O que é uma guerra mundial? Os europeus que, a partir do fim do mês de julho de 1914, se empenharam em digladiar-se internamente, usavam este termo antes mesmo da eclosão da guerra e, sem sombra de dúvida, pois eles estavam convictos de que eram o centro mais importante do mundo. Uma guerra entre as grandes potências europeias, na era do imperialismo, só podia ser uma “guerra mundial”, afinal, repercutia em colônias espalhadas pelo planeta. “Mundo” significava, portanto, a Europa das grandes potências, com suas colônias a reboque.
Esta perspectiva eurocêntrica da consciência histórica só se alterou nos últimos cem anos, e mesmo assim bem lentamente. Para os governos que se preparam com precisão militar para celebrar atos em memória dos cem anos do evento – especialmente os da Inglaterra e da França, onde a “Grande Guerra” ainda desempenha um papel muito importante no modo como se veem historicamente – a guerra é o que sempre foi: um assunto inteiramente europeu. Seu caráter global e os entrelaçamentos com o assim chamado “sul” do mundo permanecem fora das considerações europeias.Naturalmente, há algumas décadas despontam trabalhos de historiadores da Ásia, da África, da Austrália e do Leste da Europa dedicados a analisar a participação de suas regiões na guerra. Chamam especial atenção para as exorbitantes perdas de vidas humanas dos soldados das colônias, sacrificados nos campos de batalha europeus. Hoje sabemos que os cenários de guerra no Leste europeu e fora da Europa também resultaram em perdas enormes entre a população civil. Isto fica muito claro quando olhamos para a Ásia Menor, onde a chamada “limpeza étnica” causou o genocídio dos armênios.Havia muitas frentes fora da Europa. Lutou-se, sobretudo, onde o Império Alemão tinha colônias: em grande parte da África, inclusive, e ao contrário de na Segunda Guerra Mundial, também ao sul do Saara; ao longo do Pacífico, desde o Taiti até a costa chilena; no Extremo Oriente, na Sibéria e no grande Império Otomano (atualmente, Turquia e Oriente Médio). Embora muitas vezes com menor intensidade do que na Europa, o fato é que os combates se espalharam pelo mundo.
A Grã-Bretanha e a França recrutaram, no decurso da guerra, grandes quantidades de soldados nas suas colônias, muitas vezes à força. Os domínios britânicos do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia participaram fortemente. Só da Índia vieram mais de 1 milhão de combatentes. A França mobilizou quase meio milhão de homens do seu império colonial na África e na Ásia. Por causa de um acordo entre a China e os países da Entente, 56 mil trabalhadores chineses, os “Kulis”, foram para França, e outras dezenas de milhares para a Inglaterra como mão de obra nos campos e nas fábricas, para substituir os homens que tinham ido para a guerra.E não foi apenas pelos cenários de combate ou pela nacionalidade dos combatentes que a guerra ganhou conotações globais. O termo “Primeira Guerra Mundial” justifica-se em outros níveis. Foi uma guerra global porque abalou tanto o sistema financeiro e econômico mundial quanto os valores culturais que serviam de alicerce para o predomínio dos europeus. Durante o século XIX, Londres havia se tornado o centro do sistema financeiro global. A entrada da Grã-Bretanha na guerra abalou suas relações financeiras internacionais. Todos precisavam de dinheiro para os combates. Guerrear custa caro, e o dinheiro para financiar a empreitada bélica passou a vir de outra origem: dos Estados Unidos. Longe dos conflitos, o grande país norte-americano transformou-se de devedor em credor de seus ancestrais britânicos. Também os países devedores da América Latina, que até 1914 acumulavam pedidos de empréstimo a Londres, agora tinham que se dirigir a Wall Street. Crescentemente globalizada desde os fins do século XIX, toda a economia passou a gravitar ao redor dos Estados Unidos, tendência que se consolidou durante o século XX e que perdura até os dias atuais.Da mesma forma, alteraram-se as condições para o comércio internacional, afetado fortemente pelo bloqueio marítimo promovido pela Tríplice Entente e pela guerra dos submarinos conduzida pelas Potências Centrais. O comércio livre paralisou-se, afetando também os países neutros, sobretudo aqueles que se encontravam no “sul global”. As potências mundiais beligerantes não respeitaram nem as soberanias nacionais, nem os tratados existentes do Direito internacional, o que não significa que o sistema globalizado tenha acabado completamente, mas sim que passou a se realizar de um modo novo, com base nas necessidades das Potências Centrais e da Entente.Do ponto de vista do sul, aqueles países que conseguiram oferecer matérias-primas importantes para a guerra, como o cobre ou a borracha, tiveram motivos para sorrir. O salitre do Chile, por exemplo, era indispensável por conter o nitrato de sódio necessário para a produção de pólvora. Sem ele, os aliados não poderiam se manter na guerra para além de 1915. O Império Alemão, por sua vez, viu-se subitamente sem acesso ao salitre chileno, do qual era o maior cliente antes da eclosão da guerra. A produção da munição germânica teria sido impossível se não fosse a síntese de Haber-Bosch – responsável pela produção de amoníaco, nova fonte de explosivos. No decurso da guerra, cresceu ainda a demanda pela importação de alimentos, à medida que os produtores europeus morriam nas frentes de batalha. A capacidade dos aliados em acessar sem restrições esses recursos globais foi crucial para o resultado da guerra.
