Gentileza e premonição

Leonardo Guelman

  • Ele era uma espécie de cavaleiro andante contemporâneo. Suas aparições inusitadas se davam em momentos de grande movimentação. Ficar indiferente à sua chegada, de estandarte na mão, cheio de apliques e penduricalhos, era impossível. O fato é que Gentileza era um profeta, e assim se dirigia às pessoas. Se num primeiro contato ele podia provocar estranhamento, logo essa impressão se transformava no fascínio de poder ouvi-lo de perto e reconhecer toda a lucidez de sua “desrazão”.
    Porém, o entendimento do alcance da mensagem de Gentileza não se restringe à possibilidade singular desse contato. É a aproximação com seu Verbo e sua visão de mundo que permite que ele seja visto como um profeta do final do século XX: brasileiro, nômade e meio saltimbanco. Avesso às instituições religiosas, ele denunciava uma crise profunda nas relações humanas e o individualismo crescente. Também questionava os valores da sociedade capitalista.

    O que distinguia Gentileza como profeta era o fato de ele aparecer como um apontador de rumos, conduzindo seus seguidores em plena metrópole. Por isso, mais do que um personagem pitoresco à margem da sociedade, o profeta soube revelar, a partir de sua poética e de sua plástica, os avessos e contradições da realidade que nos cerca. Isso demonstrava sua sensibilidade e sua intuição para captar alguns dos grandes impasses da atualidade.

    Gentileza era, na verdade, José Datrino, um homem simples do interior do Brasil, nascido em Cafelândia, São Paulo, no dia 11 de abril de 1917. Acostumado desde cedo a trabalhar na terra, dizia saber, desde a infância, que um dia receberia uma missão no mundo. Ele deixou sua terra natal quando completou 20 anos, e logo se deparou com os contrastes das grandes cidades. No Rio de Janeiro, então capital do país, onde chegou nos anos 1940, constituiu família e se tornou um pequeno empresário do ramo de transportes. Mas logo o Rio, cidade maravilhosa que o acolheu, começou a lhe revelar as mazelas da grande metrópole, onde uns pareciam devorar os outros. “Na cidade só tem traição, é lobo querendo engolir lobo”, diria posteriormente o profeta. Sua percepção de uma crise contundente, tanto individual quanto coletiva, era clara.

    A trajetória de Gentileza abre um panorama que contrapõe a visão interior do Brasil, de onde ele emerge como uma espécie de homem cordial, num contexto de familiaridade nas relações afetivas, que depois se vê lançado na cidade grande – com certa inaptidão para a modernização do país –, onde as relações humanas e o contato pessoal tendem a se pulverizar diante das abstrações sociais e da presença do capital. Por isso, apregoava nos anos 1970 que “todos estão surdos”, citando Roberto e Erasmo Carlos.

    A passagem do homem para profeta não se deu como uma escolha consciente, mas irrompeu com tal força que o levou a ser internado como louco, antes mesmo de sua pregação. Nesse espaço de tempo, na busca urgente de sentido pessoal, Datrino foi sacudido por uma grande tragédia que comoveu todo o país: o incêndio do Gran Circus Norte-Americano, em Niterói, no dia 17 de dezembro de 1961, em que morreram cerca de quinhentas pessoas. Seis dias depois, ele começou a ouvir “vozes astrais” e se dirigiu a Niterói. Foi nesse episódio que seu lirismo despontou numa modinha: “Diz que o mundo ia se acabar, pois o mundo se acabou. A derrota de um circo queimado em Niterói é um mundo representado, porque o mundo é redondo e o circo é arredondado... Por esse motivo, então, Gentileza não tenha sossegado”.

    Embora esses versos se refiram a uma tragédia, sua simbologia aponta para a antevisão de uma crise maior: a dos valores que ameaçam continuamente a humanidade. O profeta acabou se fixando naquele local, consolando ali os que perderam seus entes queridos, e transformou as ruínas daquele sítio desolado num jardim, por ele chamado de “Paraíso Gentileza”. Essa experiência possibilitou a assimilação social do personagem profeta, mas não se fez sem propagar a versão inverossímil de que ele teria perdido toda a família no incêndio.

