Visita ao Bruxo

Hélio de Lena Júnior

  • os dias 30 de setembro e 1º de outubro de 1908, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, publicou uma crônica de Euclides da Cunha intitulada “A última visita”, sobre a agonia e morte de um dos maiores romancistas brasileiros de todos os tempos, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). O texto de Euclides, também ele um de nossos grandes escritores, não seria tão instigante se não mencionasse a visita misteriosa que o autor de Dom Casmurro recebeu nos seus momentos derradeiros.

    Tratava-se de um rapaz de 18 anos que, no meio da noite, foi à casa de Machado, no bairro carioca do Cosme Velho, e pediu licença para ver o velho mestre. A residência estava repleta de figuras importantes do meio literário da época, silenciosas e consternadas, enquanto Machado, no quarto, agonizava. Mesmo assim, o jovem e desconhecido visitante não se inibiu diante de todos aqueles medalhões e conseguiu ser conduzido até o leito do escritor. “Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.”

    Na sua crônica, Euclides não diz o nome do “anônimo juvenil”, porque, segundo ele, isso importava pouco. “Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis –, aquele menino foi o maior homem de sua Terra”. A identidade do admirador precoce do “Bruxo do Cosme Velho” permaneceria envolta em mistério por muitos anos, até ser revelada pela grande biógrafa de Machado, Lúcia Miguel Pereira. Quanto ao prognóstico de Euclides, de que o jovem visitante noturno “nunca mais subirá tanto na vida”, este revelou-se equivocado. Astrojildo Pereira Duarte da Silva, o rapaz que reverenciou Machado no seu leito de morte, se tornaria na maturidade um importante intelectual, além de respeitado propagador do pensamento marxista no Brasil. 

    Astrojildo Pereira nasceu em Rio Bonito, no interior fluminense, em 1890. Muito jovem, tornou-se ativista político, freqüentando organizações operárias de orientação anarquista. Em 1918, redigiu, publicou e distribuiu, praticamente sozinho, o jornal Crônica Subversiva. Nesse mesmo ano, participou ativamente dos preparativos de uma frustrada insurreição anarquista e, por conta disso, foi preso pela primeira vez. Libertado em 1919, distanciou-se do anarquismo e, influenciado pelas idéias bolcheviques, passou a defender aqui os rumos tomados pela Revolução Russa.

  • A virada definitiva em sua visão de mundo deu-se em março de 1922, quando participou do congresso de fundação do Partido Comunista do Brasil – Seção Brasileira da Internacional Comunista, mais tarde Partido Comunista Brasileiro. Em 1924, fez sua primeira viagem à União Soviética. Em 1927, encarregado pela direção do partido, buscou contato com o líder tenentista Luiz Carlos Prestes, então exilado na Bolívia, quando lhe entregou vários volumes de literatura marxista. Naquela época, Prestes ainda não se declarara comunista. Após uma segunda estada em Moscou, em 1929, Astrojildo retornou ao Brasil com a orientação de “proletarizar” o PCB, ou seja, promover a substituição dos intelectuais na direção do partido por representantes da classe operária. Em novembro de 1930, acabou sendo atingido pelo processo de proletarização que ele próprio deflagrara, sendo afastado da secretaria-geral do partido.

    A partir de então, Astrojildo se dedicou a negócios particulares herdados do pai. Segundo Graciliano Ramos, “um homem de pensamento e ação, Astrojildo Pereira tem imensa dignidade. Os seus anos de vacas magras não foram sete, como os do sonho de José, mas três vezes sete. Durante esse tempo, quando muitos intelectuais se vendiam, Astrojildo, para agüentar-se na vida, preferiu vender frutas numa quitanda”. Já Manuel Bandeira compôs poeticamente a imagem de Astrojildo nesta época: “Bananeiras – Astrojildo esbofa-se – /Plantai-as às centenas, às mil: /Musa Paradisíaca, a única /Que dá dinheiro neste Brasil”.

    Em 1944, Astrojildo publicou Interpretações, que reúne estudos sobre literatura, entre eles o artigo “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado”, fruto de sua admiração antiga pelo escritor. O crítico José Paulo Netto, referindo-se a Astrojildo, escreveu que “a leitura de seus textos sobre Machado de Assis é sempre gratificante, pela finura das observações, pela argúcia com que filtra detalhes aparentemente insignificantes, pela riqueza das sugestões analíticas que oferece para ulteriores pesquisas”.

    Segundo Netto, Astrojildo foi capaz de construir, de forma inovadora, uma crítica original à obra do escritor, na qual destacou a reconstrução da ambiência social do Brasil do século XIX. Partindo de um universo microfamiliar e patriarcal, Machado descreveu, segundo Astrojildo, em larga medida e como nenhum outro escritor do seu tempo, as estruturas autoritárias brasileiras – escravista e latifundiária. Na leitura que fez de Machado, Astrojildo detectou a desintegração do regime patriarcal e sua substituição por um modelo burguês-liberal. As contradições do microambiente familiar descritas por Machado só repetiam, em ponto menor, os desacordos do macroambiente brasileiro, revelando uma sociedade em permanente tensão.

  • Ao contrário do que muitos críticos afirmaram, o tema da modernização, como apontou Astrojildo, não escapou à observação prodigiosa de Machado. Na sátira política intitulada “Evolução”, por exemplo, discutem-se dois temas dos mais prezados por Machado: política e economia. A trama se passa numa viagem de trem, na recém-inaugurada estrada de ferro que partia da Corte para a cidade de Vassouras, no interior do Estado do Rio. As duas personagens, Inácio e Benedito, conversam sobre o progresso que representaria a construção das estradas de ferro, e aos poucos se tornam amigos. Benedito tinha ingressado na política; Inácio, por seu turno, embarcara para a Europa, em busca de capitais ingleses. Aqui havia, segundo Astrojildo, a clara presença das duas dimensões: de um lado, a entrada do Brasil no mundo burguês-liberal; de outro, o incremento da modernização capitalista.

    Embora Machado, conforme a análise de Astrojildo, nunca tenha imprimido tom panfletário aos seus textos, revela-se sempre, em contos e romances, um arguto observador social, capaz de condenar e combater a seu modo, e mesmo que indiretamente, as chagas sociais do Segundo Reinado, inclusive a escravidão. Alguns autores afirmaram que Astrojildo Pereira buscou, ao se dedicar à crítica machadiana, um parceiro que não encontrou nas fileiras do PCB. Com mais certeza, depois de expulso das fileiras do partido, teria buscado apenas manter sua sanidade intelectual nas páginas de Machado.

    De volta ao PCB em 1945, Astrojildo foi delegado do Estado do Rio no I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado na cidade de São Paulo. Nesse mesmo ano, colaborou intensamente com a imprensa comunista. Sob sua direção, foram organizadas as revistas Literatura, Problemas da paz e do socialismo e Estudos sociais. Em outubro de 1964, o escritor marxista foi preso novamente em decorrência do golpe civil-militar de 31 de março. Permaneceu na prisão por três meses, em estado de saúde precário em conseqüência de um infarto. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1965, quase tão anonimamente quanto na noite em que deixou a casa do “Bruxo do Cosme Velho” na única e derradeira visita que fez ao escritor.

    Hélio de Lena Júnior é mestre em História Social pela Universidade Severino Sombra e doutorando em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo CPDA – UFRRJ.