Quem seria aquele padre brasileiro que há 300 anos foi capaz de reunir diante de si o rei de Portugal, D. João V, e um seleto grupo de autoridades, como o cardeal Conti, núncio de Lisboa (futuro papa Inocêncio XIII), para apresentar seu invento inédito?
Fosse quem fosse, protagonizou um fiasco: o aparelho para andar no ar pegou fogo assim que saiu do chão. Dois dias depois, teria uma nova chance. Desta vez a engenhoca voou mais alto, mas, ao chegar a cerca de 20 palmos de altura (ou quatro metros), foi abatida por serviçais receosos de verem incendiadas as cortinas do palácio. A terceira demonstração foi prudentemente realizada num pátio, e contou com plateia numerosa: além do rei, de nobres e fidalgos, uma imensa multidão teve a oportunidade de testemunhar o experimento. E viu, pela primeira vez, um artefato produzido por mão humana elevar-se livremente no espaço, sem nenhum apoio, e deslizar no ar. Até esbarrar em uma torre da Igreja do Rosário, pegar fogo e cair. Dali a dois meses, na quarta tentativa, o aparelho subiu, ficou um tempo no ar e depois desceu serenamente.
O invento era um simples balão, igual aos de festa junina: um globo de material leve, papel ou pano, com uma vela acesa dentro. Apenas um protótipo, mas o suficiente para fazer antever um mundo de possibilidades no campo ainda virgem dos deslocamentos aéreos. E se aquele padre excêntrico obteve do rei tantas oportunidades de demonstrar sua criação, é porque o momento era apropriado para inovações do tipo. E porque sabia vender seu peixe.
Bartolomeu de Gusmão já havia sido o primeiro brasileiro a registrar uma patente (na época chamada “pedido de privilégio”) junto ao reino de Portugal, em 1707. Tinha 22 anos e estudava em um seminário de Salvador. Nascido em Santos, era o terceiro de doze filhos, e como a maioria dos irmãos, foi encaminhado à formação religiosa. No seminário, Bertholameu Lourenço (como foi batizado) começou a demonstrar seu pendor para os inventos científicos ao tentar solucionar um problema logístico do lugar: o prédio ficava a uma altura de 100 metros, e uma das tarefas que mais consumia tempo e energia era o transporte de água até lá em cima. Não se conhecem detalhes de sua invenção. Ele pode ter usado um sistema com vários níveis, de forma a estabilizar a pressão, ou alguma bomba hidráulica que empurrasse a água pela tubulação, e não por meio de sucção. O fato é que enviou o “pedido de privilégio” a Portugal, e não parou mais de pesquisar os desafios da gravidade. Tinha particular interesse pelo estudo do ar, e sua máquina de subir água mostra que o assunto lhe era familiar.
A formação jesuítica e alguns contatos com a Universidade de Coimbra devem ter-lhe permitido conhecer estudos sobre a existência do vácuo e sobre as naves voadoras do italiano Francesco Lana de Terzi (1631-1687). O voo era um dos problemas que desafiavam as mentes mais brilhantes da época. Em 1670, Lana idealizou um aparato baseado em pesquisas anteriores de Torricelli (1608-1647), Pascal (1623-1662) e outros cientistas que estudaram o vácuo. O italiano tentou tirar proveito prático do fato de o vazio ser mais leve do que o ar (pois é desprovido de qualquer matéria): concebeu um aparelho voador com quatro globos de cobre desprovidos de ar, presos a uma barca com um mastro e uma vela. Sua tese era que o empuxo do ar atmosférico iria produzir uma força ascensional nos globos com vácuo, permitindo assim o voo da nave. Era a aplicação do princípio do empuxo de Arquimedes.
O aparelho de Francesco Lana não poderia ter sucesso, pois as esferas capazes de manter o vácuo eram mais pesadas que o empuxo do ar. Mesmo assim, seu barco voador despertou o interesse de muitos pensadores europeus. De sua parte, o padre Bartolomeu chegou a uma solução diferente. Talvez inspirado pela observação do ar quente levando para o alto as fagulhas de uma fogueira – e certamente motivado pela ideia de alguma coisa mais leve que o ar –, ele construiu um pequeno globo feito de tecido leve com uma fonte quente colocada logo abaixo de um orifício no invólucro, o que permitia que o ar no interior se aquecesse. Em 1709, apresentou o projeto em Lisboa, e aquele foi o segundo pedido de privilégio feito por um brasileiro. E aprovado pelo rei.
Seu pedido não descrevia o aparelho, mas prometia mundos e fundos. Ao anunciar as fantásticas possibilidades do invento voador, o discurso de Bartolomeu de Gusmão caiu em terreno fértil. Livre da União Ibérica – que até 1640 o mantinha sujeito ao reino espanhol –, Portugal começava a recuperar suas finanças graças ao ouro que chegava do Brasil. Coroado em 1706, D. João V era considerado um rei extravagante, chegado a projetos ousados. Em 19 de abril de 1709, redigiu assim suas impressões sobre o invento proposto pelo padre: “Eu, El Rey, faço saber que o P. Bartolomeu Lourenço me representou por sua petição que ele tinha descoberto um instrumento para se andar pelo ar, da mesma sorte que pela terra e pelo mar, e com muita brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia; no qual instrumento se poderiam levar os avisos de mais importância aos exércitos e a terras mui remotas...”. Com o aparato voador, Portugal poderia descobrir terras, ampliar o território com a anexação de novas colônias e obter mais riquezas. Poderia ter controle da política nas colônias com um sistema rápido de comunicação, evitando o desgoverno em terras longínquas.
