Tempo de dúvidas e espera

Ana Canas D. Martins

  • Em "Os Franceses na 1º Invasão", a ocupação de Portugal por Junot, em 1807, intimidando e seduzindo, o general instalou-se no poder, enquanto suas tropas matavam e saqueavam.

    Quando D. João partiu para o Brasil, deixando seus súditos mas escapando de Napoleão, a história de Portugal passou a ser escrita simultaneamente em dois cenários. Do Rio de Janeiro, o príncipe regente mantinha em funcionamento o governo a uma distância segura. Enquanto isso, na vida de quem ficou para trás, a ocupação das tropas napoleônicas gerou um período de instabilidade, resistência e violência.

    Comandados pelo general Jean-Andoche Junot (1771-1813), 25 mil homens do exército francês, reforçados por quatro mil espanhóis, entraram em Portugal em fins de 1807. D. João havia nomeado uma Regência para governar Portugal em sua ausência, e o general Junot utilizou-se dela para assumir o poder. Os franceses foram acolhidos pelas autoridades em termos um tanto benévolos. Essas atitudes custaram a muitos, mais tarde, acusações de colaboracionismo com o invasor, frequentemente precipitadas, uma vez que vários se limitavam a cumprir as instruções de D. João excessivamente prudentes em relação aos ocupantes. Esta ambiguidade foi ultrapassada já no Rio de Janeiro, quando D. João deixou claro quem era o inimigo ao publicar o “Manifesto contra a França”.

    No início de fevereiro de 1808, Junot decretou, em nome de Napoleão, a extinção da Casa de Bragança – suprema ironia, dado que ela estava a salvo no Brasil – e nomeou um Conselho de Governo. Determinou que as armas portuguesas fossem retiradas ou cobertas e que se usassem na documentação oficial as referências napoleônicas – “Em nome de Sua Majestade o Imperador dos Franceses…” – e o selo do império francês. Abolidas as milícias e dispersas as forças armadas portuguesas, criou uma polícia política. Sob o comando do general Louis Henri Loison (1771-1816), a instituição ficou conhecida pela violenta repressão desencadeada contra opositores. A terrível fama de Loison foi tão marcante que gerou uma expressão popular ainda hoje vigente em Portugal: mandar ou ir “para o maneta”. Maneta era o próprio Loison, que em 1806 havia perdido um braço em acidente durante uma caçada. “Ir para o maneta” significa desfazer-se de alguém ou de alguma coisa, destruir, perder-se.

    O general Junot impôs-se à sociedade e às instituições portuguesas em habilidosas transações. Seduzindo e intimidando, manobrou rivalidades e frustrações sociais e de poder junto a diversos grupos, da fidalguia tradicional e da administração à Igreja (de quem se afirmou protetor) e à Maçonaria (onde tentou ser eleito grão-mestre). De modo preconceituoso, julgou a administração portuguesa bizarra, e procurando cativar alguns magistrados, anunciou reformas, como a do Código Civil, a expropriação de conventos, a introdução do sistema representativo e a liberdade religiosa. Estimulou pedidos a Napoleão de uma Constituição, com direito à figura do rei – ora reivindicada para um príncipe de sangue da família Bonaparte, ora para o próprio Junot. Não se esqueceu, é claro, de investir na coleta sistemática de impostos – fosse para enviar os recursos ao Estado francês, fosse para beneficiar o próprio bolso e o de outros franceses do Portugal ocupado.

    A partir de junho de 1808, na sequência das revoltas na Espanha contra os franceses, sucederam-se, fora da capital, levantes populares apoiados pelo clero e pela nobreza locais, que se organizaram em juntas governativas. Os franceses reagiram violentamente aos bandos armados. Em Évora e Beja houve massacres e pilhagens.

    A propaganda contra o invasor, veiculada em Portugal por cerca de 25 periódicos e três mil panfletos e folhas, incluindo caricaturas de origem inglesa, simplificava os fatos e radicalizava a linguagem. No ardor da guerra, Napoleão era um “monstro usurpador”, “ogro” ou “papão”, e o francês adquiria muitas faces: “cristão pela manhã, no meio-dia turco, à tarde índio”. A proteção proclamada por Junot escondia vis objetivos:

    Deixem-se estar sossegados
    As proclamações diziam:
    Pilhavam tudo que viam, com sistema de terror
    mas este grande favor
    Feito à gente portuguesa
    É Proteção à Francesa.


