas a grande questão em aberto, em relação à ditadura civil-militar que até 1985 perseguiu, torturou e encarcerou milhares de cidadãos, deixando cerca de 200 desaparecidos, é entender por que a democracia tornou-se inviável em um país tradicionalmente democrático. Até que ponto acontecimentos externos que mobilizavam a região influenciaram o processo político uruguaio? Quanto incidiu a escalada ideológica da Guerra Fria no estabelecimento do terrorismo de Estado como instrumento de eliminação dos dissidentes?O arquivo da Inteligência Política uruguaia ajuda a iluminar aquele contexto. Trata-se de um repositório único em seu gênero, com 14 mil páginas de documentos digitalizados sobre o crescente envolvimento do Uruguai e da América Latina na Guerra Fria. São atas de interrogatórios, fichas de dirigentes locais e internacionais, fotografias, informes secretos, confidenciais ou internos, notas de imprensa e colaborações civis, entre outros documentos produzidos pelo Serviço de Inteligência do Estado (SIE), órgão criado muito antes do período ditatorial, em setembro de 1947, como uma consequência natural do recém-aprovado Tratado Interamericano de Assistência Recíproca.Não são documentos “inocentes”. Embora essa premissa sirva para todas as fontes que formam a matéria-prima do historiador, o caso dos arquivos do SIE tem suas particularidades. Foram registros produzidos com manifesta intenção política, por agentes embebidos de anticomunismo, condicionados pelo confronto contra um inimigo retratado como poderoso – afinal, era esta a razão de ser daquele serviço. Não estamos diante dos fatos como aconteceram, mas de uma visão deles, e uma visão bem determinada.O processo de acumulação de informações realizado pelo Estado uruguaio foi sistemático, silencioso e prolongado, fruto de uma estratégia de relativa independência do poder político, ainda que os dois partidos tradicionais – o Nacional e o Colorado – concordassem com a sua necessidade. Pessoas ou organizações identificadas ou suspeitas de promover “atividades comunistas” eram consideradas objeto de atenção prioritária. Entre elas estavam intelectuais de renome, jornalistas, professores e até mesmo instituições inteiras como a Universidade da República (e seus sucessivos reitores, claro). Embora muitos fossem efetivamente comunistas, os policiais geralmente incluíam em seus filtros várias outras manifestações políticas, trabalhistas e sociais, produções de parte dos meios de comunicação, estudantis e até desportivas, que em nada estavam relacionadas com o marxismo-leninismo – como um pedido de coleta de donativos para um hospital público.Esse tipo de fichamento policialesco existia desde a fundação do SIE, mas o clima de enfrentamento bipolar da Guerra Fria contribuiu para que as investigações assumissem uma forma crescentemente obsessiva, adquirindo por fim um caráter histérico. O acúmulo, por anos a fio, de informações sobre “atividades comunistas” seria utilizado mais tarde pelo Estado uruguaio em sua eficaz ação de repressão. Um exemplo notório foi a implacável operação empreendida pela ditadura, desde 1975, contra um objetivo central: o Partido Comunista do Uruguai, cujos militantes foram todos capturados. Há décadas eles vinham sendo objeto de atenção por parte do SIE. A ficha policial do engenheiro e matemático José Luis Massera, por exemplo, registra anotações mensais que começaram em 1947 e seguiriam até 2002.O acompanhamento dos esforços repressivos e de controle social contribui para minar a chamada teoria dos “dois demônios”, que equipara as ações realizadas pelo Estado, através de militares e policiais, com aquelas que empreenderam os grupos armados. Muito antes de os guerrilheiros do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T) empunhar armas nos anos 1960, questionando a fragilidade da democracia do país – motivo que justificaria o golpe de Estado – o Uruguai “liberal e democrático” já estava em guerra contra a dissidência política de partidos minoritários de esquerda. Suas ações eram