Nossa guerra

Mario Isnenghi

  • “A guerra de 15”, ou “a nossa guerra”. Na Itália liberal, e depois na Itália fascista, por muito tempo foi assim que chamamos a Primeira Guerra Mundial. 
     
    As palavras usadas para “dizer a guerra”, em cada país e em cada época, são essenciais para compreendê-la. O caso italiano tem como peculiaridade um protagonismo autônomo das palavras que vem de longe: desde quando, nos séculos que precederam a unificação do país, a Itália não existia como entidade institucional e política, mas apenas nas palavras e nas imagens de seus artistas e escritores. Foi com base neste capital simbólico que os próprios letrados iniciaram, no século XIX, o movimento do Risorgimento – que levou, através das chamadas três guerras de independência (1848-1849, 1859-1861, 1866), à expulsão dos estrangeiros e à unificação italiana. Já no século XX, o regime que traria maior visibilidade e reconhecimento para a Itália seria o fascismo, também ele fortemente embasado nas palavras. 
     
    Geralmente o tema da Grande Guerra é abordado na Itália a partir de sua entrada no conflito, em 1915, ou da trágica derrota de Caporetto, em outubro de 1917, quando o exército austríaco, reforçado por tropas alemãs, conseguiu vencer as defesas italianas e penetrar mais de 100 quilômetros em direção a Veneza. Começando, ao contrário, pelo fim da guerra, duas palavras se transformam em uma imagem tão poderosa quanto infundada. Trata-se da “vitória mutilada”, sinistra criação verbal de Gabriele D’Annunzio (1863-1938), poeta, narrador, orador, herói do mar e dos céus.
     
    O termo é uma referência às compensações territoriais prometidas para a Itália pelos aliados (sobretudo o litoral da Dalmácia), e não concedidas na hora dos tratados de paz. Essas palavras de 1919 impõem ao imaginário coletivo a ideia central de uma derrota italiana que, na realidade, não aconteceu, deixando para trás a grande vitória de 1918 sobre o Império Austro-húngaro. Esta foi uma escolha crucial: internalizar o mal-estar identitário que jogou fora todo o potencial de autoestima coletiva que o país construiu ao combater e vencer. Mussolini, quando se apresentou ao rei da Itália para receber o mandato e formar o novo governo, em finais de outubro de 1922, teria dito (ou poderia ter dito): “Trago aqui, para Vossa Majestade, a Itália de Vittorio Vêneto”. Lembrava assim o nome da batalha de 1918 que marcou o fim do conflito, com o triunfo italiano sobre os inimigos. Mas esta expressão, mesmo enfatizando e consagrando a vitória, também incorpora aquele conceito da “vitória mutilada”, cuja responsabilidade é atribuída à insipiência dos governantes liberais, os mesmos que agora estão sendo mandados embora pela chegada do fascismo ao poder. Assim foi o final “infeliz” da guerra para os italianos, no plano político. 
     
    Gabriele_D'Annunzio. Sinistra criação verbal do poeta, a expressão “vitória mutilada” descreve o êxito da guerra para a Itália como uma derrota que na realidade não houve. (Foto: Reprodução)No outro extremo, o seu início também alimentou interpretações próprias por meio de palavras de ordem, flashes do imaginário e munições verbais que se acendem de forma independente, mas se conectam numa constelação complexa. Eis aqui algumas destas palavras: “Trento e Trieste”, “a hora de Trento”, “agora ou nunca”, “o sacro egoísmo”, “muito”, “para uma Itália maior”, “nem aderir nem sabotar”. Esses pontos sintetizam o debate que tomou o país nos dez meses que foram da eclosão do conflito, em julho de 1914, à entrada da Itália na guerra, em maio do ano seguinte.  
     
    Os territórios de Trento e de Trieste, que pertenciam ao império austríaco, eram reivindicados pela Itália por ocasião de sua entrada na guerra. “Trento e Trieste”, “a hora de Trento” e “agora ou nunca” dizem respeito ao clima de Risorgimento promovido pelo geógrafo Cesare Battisti (1875-1916), natural da cidade de Trento. O aperfeiçoamento do Risorgimento nacional seria a quarta guerra da independência italiana: tudo pareceria nobremente inspirado nos ideais oitocentistas de Giuseppe Mazzini (1805-1872), à luz da fraternidade das nações, ainda que um tanto poeirenta e envelhecida. Mas as coisas não são tão simples assim: Battisti é socialista, deputado por Trento, não em Roma, e sim em Viena! Ele é, portanto, um traidor do Império austríaco, como súdito e como membro do Parlamento, quando se exila, ou melhor, escolhe sua nova pátria contra o Estado ao qual pertence. Não só não se preocupa em salvar sua alma, como se dedica a uma vigorosa campanha que o leva para todos os teatros e as salas de conferências da península italiana, proclamando justamente a chegada da “hora de Trento, agora ou nunca”. Palavras-coisas que coerentemente ele torna verdadeiras ao alistar-se como voluntário, ao vestir o uniforme que escolheu, ao combater. 
     