    Contrariando a lenda popular, Gentileza sempre reafirmava: “Sou papai de cinco filhos, três femininos e dois masculinos, não perdi ninguém no incêndio do circo!” Depois de ficar cerca de quatro anos no que restou do circo, ele passou a se abrigar em casas de conhecidos e fundos de lote, vivendo humildemente em habitações precárias, como no período em que morou na Rua Feliciano Sodré, em Niterói. A casa de sua filha mais velha, Maria Alice, no bairro de Guadalupe, no Rio de Janeiro, também virou um porto seguro mais tarde.

    Frases como “gentileza é o remédio para todos os males” ajudaram a popularizar a mensagem do profeta. Mas consagradora mesmo foi sua máxima “gentileza gera gentileza”, que se revelou, de uma forma ampliada, como um princípio em que “humanidade gera humanidade”. A dimensão mística que já havia se manifestado em José Datrino aflorou na cosmovisão de uma trindade/quaternidade cristã, presente na simbologia do “Univvverrsso” Gentileza. Ao acrescentar letras às palavras, o profeta o fazia como uma inscrição que denotava a presença espiritual divina na participação do Filho (F), do Pai (P), do Espírito (E), e de um quarto termo (N), Nossa Ssenhora mamãe Maria Aparecida, que integravam o diagrama (FPEN).

    O mesmo princípio se revelava no acréscimo de letras em outras palavras como em “AMORRR”, evidenciando um acento divino que distinguia o “amor espiritual” – “que se escreve com um R do pai, um R do filho e um R do espírito santo” – do “amor material”. Esses traços de universalidade religiosa estavam registrados em seu estandarte, como se fosse a carteira de identidade mítica de um homem ressurgido. Com ele em punho, ganhou relevo sua denúncia das crises decorrentes do “capetalismo”: “Capeta vem de origem capital, faz o diabo o demônio marginal, por esse motivo a humanidade vive mal...”.

    Foi nesse momento que ele, andando de carona, começou a espalhar a mensagem da gentileza pelo país. Nessas viagens, que fez nos anos 1970 e 1980, o profeta percorreu as cinco regiões do Brasil levando sua palavra. Toda essa vivência antecipou o investimento artístico que despontou no final da década de 1980, quando ele se propôs a registrar seus ensinamentos na paisagem urbana do Rio de Janeiro. Era a maturidade do profeta, que transparecia nos pilares do Viaduto do Caju, na entrada da cidade, em que sua visão de mundo ocupava 56 páginas de concreto.

    Para Gentileza, suas ideias pintadas na rua tinham a intenção de abrir os olhos e os ouvidos das pessoas para a indiferença social. Preservá-las é ressaltar a importância do conteúdo de suas escrituras. O alcance de sua mensagem o identifica como um autêntico profeta brasileiro que fala das vicissitudes do nosso tempo, expondo um modo de interpretação contemporâneo que se opõe à hegemonia do “capeta-capital” – o “diabo-marginal”, tão denunciado em seus escritos e pregações.

    Gentileza foi profeta durante 35 anos. A partir de 1993, sua saúde começou a ficar debilitada. Sofrendo de problemas circulatórios, ele sentia cada vez mais dificuldade para andar. No início de 1996, decidiu ir para Mirandópolis (SP), cidade próxima à sua terra natal. Até que, no dia 29 de maio, faleceu, aos 79 anos de idade. Se o país alcança hoje novos patamares de crescimento e destaque internacional, não se pode fazê-lo renunciando internamente à expressão de sua criatividade popular, tão fundamental, também, para o reconhecimento de novos rumos para o Brasil.
     
    Leonardo Guelman é professor da Universidade Federal Fluminense e produtor do CD-Rom Univvverso Gentileza (1997).
     
     
    Saiba Mais - Bibliografia

    BOFF, Leonardo. Saber Cuidar – Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
     
     
    Saiba Mais - Vídeo
     
    “Gentileza”, de Dado Amaral e Vinícius Reis (1994).
     
     
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    www.riocomgentileza.com.br