    Portugal contava mesmo era com um forte aliado europeu para se proteger. A aliança luso-britânica não tardou a aparecer, com desembarque de tropas no início de agosto, aproveitando as insurreições populares para forçar Junot a bater em retirada. Os britânicos fizeram restabelecer a Regência, cujos membros, os governadores do Reino, mantinham correspondência com D. João no Rio de Janeiro – cartas que refletiam, por vezes amargamente, a peculiar situação de um Reino europeu dirigido a partir de uma colônia, depois elevada a Reino (1815). O marechal William Carr Beresford (1768-1854) reorganizou o Exército português e as forças luso-britânicas comandadas pelo duque de Wellington (1769-1852), executando uma política de terra arrasada. Esta política consistia em privar o inimigo de alimentos, impedindo o seu transporte e, sobretudo, queimando as colheitas.

    Os franceses tentaram outras duas invasões, em 1809 e 1810, gerando confrontos que provocavam cenas de desolação e violência. A necessidade de provisões tornou frequentes os saques pelas forças napoleônicas, embora ingleses também os praticassem.

    Muitos bens, entre os quais arquivos e bibliotecas, sofreram os efeitos da ocupação. Durante o governo de Junot, o naturalista Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844) recolheu, por ordem de Napoleão, peças e documentos para o Museu de História Natural em Paris. Do Gabinete de História Natural na Ajuda retirou animais, conchas, minerais, fósseis, herbários e manuscritos, vários dos quais oriundos do Brasil. Do mesmo Gabinete foram levadas ainda matrizes de diamantes, aparentemente para Junot. De serviços da Marinha retiraram-se peças de prata, instrumentos, mapas, plantas e outros documentos, além de livros.

    Casas particulares também foram devassadas, desaparecendo cerca de 300 quadros e 25 mil volumes de obras. A maioria passou a integrar a bagagem do general Junot. Várias bibliotecas seriam devolvidas, mas manuscritos da família dos duques de Cadaval acabaram enriquecendo a Biblioteca Nacional da França. Pratas e objetos diversos desapareceram de Santas Casas de Misericórdia e hospitais. Alguns acervos municipais e muitos arquivos e bibliotecas de mosteiros e conventos também foram vítimas de roubos e mutilações pelas forças napoleônicas, o mesmo acontecendo em cartórios de repartições públicas locais. Do Mosteiro dos Jerônimos, em Belém, Junot levou a chamada Bíblia dos Jerônimos, com extraordinárias iluminuras. Ela seria restituída em 1815 e hoje está no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

    Em Lisboa, foram poupados os documentos dos arquivos das secretarias de Estado não transportados em 1807 para o Rio de Janeiro. A Real Biblioteca, sob ameaça de nova ocupação francesa, foi remetida para o Rio de Janeiro e constituiu o acervo fundador da Biblioteca Nacional do Brasil. Parte da documentação das secretarias de Estado também permaneceu na nova sede do Reino.

    Em 1808, após as denúncias portuguesas e a pressão inglesa, alguns objetos roubados foram recuperados e, no final da guerra, vários proprietários foram indenizados com a ajuda de negociações diplomáticas. Mas nem sempre isso foi possível.

    A decisiva vitória sobre o invasor francês só veio em 1814, acompanhada de elevadas perdas sociais e humanas – cerca de 200 mil mortos numa população de dois a três milhões. A paz não resultou em melhores condições econômicas para Portugal, imerso em um quadro político conturbado. D. João prolongava sua permanência no além-mar e elegia como prioridades as fronteiras brasileiras. Tratados como província de um Reino americano, os portugueses tiveram que contribuir para expedições à Guiana Francesa (ver box) e Montevidéu.

    O capital, inicialmente favorável aos ingleses, transformou-se em hostilidade. Por um lado, devido à dificuldade, também sentida no Brasil, de comerciantes e produtores portugueses exportarem, sucumbindo à concorrência inglesa facilitada pela abertura dos portos brasileiros em 1808 e pelo tratado comercial de 1810. Por outro, pela continuidade dos militares aliados no Reino – sobretudo pelos excessivos poderes de Beresford, marechal-general junto ao rei e procônsul supremo.

    O resultado foi a mobilização da opinião pública em campanhas por uma Constituição e pela autonomia política. A Revolução de 1820, caldeada pelo sentimento de orfandade política do rei ausente, seria executada pelo corpo mais profissional e com escala nacional depois da guerra, o Exército. Após a invasão ordenada por Napoleão, Portugal não era o mesmo país que D. João deixara em 1807.

    Ana Canas D. Martins é diretora do Arquivo Histórico Ultramarino e autora de Governação e Arquivos: D. João VI no Brasil (Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 2007).

    Saiba Mais - Bibliografia

    MACEDO, Jorge Borges de, História Diplomática Portuguesa. Constantes e linhas de força: estudo de geopolítica, 2ª ed. Lisboa: Tribuna da História, 2006.
    NEVES, Lúcia M. B. P. das, Napoleão Bonaparte: Imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810). São Paulo: Alameda, 2008.
    PEDREIRA, Jorge e COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. Companhia das Letras, 2008.
    RAMOS, Rui. História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009.