Vigiar até punir

Roberto García Ferreira

  • Uma característica peculiar da ditadura uruguaia foi que o próprio presidente da República, Juan María Bordaberry, promoveu o golpe, em 1973, dissolvendo as Câmaras com o apoio das forças militares e policiais. Três anos depois, seriam os militares a se desfazer de Bordaberry, passando a basear toda a sua ação em uma lógica fervorosamente anticomunista.
     
    Mas a grande questão em aberto, em relação à ditadura civil-militar que até 1985 perseguiu, torturou e encarcerou milhares de cidadãos, deixando cerca de 200 desaparecidos, é entender por que a democracia tornou-se inviável em um país tradicionalmente democrático. Até que ponto acontecimentos externos que mobilizavam a região influenciaram o processo político uruguaio? Quanto incidiu a escalada ideológica da Guerra Fria no estabelecimento do terrorismo de Estado como instrumento de eliminação dos dissidentes?
     
    O arquivo da Inteligência Política uruguaia ajuda a iluminar aquele contexto. Trata-se de um repositório único em seu gênero, com 14 mil páginas de documentos digitalizados sobre o crescente envolvimento do Uruguai e da América Latina na Guerra Fria. São atas de interrogatórios, fichas de dirigentes locais e internacionais, fotografias, informes secretos, confidenciais ou internos, notas de imprensa e colaborações civis, entre outros documentos produzidos pelo Serviço de Inteligência do Estado (SIE), órgão criado muito antes do período ditatorial, em setembro de 1947, como uma consequência natural do recém-aprovado Tratado Interamericano de Assistência Recíproca. 
     
    Não são documentos “inocentes”. Embora essa premissa sirva para todas as fontes que formam a matéria-prima do historiador, o caso dos arquivos do SIE tem suas particularidades. Foram registros produzidos com manifesta intenção política, por agentes embebidos de anticomunismo, condicionados pelo confronto contra um inimigo retratado como poderoso – afinal, era esta a razão de ser daquele serviço. Não estamos diante dos fatos como aconteceram, mas de uma visão deles, e uma visão bem determinada. 
     
    O processo de acumulação de informações realizado pelo Estado uruguaio foi sistemático, silencioso e prolongado, fruto de uma estratégia de relativa independência do poder político, ainda que os dois partidos tradicionais – o Nacional e o Colorado – concordassem com a sua necessidade. Pessoas ou organizações identificadas ou suspeitas de promover “atividades comunistas” eram consideradas objeto de atenção prioritária. Entre elas estavam intelectuais de renome, jornalistas, professores e até mesmo instituições inteiras como a Universidade da República (e seus sucessivos reitores, claro). Embora muitos fossem efetivamente comunistas, os policiais geralmente incluíam em seus filtros várias outras manifestações políticas, trabalhistas e sociais, produções de parte dos meios de comunicação, estudantis e até desportivas, que em nada estavam relacionadas com o marxismo-leninismo – como um pedido de coleta de donativos para um hospital público.
     
    Esse tipo de fichamento policialesco existia desde a fundação do SIE, mas o clima de enfrentamento bipolar da Guerra Fria contribuiu para que as investigações assumissem uma forma crescentemente obsessiva, adquirindo por fim um caráter histérico. O acúmulo, por anos a fio, de informações sobre “atividades comunistas” seria utilizado mais tarde pelo Estado uruguaio em sua eficaz ação de repressão. Um exemplo notório foi a implacável operação empreendida pela ditadura, desde 1975, contra um objetivo central: o Partido Comunista do Uruguai, cujos militantes foram todos capturados. Há décadas eles vinham sendo objeto de atenção por parte do SIE. A ficha policial do engenheiro e matemático José Luis Massera, por exemplo, registra anotações mensais que começaram em 1947 e seguiriam até 2002.
     
