Vivandeiras em marcha

Maria Meire de Carvalho

  • “Quem diria que mulheres pudessem suportar as fadigas daquela campanha, quando a virilidade do homem às vezes fraquejava? No entanto, cerca de cinqüenta mulheres, representantes do belo sexo, compartilharam todas as peripécias da longa marcha, seguiam maridos ou amásios, rivalizando com eles até em bravura [...] Apesar da conformação física mais fraca e mesmo da inferioridade biológica, elas nunca demonstraram fraqueza. É que a alma simples da mulher brasileira é feita de sacrifícios e de martírios [...] é esse o sentimento que fez das vivandeiras umas abnegadas”.

    Assim o capitão Ítalo Landucci, integrante da Coluna Prestes, via as mulheres que acompanhavam a marcha de militares por treze estados brasileiros, entre 1924 e 1927. Há poucos registros históricos sobre as vivandeiras, termo que vem do francês vivandière e designa a pessoa que negocia víveres nas feiras, nos arraiais ou nos acampamentos militares, especialmente as mulheres que acompanhavam, com essa finalidade, tropas em marcha. Inúmeras vivandeiras brasileiras e paraguaias acompanharam as tropas de seus exércitos durante a Guerra do Paraguai. Na Coluna Prestes, eram mulheres jovens, maduras, brancas, caboclas, negras, mulatas, brasileiras e estrangeiras. Cerca de vinte acompanhavam a brigada gaúcha e outras trinta acompanhavam a tropa paulista.

    A Coluna Prestes percorreu cerca de 25 mil quilômetros do território nacional, contestando o governo do presidente Artur Bernardes (1922-26) (ver Revista de História nº 6, dezembro de 2005). Em julho de 1924, a participação das mulheres na rebelião de São Paulo, que daria início à marcha, foi ousada. Uma delas, a aviadora Anésia Pinheiro Machado, colaborou com os rebeldes e acabou presa no 4º Batalhão da Força Pública de São Paulo, onde também ficaram os capitães Juarez Távora, Joaquim Távora, Índio do Brasil e o tenente Castro Afilhado.  Durante os dias da revolta, mulheres conspiravam nas trincheiras e escreviam artigos em jornais ressaltando a causa revolucionária; outras, com extrema convicção política, militavam pelas ruas, colando cartazes, incitando soldados legalistas a aderirem às tropas rebeldes. Muitas acompanharam os feitos da Coluna Prestes e o seu vaivém pelo jornal clandestino 5 de julho, pregando cópias dos comunicados mimeografados em postes. Mulheres simples participavam da sublevação, mas suas atuações ainda hoje permanecem cercadas de silêncio.

  • As gaúchas, apesar de proibidas de permanecer na tropa, resistiram, transgrediram e desafiaram o líder Luís Carlos Prestes. Na travessia do Rio Uruguai, mulheres que haviam aderido à Coluna em São Luís Gonzaga e Santo Ângelo (RS) teimaram em acompanhar os rebeldes. O diário da marcha, escrito pelo secretário da Coluna, Lourenço Moreira Lima, conta que Prestes proibiu que elas atravessassem o rio. Mas na manhã seguinte, quando a Coluna se pôs em marcha, viram, com espanto, que as mulheres já haviam cruzado o rio e esperavam por eles na margem de Santa Catarina. Como eram raparigas do Rio Grande, Prestes teve pena de largá-las naqueles sertões desertos e permitiu que elas continuassem a viagem.

    Anos mais tarde, Prestes confirmou em depoimentos sua decisão de proibir que as mulheres se integrassem ao movimento: “Nessa época eu era muito militar e tive bastante dificuldade para abandonar o formalismo por uma vida diferente, que é a guerra. Fui contra a entrada e a permanência de mulheres na Coluna”. Mas as mulheres conseguiram driblar o preconceito e sua participação foi extremamente corajosa: carregaram armas, foram para os campos de batalha e defenderam suas vidas e as dos rebeldes, chegando inclusive a travar lutas corporais com o inimigo. Ao lado dos rebeldes, passando por diversas privações, elas empreenderam a marcha de guerrilhas comandada por Prestes por mais de dois anos pelos sertões do Brasil. Estavam ao lado dos combatentes no seu dia-a-dia, superando dificuldades, enfrentando inimigos e desafiando a morte.