monitoradas e os representantes parlamentares vigiados. Controle similar se deu sobre as publicações partidárias, conferências e programas de rádio. O próprio SIE recomendou ao presidente Juan José Amézaga, em 1952, não proibir os partidos de esquerda, pois sua existência legal permitia um policiamento mais preciso e eficaz.A radicalização anticomunista do SIE, porém, iniciou-se em 1959, e não apenas pela influência e consolidação da Revolução Cubana. Tão decisiva como a temerária experiência caribenha foi a proximidade de um importante líder político e sindical com a estação local da CIA, a agência americana de inteligência: com seu anticomunismo visceral, Benito Nardone foi recrutado como operador do Serviço de Inteligência do Estado. Seu nome não era algo menor. Entre 1960 e 1961, Nardone chegou a ocupar a Presidência da República, quando o cargo era rotativo, em regime colegiado. Foi ao seu lado que começou a despontar o nome de Juan María Bordaberry, eleito presidente pouco mais de uma década depois e responsável pelo golpe de 1973.Em matéria de inteligência, desde 1959 o arquivo expandiu-se, ampliando seu pessoal e profissionalizando a técnica de fichar indivíduos e organizações. Naquele momento também se aprofundaram os antigos vínculos entre as polícias políticas da região. Parte disso eram os “boletins mensais sobre comunismo”, que começaram a ser produzidos e circulavam amplamente entre as agências latino-americanas. Além do objetivo óbvio de que todas manejassem informações semelhantes, parecia uma medida natural em função do anticomunismo profundo que as elites da região compartilhavam.À medida que avançavam os anos 60, a América Latina assistia a uma escalada significativa da Guerra Fria, evidenciando-se uma polarização social e política. Ela foi resultado de vários fatores: a desigualdade crônica, o atraso das estruturas econômicas, a frustração com as políticas hemisféricas norte-americanas que sempre ignoraram a região até o surgimento do desafio cubano e, finalmente, o fechamento do ambiente político em vários países do continente. Contra os movimentos de insatisfação ergueu-se a denominada contrainsurgência.Em meados daquela década o ambiente já era amplamente hostil. Os golpes militares que ocorreram nos vizinhos Brasil (1964) e Argentina (1966) causaram impacto significativo no Uruguai. O país foi particularmente envolvido com o caso brasileiro, pois o presidente deposto, João Goulart, refugiou-se em seu território junto com vários apoiadores. Recaiu sobre a SIE a tarefa de controlar suas atividades. Documentos secretos remetidos pela embaixada brasileira destacam persistente preocupação de que o serviço de inteligência uruguaio supervisionasse de perto os exilados, especialmente Goulart e seu cunhado Leonel Brizola. Relatórios detalhados mostram que o trabalho foi eficiente: em pouco tempo um motorista infiltrado no ambiente do ex-presidente brasileiro já prestava serviços habituais de delação.À luz dos documentos disponíveis, pode-se então perguntar: a Operação Condor – aliança clandestina entre várias nações, destinada a eliminar os opositores de esquerda – foi uma consequência “natural” dessa guerra silenciosa, secreta e prolongada? Afinal, desde a aparição dos primeiros partidos comunistas na América Latina, nos anos 1920, até a doutrina do abatimento do “inimigo interno”, nas décadas de 1960 e 1970, a batalha nunca deixou de existir. Sorrateira e discreta ou, quando necessário, explícita e mortal.Roberto García Ferreira é professor da Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação na Universidade da República, no Uruguai, e coordenador do livro Espionaje y política: Guerra Fría, inteligência policial y anticomunismo em el sur de América Latina (Ediciones B, 2013).Saiba MaisGRANDIN, Greg. Panzós: La última masacre colonial. Latinoamérica en la Guerra Fría. Guatemala: Avancso, 2007.SPENSER, Daniela (coord.). Espejos de la guerra fría: México, América Central y el Caribe. México: Ciesas, 2004.
Vigiar até punir
Roberto García Ferreira