O entusiasmo inicial do rei propiciou, naquele mesmo ano, a série de demonstrações da Passarola, como ficou conhecida. Mas ninguém se animou com o que viu. Portugal não era o local mais indicado para investimentos desse gênero. Nos estudos científicos, o reino estava atrasado em relação ao resto da Europa. Tanto que a notícia do Padre Voador fez muito mais sucesso nos outros países do continente. Circulavam versões sensacionalistas e um desenho apócrifo, provavelmente feito pelo próprio Bartolomeu ou por conhecido seu, representando um estranho artefato munido dos mais extravagantes instrumentos. O ponto crucial, a fonte térmica que permitia ao balão subir, não aparecia no desenho, provavelmente para evitar que o invento fosse copiado. O fato é que a representação mirabolante da Passarola contribuiu para fazer o feito virar piada.
Bartolomeu ainda se dedicou a outras criações, como o “Processo para esgotar água sem gente os navios alagados”, circulou pela Universidade de Coimbra e publicou sermões. Homem muito respeitado no reino por sua inteligência e cultura, não conseguiu evitar, no entanto, que seu nome fosse envolvido numa terrível conspiração.
Para compreender a trama é preciso ir aos bastidores da família real. O infante D. Francisco, irmão do rei, mantinha relacionamento com a viúva D. Mariana de Souza. Era uma demoiselle folle de son corps, ou “mulher folgada de costumes”, e tinha quatro irmãs também dadas aos prazeres da carne, embora todas internas de conventos. Apesar da péssima relação que tinha com o irmão, às vezes o rei D. João V o acompanhava nas visitas às “cunhadas da mão esquerda”. E foi numa dessas visitas que o monarca se encontrou com uma tal Trigueirinha, por quem caiu de paixão. Suas visitas ao Convento de Odivelas passaram a ser quase diárias, o que acabou despertando ciúmes em D. Mariana e suas irmãs. A situação agravou-se a tal ponto que elas recorreram aos mais baixos sortilégios e bruxarias contra o rei e sua amante.
O envolvimento do Padre Voador nesse caso é muito mal explicado. Segundo o cronista português Brito Rebelo, “Bartolomeu Lourenço, imitando os exemplos da Corte e de muitos homens, mais ou menos eminentes, e segundo os usos do tempo, entretinha relações amorosas, no convento de Sant’Anna, com D. Paula de Souza”, uma das irmãs. No meio das intrigas e acusações, a situação foi parar no Santo Ofício. Suspeita de conspiração para assassinar o monarca, suspeita de práticas de bruxaria. Sobrou para Bartolomeu, acusado de “conduta judaizante” e de ter em sua casa um exemplar do Alcorão. Duplamente infiel, portanto.
Na noite de 26 de setembro de 1724, Bartolomeu de Gusmão desaparece de Lisboa. Foge em direção à Espanha acompanhado por seu irmão, frei João Álvares. Manteve-se incógnito, fugindo da Inquisição espanhola, mas por pouco tempo: morreu aos 39 anos, no dia 19 de novembro, em Toledo, na mais extrema miséria.
“Diz um autor moderno que entre os homens uns têm o entendimento nos olhos, e outros os olhos no entendimento: os que têm o entendimento nos olhos são aqueles que crêem o que somente viram ou costumam ver; os que têm os olhos no entendimento são os que, não vendo, dão credito aquilo, que se faz visível aos olhos do discurso (...)”, escreveu certa vez, em seu “Manifesto sumário para os que ignoram poder-se navegar pelo elemento ar”. O entendimento visionário que Bartolomeu esperava ainda levaria algum tempo para vir à tona. O balão de ar quente tornou-se capaz de transportar pessoas na década de 1780. Os pais da criação foram os irmãos franceses Joseph Michel e Jacques Étienne.
Henrique Lins de Barros é pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e autor de Desafio de voar: brasileiros e a conquista do ar – 1709-1914. (Ed. Metalivros, 2006).
Saiba Mais - Bibliografia:
CRUZ, Murillo. Bartholomeu de Gusmão: sua obra e o significado fáustico de sua vida. Rio de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox/Mast, 1985.
FREITAS, Divaldo Gaspar de. A vida e as obras de Bartolomeu Lourenço de Gusmão. São Paulo: SEDAI, 1967.
TAUNAY, Affonso de E. A vida gloriosa e trágica de Bartholomeu de Gusmão. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1934.
_________Bartholomeu de Gusmão e a sua prioridade aerostática. São Paulo: Imprensa Oficial, 1935.
Saiba Mais - Sites:
http://www.fab.mil.br/portal/personalidades/bgusmao/index.htm
http://www.pamals.aer.mil.br/internet/gusmao.htm
http://blog.controversia.com.br/2007/08/24/o-padre-que-queria-voar-2
Voar e correr
Henrique Lins de Barros