Além disso, desde o princípio, a guerra foi uma “guerra de culturas”, ou melhor, as partes beligerantes a estilizaram como tal. A propaganda ganhava uma nova dimensão e dedicava-se à disputa pelos neutros – não só no interior do continente, mas também no exterior. Os europeus imputaram uns aos outros a culpa pela ruptura da civilização. Culparam uns aos outros pela barbárie escancarada à vista de todos, ou comunicada em cada notícia dos acontecimentos no front.Enquanto isso, nas colônias da África, da Ásia e da América Latina, a propaganda causou efeitos um tanto contraproducentes, pois perturbou o mito da superioridade natural da Europa. As correntes anti-imperialistas e anticolonialistas já existiam antes da guerra, mas intensificaram-se de forma grave em muitos lugares. E isso não se deveu unicamente aos efeitos diretos da guerra, mas também às suas consequências sobre a vida dos trabalhadores na cidade e no campo. Em muitas cidades do sul, os conflitos bélicos na Europa causaram situações de emergência: desemprego e uma explosão simultânea de preços levaram muitas pessoas à miséria.Como consequência, cresceram as tensões sociais. Elas se relacionavam, além das situações de escassez, inflação e penúria, à frustração das promessas e das esperanças que foram muito alimentadas no momento de angariar soldados e aliados nas colônias para o esforço de guerra. Os sacrifícios dos colonos – em nome de uma guerra tão mais absurda quanto mais distante de sua realidade – pouquíssimas vezes tiveram o reconhecimento merecido. Em muitos lugares aconteceram levantes populares – ora dirigidos contra o controle colonial, ora exigindo melhores condições de vida. No entanto, os passos seguintes, até a radicalização das exigências, não foi dado na maioria dos casos.Na Rússia de 1917, a mobilização dos trabalhadores urbanos para protestos cresceu muito, e terminou em Revolução. Representada por Vladimir Lenin (líder da Rússia comunista) e Woodrow Wilson (presidente dos Estados Unidos), a ideia da autodeterminação das nações recebeu uma base institucionalizada com a fundação da Liga das Nações, em 1919, com a assinatura do Tratado de Versalhes. Não passava de uma utopia, mas mesmo sem ser cumprida, ela se espalhou com uma força imensa, influenciando a dinâmica de movimentos anti-imperialistas e anticolonialistas em todo o hemisfério sul nas décadas seguintes.A Primeira Guerra foi, de fato, uma guerra mundial. Não porque a Europa se julgava o centro do mundo, mas sim porque, direta e indiretamente, promoveu transformações decisivas nas vidas de uma quantidade incontável de pessoas, inclusive nas Américas, e ao sul do Equador como um todo.Stefan Rinke é professor da Freie Universität Berlin e coautor de Brasilien in der Welt [O Brasil no mundo]; (Campus Verlag, 2013).Saiba MaisARTHUR, Max. Vozes esquecidas da Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial: História Completa. São Paulo: Contexto, 2014.
Impacto mundial
Stefan Rinke