Me devolve um dinheiro aí

Ronaldo Pelli

  • Os tempos são outros, os delitos são bem diferentes e os personagens atuais jamais se preocuparam com o país, como aconteceu com os inconfidentes. Entretanto, uma situação não muda com o passar dos séculos: o Estado continua tomando calote quando precisa receber dividendos de decisões judiciais, principalmente quando os réus são figuras com posses e alguma malandragem jurídico-financeira para driblar os cobradores.

    Há, claro, uma distância enorme entre a situação do século XVIII e a atual. Os inconfidentes já eram majoritariamente ricos e nem sempre dependiam dos cofres públicos para enriquecer, enquanto os fora da lei que usam colarinho-branco enriquecem à custa da Viúva. Outra grande diferença se refere à atuação da Justiça nos dois períodos: se no primeiro a Coroa era “vingativa”, tentando tomar os bens de quem não concordasse com suas posições, no segundo caso a União corre atrás dos ladrões que levam os recursos que deveriam ser aplicados para o bem comum.

    Um dos casos mais notórios do cenário recente é o que envolve a ex-advogada Jorgina de Freitas. Quase todo mundo conhece seu nome, associado à corrupção por conta das fraudes no INSS descobertas em 1991. Mas pouca gente sabe que a ex-advogada, junto com outros integrantes da quadrilha, teria desviado cerca de US$ 600 milhões com seus golpes. Muito menos gente ainda imagina que, até agora, desse total foram recuperados somente R$ 76,5 milhões no Brasil e US$ 11 milhões no exterior, além de ter sido apreendida uma conta com mais de R$ 3 milhões. Essas contas negativas seriam apenas ruins se a situação não fosse exemplar: é um dos primeiros casos em que se conseguiu resgatar no exterior dinheiro fruto de corrupção.         

    Não se pode dizer com certeza qual foi o maior rombo nas contas do Estado – lembre-se: a falcatrua não deixa recibo. Fica difícil, portanto, fazer um comparativo de quanto retorna para a União. Casos em que há repercussão, como o escândalo no INSS, são mais fáceis de medir. Já na roubalheira nossa do dia a dia, em que os desvios viram varejo, uma possibilidade de medir o estrago é acompanhar o trabalho da Advocacia-Geral da União (AGU), responsável por correr atrás do prejuízo. Entre dezembro de 2009 e novembro de 2010, o órgão ajuizou 3.706 ações que somam R$ 2,7 bilhões. Deste total, foram bloqueados ou penhorados R$ 583 milhões de ex-prefeitos, servidores e empresários, o que dá um pouco menos de 22% do total. Outros R$ 491 milhões, ou apenas 18,2%, retornaram à União por conta da não aplicação ou aplicação indevida dos valores repassados a municípios e entidades públicas ou privadas prestadoras de serviços públicos. O resto do dinheiro continua na briga judicial.

    “No Brasil, os corruptos são mais ‘espertos’ que os honestos”,
    ironiza o historiador e deputado federal Chico Alencar

    Por mais que esses valores e porcentagens sejam comparativamente baixos, o resultado já é bem melhor do que foi no passado. Para efeito de comparação, no período anterior (janeiro-novembro de 2009), as 2.763 ações ajuizadas eram de apenas R$ 1,7 bilhão. Essa melhora pode ser o resultado da criação, em 2009, do chamado Grupo Permanente de Atuação Pró-ativa. Em 2010, o grupo tinha que aumentar os créditos para a União, o percentual de bloqueio de bens, e atuar em parceria com outros órgãos para reduzir o tempo entre a ocorrência das irregularidades e as ações judiciais. Parece que deu algum resultado.

    Porém, especialistas dizem que esses valores são irrisórios se especularmos sobre o total desviado. Mas por que tão pouco do dinheiro roubado volta aos cofres públicos?

    Até ser condenado, o fraudador pode dilapidar seu patrimônio
    ou usar “laranjas”. Não é incomum encontrar dinheiro fora do
    país, ou distribuído em diversos bens

    “No Brasil, os corruptos são mais ‘espertos’ que os honestos”, ironiza o historiador e deputado federal Chico Alencar, que tem entre suas prioridades o combate à corrupção. “E há ainda um cipoal de leis, que em vez de dificultar, acaba por facilitar a vida dos corruptos.”

    Até ser condenado, o fraudador pode dilapidar seu patrimônio ou usar “laranjas”, isto é, espalhar seus recursos entre terceiros, como lembra Alencar. Não é incomum, portanto, encontrar dinheiro desses famosos e infames personagens fora do país, em lugares como a Suíça ou em paraísos fiscais, ou ainda distribuídos em diversos bens, como imóveis e até barras de ouro.

    A quadrilha de Jorgina de Freitas, por exemplo, tinha dois imóveis em Miami e diversas propriedades no Brasil, que acumulavam dívidas em impostos e taxas. O INSS conseguiu retomar esses bens e, após se desfazer dos débitos, obteve uma boa arrecadação com as vendas. Uma propriedade de luxo de um dos integrantes do bando que fraudava a Previdência alcançou, sozinha, o valor de R$ 7,5 milhões. Mas ainda há 163 imóveis sob administração do grupo que serão postos à venda em leilões.