    A austríaca Hermínia, enfermeira que se juntou ao movimento ainda na cidade de São Paulo, foi uma das mulheres que mais se destacaram na Coluna: considerada brava, valente e devotada, não fugia dos perigos. Ao contrário, durante os combates cruzava as linhas de fogo para atender e retirar feridos. O ex-integrante Rubens Fortes rememorava, rindo, o episódio em que “Hermínia medicava doentes depauperados com o regulador menstrual Saúde da Mulher [...] era um tanto quanto esquisito ver homens feridos sendo tratados com esse tônico, mas, na falta de medicamentos, muitos soldados se salvaram tomando as bebericagens de Hermínia”. Proclamada uma mulher diferente – talvez por ser letrada, enquanto as demais, em grande parte, eram camponesas –, ela permaneceu durante todo o percurso junto ao “Estado-Maior”, ou seja, lado a lado com os comandantes da alta hierarquia. Mesmo assim não foi poupada da discriminação masculina, que chegava à misoginia. Para Moreira Lima, “Hermínia alcançou o seu ideal na Coluna: arranjou um noivo, o bravo tenente Firmino, a quem se associou em La Gaiba (Bolívia)”. Sua brava atuação acaba reduzida à de uma mera caçadora de marido. 

  • Tia Maria era uma velha negra que acompanhou a Coluna desde São Paulo – inicialmente como cozinheira – e que ficou conhecida como a “negra feiticeira que protegia a Coluna Prestes”. As forças legalistas que combatiam a Coluna temiam-na por seus atributos mágicos, e sua fama se espalhou pelo Brasil afora. Em lugarejos distantes, florescia no imaginário popular que, antes dos combates, “uma preta feiticeira dançava nua diante das metralhadoras e, ao som de um flautim tocado por um coronel, fechava o corpo dos soldados das balas legalistas”. Em 1926, Tia Maria teve uma morte trágica: após sangrento combate travado em Piancó (PB), alguns rebeldes extraviaram-se do grosso da Coluna e foram aprisionados e mortos. Entre eles, Tia Maria, que, depois de torturada, foi obrigada a cavar a própria cova – dentro do cemitério, já que temiam seus poderes.

    Em Minas do Rio de Contas (BA), outra mulher morreu em circunstâncias trágicas – a gaúcha Albertina, considerada a mais bonita das vivandeiras: depois de brutalmente violentada, foi degolada junto com o soldado Alibe.

    Retratada como a amazona que “usa chapéu, calças de montar, botas, cartucheira e maneja a carabina como a mais aguerrida soldada”, a jovem rio-grandense Alzira, que completou 18 anos na marcha, mereceu destaque em trechos do diário da marcha e em manchetes de jornais nordestinos como mulher de gênio forte e língua ferina. Em março de 1926, em confronto com os legalistas na vila de Uauá (BA), nas proximidades de Juazeiro, Alzira foi presa. Três jornais de Salvador – A Tarde, Diário de Notícias e Diário da Bahia – estamparam manchetes e detalharam a prisão de Alzira, com o título de “Alzira, a generala – rebelde de gênio indomável”. Os jornais enfatizaram que “a amazona em questão, tão linda quanto audaciosa, acompanha os revolucionários desde o Rio Grande do Sul como companheira do General Miguel Costa. Chamam-na, por isso, a generala”.

  • Moreira Lima diz que “a imprensa bernardesca fez grande celeuma em torno desse fato”. O general Miguel Costa reagiu com indignação à reportagem que sugeria o romance entre ele e a revoltosa Alzira, declarando ao correspondente do Diário de Notícias que ficara muitíssimo contrariado com o boato de que era amante de Alzira, pois era um homem casado e de responsabilidades e não se conformava com a “promoção da revoltosa Alzira a generala”. Afirmou ainda que ela era “uma rapariga de vida livre que acompanhava a tropa ligada ao tenente Hermínio”. O fato é que a prisão de Alzira provocou duras críticas dos legalistas, sugerindo que a Coluna era uma grande orgia. Já os rebeldes rebatiam dizendo que essas calúnias eram estratégias para afrontá-los moralmente, atacar suas condutas, exagerando até mesmo quando contabilizavam o número de mulheres que os acompanhavam.

    A posição de amante de Miguel Costa dava a Alzira um certo conforto e poder frente a seus algozes. Fazer acreditar que exercia influência e detinha informações era fator relevante, já que se tratava de uma guerra e, nesses momentos, prisioneiros importantes gozam de certas regalias em território inimigo. Talvez Alzira tenha se valido dessa situação para manter-se segura.

    Em 1927, Elza Schmitk concedeu entrevista ao O Jornal, do Rio de Janeiro. Dedicada enfermeira de origem alemã, foi descrita como uma bonita loira que, após perder seu marido, passou a viver maritalmente com o major Manuel Alves de Lira. Em suas memórias, João Alberto Lins de Barros, comandante do 2º Destacamento, relatou a “presença incômoda” e a desvirtuação do major Lira pela dedicação a Elza e ao filho: “Major Lira era um pernambucano bravo, robusto e bem-humorado, prestava ótimos serviços [...], exercia a função de subcomandante [...], mas tinha sua eficiência reduzida pela presença de Elza, alemãzinha loira e bonita com quem vivia maritalmente. O casal tinha um filhinho de três meses que nascera em plena marcha [...] Lira procurava dar todo o conforto possível a Elza, tinha barraca, cama, panelas, trazia sempre uma besta de carga com a bagagem, excessiva para a Coluna. Na travessia do Rio das Garças, o major Lira, ocupado com sua bagagem, foi atacado pelo adversário, combateu valentemente, mas foi o primeiro a cair”. Para Lins de Barros, os companheiros que sucumbiam aos encantos de uma mulher acabavam criando problemas, expondo a si próprios e toda a Coluna a novos perigos.