    O acompanhamento dos esforços repressivos e de controle social contribui para minar a chamada teoria dos “dois demônios”, que equipara as ações realizadas pelo Estado, através de militares e policiais, com aquelas que empreenderam os grupos armados. Muito antes de os guerrilheiros do Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T) empunhar armas nos anos 1960, questionando a fragilidade da democracia do país – motivo que justificaria o golpe de Estado – o Uruguai “liberal e democrático” já estava em guerra contra a dissidência política de partidos minoritários de esquerda. Suas ações eram monitoradas e os representantes parlamentares vigiados. Controle similar se deu sobre as publicações partidárias, conferências e programas de rádio. O próprio SIE recomendou ao presidente Juan José Amézaga, em 1952, não proibir os partidos de esquerda, pois sua existência legal permitia um policiamento mais preciso e eficaz.
     
    A radicalização anticomunista do SIE, porém, iniciou-se em 1959, e não apenas pela influência e consolidação da Revolução Cubana. Tão decisiva como a temerária experiência caribenha foi a proximidade de um importante líder político e sindical com a estação local da CIA, a agência americana de inteligência: com seu anticomunismo visceral, Benito Nardone foi recrutado como operador do Serviço de Inteligência do Estado. Seu nome não era algo menor. Entre 1960 e 1961, Nardone chegou a ocupar a Presidência da República, quando o cargo era rotativo, em regime colegiado. Foi ao seu lado que começou a despontar o nome de Juan María Bordaberry, eleito presidente pouco mais de uma década depois e responsável pelo golpe de 1973. 
     
    Em matéria de inteligência, desde 1959 o arquivo expandiu-se, ampliando seu pessoal e profissionalizando a técnica de fichar indivíduos e organizações. Naquele momento também se aprofundaram os antigos vínculos entre as polícias políticas da região. Parte disso eram os “boletins mensais sobre comunismo”, que começaram a ser produzidos e circulavam amplamente entre as agências latino-americanas. Além do objetivo óbvio de que todas manejassem informações semelhantes, parecia uma medida natural em função do anticomunismo profundo que as elites da região compartilhavam. 
     
    À medida que avançavam os anos 60, a América Latina assistia a uma escalada significativa da Guerra Fria, evidenciando-se uma polarização social e política. Ela foi resultado de vários fatores: a desigualdade crônica, o atraso das estruturas econômicas, a frustração com as políticas hemisféricas norte-americanas que sempre ignoraram a região até o surgimento do desafio cubano e, finalmente, o fechamento do ambiente político em vários países do continente. Contra os movimentos de insatisfação ergueu-se a denominada contrainsurgência.
     
    Em meados daquela década o ambiente já era amplamente hostil. Os golpes militares que ocorreram nos vizinhos Brasil (1964) e Argentina (1966) causaram impacto significativo no Uruguai. O país foi particularmente envolvido com o caso brasileiro, pois o presidente deposto, João Goulart, refugiou-se em seu território junto com vários apoiadores. Recaiu sobre a SIE a tarefa de controlar suas atividades. Documentos secretos remetidos pela embaixada brasileira destacam persistente preocupação de que o serviço de inteligência uruguaio supervisionasse de perto os exilados, especialmente Goulart e seu cunhado Leonel Brizola. Relatórios detalhados mostram que o trabalho foi eficiente: em pouco tempo um motorista infiltrado no ambiente do ex-presidente brasileiro já prestava serviços habituais de delação. 
     
    À luz dos documentos disponíveis, pode-se então perguntar: a Operação Condor – aliança clandestina entre várias nações, destinada a eliminar os opositores de esquerda – foi uma consequência “natural” dessa guerra silenciosa, secreta e prolongada? Afinal, desde a aparição dos primeiros partidos comunistas na América Latina, nos anos 1920, até a doutrina do abatimento do “inimigo interno”, nas décadas de 1960 e 1970, a batalha nunca deixou de existir. Sorrateira e discreta ou, quando necessário, explícita e mortal.
     
    Roberto García Ferreira é professor da Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação na Universidade da República, no Uruguai, e coordenador do livro Espionaje y política: Guerra Fría, inteligência policial y anticomunismo em el sur de América Latina (Ediciones B, 2013). 
     
    Saiba Mais
     
    GRANDIN, Greg. Panzós: La última masacre colonial. Latinoamérica en la Guerra Fría. Guatemala: Avancso, 2007.
    SPENSER, Daniela (coord.). Espejos de la guerra fría: México, América Central y el Caribe. México: Ciesas, 2004.