    “Uma das causas que realimentam a corrupção é a morosidade da
    Justiça; são várias chicanas judiciárias”, sugere Castelo Branco

    País do chocolate e dos relógios, a Suíça e seus sólidos e sigilosos bancos parecem ter sido o destino de quantias suspeitas de gente como o deputado federal Paulo Maluf e o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, do caso de superfaturamento das obras do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo de 17 de janeiro passado, as autoridades daquele país mantêm bloqueados R$ 7 milhões de “Lalau”. O procedimento é sempre adotado quando há suspeita de que o dinheiro seja proveniente de recursos públicos desviados. Maluf é ainda acusado pelo Ministério Público de movimentar valores próximos de meio bilhão de reais, dinheiro que seria original e oficialmente da Prefeitura de São Paulo, em contas em Jersey, uma minúscula ilha que fica no Canal da Mancha, bastante usada como paraíso fiscal.

    Gil Castelo Branco, secretário-geral da organização Contas Abertas, que fiscaliza os gastos públicos, credita à lentidão judiciária a maior responsabilidade pelo sumiço do dinheiro do Erário. “Uma das causas que realimentam a corrupção é a morosidade da Justiça; são várias chicanas judiciárias”, sugere Castelo Branco, citando ainda uma declaração segundo a qual o Brasil era uma espécie de recordista mundial de recursos. “Nesse período, o sujeito morre ou transfere os bens.”

    “Se defendemos o grande bandido nacional, é para manter os
    direitos também do cidadão comum”, argumenta criminalista

    Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), os juízes tentam evitar o julgamento durante o clamor público, geralmente esquentado por conta de manchetes de jornais, porque o procedimento deve ocorrer de maneira isenta, sem influência da opinião pública – seja contra ou a favor. Se houver condenação, há ainda um prazo de recurso para a defesa. Pedida a defesa, o Tribunal deve constituir um novo relator para reexaminar o caso, e só após reconfirmada a fraude, a AGU entra com uma ação para tentar recuperar o dinheiro.

    Em defesa do processo, o advogado criminalista Marcelo Leal, de Brasília, discorda de que haja um excesso de trâmites. “Isso é um mantra que a imprensa vem repetindo. O cidadão precisa ter a possibilidade de recorrer das decisões judiciais”, explica, argumentando que, com algumas exceções, os tribunais têm até feito julgamentos com relativa agilidade. Segundo ele, o problema é a falta de estrutura dos tribunais no país, lembrando casos em que o escrivão até hoje trabalha com uma máquina de escrever.

    “Vejo que nós, criminalistas, cumprimos um papel institucional para com o país: o de defesa do cidadão, da Constituição. Se defendemos o grande bandido nacional, é para manter os direitos também do cidadão comum”, ele argumenta, afirmando que, em muitos casos, seus clientes são “condenados” a priori pela mídia e pela Polícia Federal.

    Se o motivo da falta de retorno do dinheiro é controverso, a origem de tantos escândalos parece uma unanimidade: os ciclos eleitorais. O que, novamente, diverge do que ocorreu com os inconfidentes do século XVIII, quando o Estado português tentou se apoderar dos seus bens como forma de punição para um crime considerado gravíssimo – a conspiração contra os governantes. Além do mais, nas monarquias da Época Moderna os governantes não eram eleitos.

    De acordo com a organização Contas Abertas, a estimativa dos custos das campanhas na última eleição para prefeitos no país foi de R$ 8,5 bilhões. Do caixa 1, claro, que envolve doações, o fundo partidário e horário eleitoral gratuito, que não é exatamente gratuito, porque as emissoras utilizam um mecanismo de renúncia fiscal.

    “A estimativa do custo não oficial – e novamente caímos no problema de como mensurar a corrupção – é de dez a 15 vezes maior. E aí estamos falando de R$ 80 bilhões ou de R$ 100 bilhões”, explica Gil Castelo Branco, da Contas Abertas.

    O deputado Chico Alencar afirma que a Frente Parlamentar de Combate à Corrupção no Congresso priorizou projetos para “aumentar o arcabouço que aperta o ferrolho contra os ladrões”. “Mas isso depende da boa vontade dos parlamentares. Ninguém assume que vai facilitar a vida do ladrão de dinheiro público, mas muitos são beneficiados por esses mesmos esquemas”, diz, elogiando o trabalho dos chamados mecanismos de controle, como a Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público e a imprensa.

    A CGU, por exemplo, tem mecanismos de repressão e prevenção à corrupção. Se o primeiro conseguiu descobrir casos como o escândalo dos sanguessugas, que envolveu a compra de ambulâncias, o segundo tem a intenção de capacitar o gestor, já que há casos de prefeitos que praticam atos ilegais sem nem saber que o estão fazendo. O que mostra que, infelizmente, os desvios são a norma para muitos, ainda. Já a recuperação do dinheiro parece uma exceção, hoje e sempre.