  • Nesse ano, Elza e o pequeno Evandro estavam morando em Cuiabá. Na entrevista ao O Jornal, Elza fala da incorporação dela e das outras mulheres que acompanharam a Coluna, ressalta o respeito e o bom relacionamento delas com Luís Carlos Prestes e Miguel Costa. Reservou suas críticas ao tenente Antônio de Siqueira Campos, por reprimir duramente as mulheres, tomando-lhes os animais, forçando-as a andar a pé e abandonando-as no meio das matas. Segundo a reportagem, as mulheres desempenharam diversos papéis na Coluna Prestes: enfermeiras, costureiras, cozinheiras, além de guerreiras empolgadas com sua causa. Não pareciam vítimas abnegadas, mas mulheres marcadas pelo sofrimento que, numa guerra, cabia a elas abrandar.

    As vivandeiras receberam vários apelidos e seus verdadeiros nomes foram relegados ao esquecimento: “Santa Rosa” servia de polícia secreta, vigiando as outras mulheres. Durante um dos combates, deu à luz uma criança e, conforme relatos de ex-companheiros, vinte minutos depois montou num cavalo e seguiu a tropa com o filho nos braços.

    Moreira Lima cita a apelidada de “A Onça”, espevitada mulata gaúcha, muito conhecida por ser exímia dançarina de maxixe e cheia de uma alegria que contagiava o acampamento em noites enluaradas. A ela é creditado um contato que salvou a tropa das forças inimigas. Com um apelido estranho, “Cara de Macaca” era aquela que se vestia toda de couro, usava chapéu e gibão e ninguém a distinguia de um vaqueiro, tanto pela aparência quanto pela habilidade de cavalgar. Uma terceira, apelidada de “Izabel Pisca-Pisca”, foi confundida com a princesa Isabel em Porto Nacional (atual TO) – na verdade, era uma mulher simples, hábil em costurar e fazer remendos nas roupas dos soldados.

  • Sobre Vitalina Torres, sabe-se que saiu de Santo Ângelo (RS) com o marido, Pedro Torres Sobrinho, e acompanhou a Coluna até o exílio. A velha gaúcha Tia Joana, descrita como pequenina e gorducha, e, Chininha, mulata obesa e exímia andarilha, chegaram ao exílio em La Gaiba (Bolívia) e montaram um restaurante para atender os exilados. A gaúcha Ana Alice seguiu Prestes desde o Rio Grande do Sul, e em 1927 foi localizada em Cuiabá (MT), aguardando a liberdade do marido, João Pereira, preso na cadeia local.  Também ficaram registradas: “Ai Jesus”, Maria Emília, Eufrázia, Ernestina, Tia Manoela Gorda, Etelvina, Emília Dias, Cândida, Chuvinha, Lamparina, Gaúcha, Amália, Letícia, Ótima e a goiana Honorata Moreira da Silva, mais conhecida como Maria Revoltosa; outras foram relegadas ao esquecimento.

    Na imprensa, a denominação “vivandeiras” não apareceu. Foi Moreira Lima quem as chamou assim no diário da marcha. Os jornais as retratavam de formas variadas: “bandoleiras”, “amazonas”, “piedosa enfermeira”, “mulheres à la garçonne”, “revoltosas”, “criminosas rebeldes” e “mulheres guerreiras”. O fato é que elas extrapolaram a definição original que designa negociantes de víveres e também o preconceito que as via unicamente como negociantes de seus corpos – prostitutas intrusas que acirravam disputas entre as tropas. Nessa trajetória de 25 mil quilômetros pelos sertões do Brasil, as mulheres se fizeram presentes e desempenharam atividades variadas. Algumas chegaram ao exílio, outras morreram em situações trágicas. Caminharam, cavalgaram, pegaram em armas, espionaram, cuidaram dos feridos, deram e receberam amor, tiveram filhos, salvaram vidas e venceram a hostilidade dos companheiros.

    MARIA MEIRE DE CARVALHO é doutoranda em História pela Universidade de Brasília (UnB) e professora da Universidade Estadual de Goiás. É autora de “A invenção das vivandeiras e a construção da memória: silêncios que falam e palavras que escondem” In: COSTA, B. Cléria; MAGALHÃES, Nancy A. (orgs) Contar História, fazer história: história, cultura e memória. Brasília: Paralelo 15, 2001.