    Mais palavras de guerra. Numa tradução italiana, o panfleto lançado num vôo sobre Viena em agosto de 1918, com convite à população a abandonar o esforço de guerra de seus governantes. (Foto: Reprodução)Capturado pelos austríacos em julho de 1916, em dois dias Battisti é levado para Trento, julgado e condenado à morte. Seu enforcamento ocorre entre sorrisos de satisfação e cliques de inúmeros fotógrafos. Mártir? Com certeza, à luz da cidadania ideal que cada um de nós tem a liberdade de escolher. Mas não era o que pensavam e diziam os expoentes da ordem sobre comportamentos ilegais e personagens subversivos como Battisti, tanto na Áustria como na Itália. Seu repentino e trágico fim silenciou tais pensamentos e opiniões.    
     
    Gabriele D’Annunzio, por sua vez, tenta sair do limbo no qual as autoridades o colocaram apresentando-se como voluntário aos mais de 50 anos. É obrigado a escrever para o chefe do governo italiano, Antonio Salandra. Chamando-o calorosamente de amigo, confessa sua necessidade existencial da grande prova da guerra, da qual ele pede para não ser excluído. Na realidade, o poeta e o velho professor de Direito, líder da direita liberal-conservadora, não poderiam ser mais diferentes. D’Annunzio faz a propaganda da guerra “para uma Itália maior”: expressão hábil, capaz de satisfazer as duas grandes famílias dos intervencionistas – os nacionalistas e os democratas. Na Itália do pós-guerra, “libertadas” Trento e Trieste, aquelas palavras serão identificadas como a motivação da guerra em inúmeros monumentos em homenagem aos soldados mortos em combate. 
     
    Fiel a si mesmo, o pragmático Giovanni Giolitti, estadista liberal e por diversas vezes primeiro-ministro, garante que ainda seria possível obter “muito” negociando com os Impérios Centrais. Ele se torna objeto de escárnio por esta forma simples e direta de colocar os problemas. Salandra, pouco acostumado com as novas e incendiárias linguagens do intervencionismo das praças – aliás, bastante preocupado com elas – numa única oportunidade parece se deixar capturar pela linguagem inflamada. Trata-se de uma famosa frase, pronunciada em outubro de 1914, acerca do “sacro egoísmo”, na qual o governo italiano resolveu se inspirar em suas decisões quanto a entrar na guerra ou perseguir objetivos territoriais mantendo a neutralidade. Foi mera jogada diplomática, mas o governo parece ter aberto demais o jogo: passou a impressão de que, pensando em favorecer a causa italiana, na realidade a tornava mesquinha e vil.
     
    Tropas alpinas italianas numa ação de guerra, em 1915. O primeiro conflito mundial ficou gravado na memória coletiva dos italianos sobretudo como “a Grande Guerra”. (Foto: Reprodução / Original da Biblioteca Nacional da França)Quanto aos socialistas, não foram mais brilhantes, embora sinceras, as palavras com as quais o secretário do partido, Costantino Lazzari, tentou interpretar os dilemas dos internacionalistas. Contrários aos rumos da pátria e do Estado, naquele ponto estavam arrependidos, ou indecisos, ou impotentes. “Nem aderir nem sabotar” foi o que ele afirmou quando a Itália entrou na guerra, em maio de 1915. A frase expressa um estado de necessidade contra o qual não é possível lutar. Não é pouca coisa esta manifestação de uma objeção à guerra, se a comparamos com as mudanças de campo de quase todos os outros agrupamentos socialistas europeus. 
     
    Esse “indecisionismo”, característico também de outros líderes do socialismo italiano, talvez possa ser apreciado num plano moral, mas não se sustenta como linha de conduta de uma força organizada.
     
    Hoje, aquela que foi “a guerra de 15” ou “a nossa guerra” é chamada simplesmente de “a Grande Guerra”. Mas na memória italiana todas essas outras palavras continuam a orientar, ou a desconstruir, os significados de sua identidade.
     
    Mario Isnenghi é professor emérito da Universidade Ca’ Foscari de Veneza (Itália),  presidente do Instituto Veneziano pela História da Resistência e da Sociedade Contemporânea e autor, com Giorgio Rochat, de La Grande Guerra. Bolonha: Il Mulino, 2014.
     
    Saiba Mais
     
    FERRO, Marc. A Grande Guerra, 1914-1918. Lisboa: Edições 70, 2008. 
    FUSSELL, Paul. La Grande Guerra e la memoria moderna. Bolonha: Il Mulino, 2005.
    RUSCONI, Gianenrico. 1914. Attacco a Occidente.  Bolonha: Il Mulino,  2014